O imaginário sobre África e o Mpox

Mpox foi declarada como uma emergência de saúde pública de âmbito internacional (PHEIC) após a emergência e reconhecimento de uma nova variante.

O vírus, antes conhecido como “varíola dos macacos”, afeta principalmente o continente africano e a nova variante chamada “clade 1b” foi detetada na República Democrática do Congo em setembro de 2023 e mais tarde, casos foram reportados em vários países vizinhos.

A Organização Mundial da Saúde entende que esta nova variante é mais grave que as anteriores e, por isso, necessita da classificação de emergência mundial.

No entanto, esta não foi a primeira vez que a varíola foi classificada desta forma nos últimos anos: já é a segunda vez em três anos que o vírus é indicado como emergência mundial e, só neste ano, já teve um número de 17.500 infectados, ultrapassando o número registrado em todo o ano de 2023, de 15 mil casos.

A proliferação da doença ocorre no continente tendo como ligação direta à precariedade econômica, política e social da maioria de seus países pertencentes, entretanto, o fenômeno concreto da doença alimenta e reproduz um imaginário específico sobre a África.

Edward Said escreveu um livro sobre o orientalismo, que seria um imaginário ocidental sobre o Oriente. Este imaginário assume sua forma concreta enquanto discurso e se mostra relevante por meio das ações políticas dos países ocidentais sobre os orientais.

É possível, também, traçar um imaginário ocidental sobre o continente africano.

Danfá e Aléssio delimitam este olhar do Ocidente ao continente africano como uma fonte de doenças e sujeira:

Os estudos da ebola, na imprensa britânica, conduzidos por Joffe e Haarhoff (2002), demonstram que os jornais analisados localizam o vírus do Ebola, ora generalizando a África, ora especificando o local da sua origem. As principais causas referenciadas no estudo em questão centraram-se na ingestão de carne de macaco e no déficit de cuidados da saúde. As causas atribuídas com menor frequência foram a pobreza, a poluição, os ambientes florestais e os rituais tribais. Essa ligação da doença atribuída à relação do homem com o macaco pode não tratar de uma simples descrição da origem da enfermidade. Quando se trata de explicar a origem de doenças na África, como a aids, por exemplo, os povos africanos são frequentemente vinculados à animalidade, barbárie e subumanidade, pelo fato dessas doenças serem atreladas à interação homem-animal. Essa vinculação pode assim incitar ou expressar formas de racismo (DANFÁ; ALÉSSIO, 2017, p. 4).

Até mesmo o olhar médico brasileiro está inscrustado de um tipo de racismo:

Aliás, Rodrigues (2012) considera que o fato do vírus causador da ebola ter origem africana não provocou nenhum espanto, visto que existe o hábito de atribuir aos africanos à responsabilidade da introdução das doenças epidêmicas ou endêmicas no Ocidente. O autor salienta que o tráfico de escravos continua sendo visto pelos acadêmicos da medicina brasileira como causa de muitos males e doenças que acometiam os brasileiros. Dito de outra forma, o passado histórico da escravidão fez com que alguns intelectuais médicos brasileiros associassem as doenças e outros males do Brasil ao continente africano (DANFÁ; ALÉSSIO, 2017, p. 5).

Disso, é possível compreender que há um imaginário no Brasil de uma África exótica, violente e miserável:

Por sua vez, Oliva (2005) considera que vários autores partilham o imaginário composto por estereótipos e notícias que circulam no Brasil sobre a África. Os estereótipos descritos pelo autor são: cenas do tráfico e escravidão, conflitos e guerras, as epidemias e a fome, a miséria, a desorganização generalizada e a natureza exótica. O autor destaca o papel desempenhado pela mídia escrita na perpetuação do conjunto das imagens que constituem este imaginário acerca da África (DANFÁ; ALÉSSIO, 2017, p. 5).

OLIVEIRA (2011, p. 95) cita Heródoto para reconstituir a genealogia do imaginário ocidental sobre a África:

Chamando a todos de etíopes e a região por eles ocupada de Etiópia, o historiador grego acreditava ser aquela a “mais remota das regiões habitadas (…)”. Além disso, se comparados a outros povos, como os gregos e egípcios, os etíopes seriam inferiores, bárbaros – sem civilização – e identificados como trogloditas. Evidencia-se que os filtros culturais do autor condicionaram sua leitura acerca dos etíopes e acabaram por enfatizar de forma negativa os aspectos físicos e culturais dos africanos, para ele muito distantes dos apresentados pelos gregos.

