A democracia escravista – Achille Mbembe

Tanto o sistema colonial com o escravagista se unem de maneira envergonhada mas real com a democracia. Fazem parte de seu inventário amargo, de difícil digestão. A democracia ocidental nunca foi imune ao sistema de desigualdade evidente nas práticas coloniais e escravagistas.

Da série “Necropolítica”.

Índice

Introdução

O título deste artigo não falha. A democracia não é um ideal a ser alcançado, mas um sistema político concreto e, justamente por isso, histórico. Achille Mbembe fornece uma crítica à democracia ocidental na medida em que ela, em sua realização concreta, não só foi conivente com a escravização de povos negros, como também foi mola propulsora para sua existência.

A ideia de uma democracia polida e livre de violência não escapa a uma só analise. As revoluções americana e francesa, por exemplo, foram estopins de violência revolucionária liberal, de violência das luzes, de violência esclarecedora. As democracias modernas não acabaram com a violência enquanto padrão de sociabilidade, só a reprimiram em âmbito individual. “Mas a brutalidade das democracias somente foi abafada. Desde sua origem, as democracias modernas sempre deram mostras de tolerância em relação a certa violência política, inclusive ilegal”[1].

Ilegalidade presente em “instituições privadas agindo atreladas ao Estado”[2], desde organizações empresariais até milícias armadas e grupo paramilitares. A violência passou a ser concentrada em sua face política e coletiva, apesar de suprimida em nível individual através do estabelecimento dos Estados-nação e do fortalecimento do aparato jurídico moderno que normaliza a aplicação da lei em todo território soberano.

O objetivo deste artigo é expor o entendimento de Achille Mbembe acerca das “democracias escravistas”[3] e, portanto, visualizar como a democracia, enquanto sistema político concreto aliado à formação social capitalista, não exclui de nenhuma maneira a prática de violências racistas ou xenófobas.


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Democrática e concomitantemente escravagista

A supressão da violência individual através do estabelecimento de rigorosas leis e práticas disciplinares afastou o perigo do caos individual. Com a emergência do biopoder, não só a normação disciplinar foi levada à cabo, mas também a normatização com base em um olhar biológico e estatístico. A tecnologia de controle da população ficou completa e eficiente em seu objetivo político e social: corpos dóceis já poderiam ser fabricados e a população como ator político que poderia ser conduzida[4][5].

Os estampidos de violência passam a ser organizados e judicializados: desde a formação de milícias até a construção de partidos políticos radicais. A violência, assim, se transformou em elemento de possibilidade coletiva, mas de repressão individual.

Entre as possibilidades de violência racista organizada, Achille Mbembe insere a própria democracia americana como caso exemplar em que

desde o seu nascimento, proclama a igualdade entre os homens, cujo governo supostamente tem seu poder emanado do consentimento dos governados, mas que, pela prática da escravidão, se acomodou a uma disjunção moral absoluta.[6]

A população negra chegou a contabilizar 11,6% da população total dos Estados Unidos da América em 1900 e nunca alcançou estatuto de igualdade até o término da escravização e fim do apartheid ao longo do século XX. A presença da pessoa negra tinha estatuto legal análogo ao da presença do estrangeiro numa sociedade de semelhantes. Num processo de eternização do presente, também a herança genética era meio de proliferação do veneno escravagista: o presente é entendido como realidade fixa através da cristalização, geração após geração, do mesmo estatuto de direito à população estrangeira.

Assim, entende-se com Achille Mbembe que a democracia escravagista como nos moldes estadunidenses existia através de duas ordens sociais:

  1. Uma comunidade dos semelhantes regida pela lei da igualdade;
  2. Uma categoria dos dessemelhantes, dos sem-partes, dos que não só não se enquadram na comunidade dos semelhantes, como não tem o direito de ter direitos, ou seja, não estão no caminho da possibilidade de adequação e introdução à comunidade do ponto anterior. Nesta categoria, a regência está com a lei da desigualdade.

Tanto o próprio preconceito quanto a lei que o fundamentava permitiam manter uma distância quase intransponível entre a comunidade de semelhantes e os outros. Se é que podia ser considerada uma comunidade, a democracia escravista não podia ser senão uma comunidade de separação.[7]

A democracia escravista se materializa no momento seguinte da abolição da escravização: apesar de livres e detentores de direitos eleitorais, os negros corriam risco de vida se comparecessem à votação; se quisessem reclamar, encontrariam somente juízes brancos; se quisessem educação, seus filhos não frequentariam as mesma escola dos filhos de seus antigos amos. Alexis de Tocqueville, em seu De la démocratie en Amérique, expõe os motivos da democracia estadunidense mesmo após a abolição da escravatura ainda manter uma organização social racista, pois

a obsessão das democracias escravistas não é apenas manter os escravos diligentemente isolados. É, sobretudo, saber como se livrar deles, fazê-los abandonar voluntariamente o país ou, se necessário, deportá-los em massa.[8]

A convivência de negros e seus descendentes nas democracias escravistas acontecia sob um manto de licença absoluta. Emergia assim um dilema, que hoje é óbvio, entre o projeto de uma sociedade livre e a existência do estatuto servil ou do regime de plantation.