O autor continua sua exposição localizando o discurso civilizatório ocidental sobre a África ser presente já na antiguidade grega, pois Heródoto já afirmava que o papel do Egito era o de civilizar o restante do território do continente.

Segundo Gabriel Romano (2021), é este imaginário que possibilita o apagamento da memória africana, o apagamento das divisões territoriais no continente e a ânsia pela conquista sobre este suposto território inócuo:

É dessa forma que distorções históricas ganham terreno fértil, explorado pela mídia e charlatões nas redes sociais. É também dessa forma que colocam em dúvida a construção de pirâmides antigas e outras grandes construções arquitetônicas da África. É dessa forma que apagam grandes civilizações e impérios africanos da memória popular. É dessa forma que hoje pouco se entende sobre seus personagens históricos e discussões distorcidas sobre as características físicas da Cleópatra repercutem nas redes sociais. É dessa forma que filmes exploram sempre uma imagem desgastada da África como uma imensa savana semiárida.

Ou seja, este imaginário é o conteúdo discursivo que preenche as políticas concretas que os Estados do norte aplicam em África.

Não é possível ignorar o fato de que, de fato, problemas de saúde tendem a ser piores e a se alastrar em África com mais força que em países do norte global, por exemplo.

Entretanto, o movimento de observação que se apega ao imaginário ocidental tende a naturalizar estes problemas enquanto uma característica do continente, não enquanto uma caracteríśticas com raízes históricas fundamentadas na própria imposição militar ocidental sobre África: ego conquiro fundamentado e que fundamentou um ego cogito.

O esquecimento do continente é uma negação do próprio passado escravista das democracias ocidentais que, mesmo sob a forma democrática de governo, ainda era seduzida pelo comércio de escravizados.

Inclusive, segundo Achille Mbembe, foi justamente a partir da exploração do continente africano que um ideário do sujeito civilizado pode ser concretamente operacionalizado nos territórios do norte (MBEMBE, 2020).

Desta forma, além de negar o passado escravagista, esquecer África é naturalizar a própria forma-sujeito do cidadão civilizado europeu. É retirar da realidade histórica a formação deste tipo de sujeito, desta forma, o tornando universal.

A forma religiosa da naturalização

Marco feliciano sobre africa

O tweet acima de Marco Feliciano é representativo. Neste tweet, os problema que acontecem no continente africano são reduzidos a uma explicação fatalista baseada numa origem religiosa: as pessoas que moram no continente seriam descendentes de um acenstral amaldiçoado de Noé.

Desta forma, os flagelos que acometem a África são manifestações concretas de uma raiz do passado religioso e, grosso modo, só poderiam ser resolvidos com a solução deste problema religioso. Qual solução seria esta? Segundo feliciano:

Feliciano sobre África

A solução seria uma conversão ao cristianismo e, assim, ao julgo do Senhor, afinal, “bendita é a nação cujo Deus é o Senhor”.

Desta forma, caberia aos cristão realizar missões para evangelização na África e, com esta atitude, protagonizariam uma suposta mudança da condição do continente: de amaldiçoado para bendito. Ego conquiro.

Anexo

Referências

DANFÁ, Lassana; ALÉSSIO, R. L. S. Dimensões alteritárias da Ebola no Brasil: um estudo na revista Veja .Psicologia e Saber Social, 6(1), 3-12, 2017.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020.

OLIVEIRA, Anderson. Os africanos entre representações: viagens reveladoras, olhares imprecisos e a invenção da África no imaginário Ocidental. Em Tempo de Histórias, [S. l.], n. 09, 2011. DOI: 10.26512/emtempos.v0i09.20107. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/emtempos/article/view/20107. Acesso em: 17 ago. 2024.

ROMANO, G. D. Precisamos entender a África, Le Monde Diplomatique. Disponível em <<https://diplomatique.org.br/precisamos-entender-a-africa/>>. Acesso em: 17 ago. 2024.

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