A cultura do gosto

O sistema escravista existente no interior das colônias e dos territórios há pouco independentes de suas metrópoles também convivia com um sistema colonial e mercantil que forneceu condições de possibilidade para o nascimento de uma cultura do gosto, da proliferação de galerias de arte e cafés, além da pulverização do consumo de especiarias que, em seu conjunto, formam os locais e itens de constituição do novo sujeito civilizado. “Enquanto isso, barões coloniais e nababos indianos reciclavam fortunas ilícitas no afã de se recomporem com uma identidade de aristocrata”[9].

O comércio exterior foi fundamental no aumento da riqueza das nações no período colonial:

Se o ouro ou a prata eram cobiçados por todos os Estados e pelas diversas cortes principescas da Europa, também esse era o caso da pimenta-do-reino, da canela, do cravo-da-índia, da noz-moscada e de outras especiarias. Mas também era o caso do algodão, da seda, do índigo, do café, do tabaco, do açúcar, dos bálsamos, dos licores mais diversos, das formas e das plantas medicinais que eram compradas ao longe por preços irrisórios e revendidas a preços exorbitantes nos mercados europeus.[10]

O consumo de luxo e a própria constituição de um mercado de luxo, de um mercado de especiarias e, por fim, de um mercado preenchido por itens que constituíam o contexto geral da emergência do sujeito civilizado são elementos de pacificação ocidental que dependiam da violência aplicada nos territórios coloniais ou em povos inseridos em posições subalternas na dinâmica social local.

O empreendimento colonial foi o motor central desta maneira de civilizar o ocidente e, em seu núcleo necropolítico, é o responsável por manter em pé de guerra toda dinâmica social que acontece em seu interior. O território colonial não é somente um território de abusos legalizados, mas é o local em que o próprio direito exclui o colonizado de um estatuto de dignidade, já que compõe a categoria dos dessemelhantes em seu próprio território. O desejo de apartheid pode ser evocado para compreender como, em seu próprio território, o colonizado se vê numa situação de destituição total de sua própria humanidade e, de maneira mais complexa, observa a instituição de um novo tipo de humanidade que ele não está inserido e nem faz parte do trajeto de introdução.

Não se trata de um tipo de violência ao outro existente e relevante, ou seja, ao outro digno de ser um outro que só o é na medida em que pertence à comunidade de semelhantes. Não se trata do outro que confirma a existência de si, ou seja, do outro que está num patamar de igualdade que, em sua diferença, provaria a multiplicidade do mundo real. A violência nas colônias é aplicada sobre um outro no lado externo da fronteira da humanidade:

Isto é, o franqueamento deliberado de um limiar de violência e de crueldade que se abate sobre aqueles que foram previamente privados de todo e qualquer direito. O desejo de fazê-los em pedaços se traduz pela generalização de práticas tais como o incêndio de aldeias e de planícies rizícolas, execuções de simples aldeões para servirem de exemplo, a pilhagem das reservas coletivas de alimentos e dos celeiros, razias extremamente brutais em meio aos civis ou a sistematização da tortura.[11]

Aqui, é possível encontrar ecos do Discurso sobre o colonialismo de Aimé Cesaire, em que a crueldade do colonizador é apresentada como resultado do próprio sistema colonial. Tal sistema é responsável em “descivilizar o colonizador, em embrutecê-lo, na verdadeira acepção da palavra, em degradá-lo, em despertá-lo para os instinto ocultos, para a cobiça, para a violência, para o ódio racial, para o relativismo moral”[12]. O campo da colônia é o campo da reconstrução do sujeito civilizado que, em seu processo de repressão corporal, se vê no território da liberdade. Se compreendemos a liberdade como uma prática, então entende-se que as práticas de liberdade no território colonial são justamente as práticas de morte.

Considerações finais

Tanto o sistema colonial com o escravagista se unem de maneira envergonhada mas real com a democracia. Fazem parte de seu inventário amargo, de difícil digestão. A democracia ocidental nunca foi imune ao sistema de desigualdade evidente nas práticas coloniais e escravagistas.

Revelando-se entre si, estas três ordens – a ordem da plantation, a ordem da colônia e a ordem da democracia – não se desgrudam, do mesmo modo como George Washington e seu escravo e companheiro William Lee, ou Thomas Jefferson e sua escrava Jupiter. Uma agrega sua aura à outra, numa relação estreita de distância aparente e de proximidade e intimidade reprimidas.[13]

Uma distância aparente com os sujeitos sem direitos e, ao mesmo tempo, proximidade e intimidade reprimidas com esses sujeitos que, no limiar da dignidade, ainda se encontram no limite externo da humanidade. A sociedade de iguais só pode ser de iguais se, em seu seio, existir concretamente o desigual, aqueles que se entende como horizonte eterno da desigualdade.

Figuras do desatino

Referências

[1] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 36-37.

[2] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 37.

[3] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 37.

[4] SIQUEIRA, Vinicius. Poder disciplinar em Michel Foucault. Acesso em 09 de novembro de 2022. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/poder-disciplinar-michel-foucault/>>.

[5] SIQUEIRA, Vinicius. O biopoder em Michel Foucault. Acesso em 09 de novembro de 2022. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/biopoder/>>.

[6] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 37.

[7] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 38.

[8] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 39.

[9] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 40.

[10] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 41.

[11] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 42.

[12] CESAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Sá da Costa Editoria: Lisboa, 1978, p. 17.

[13] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 42.

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