Memória discursiva, por Jean-Jacques Courtine – DROPS #30

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCAR, 2009, p. 104-106.

Introduzimos assim a noção de memória discursiva na problemática da análise do discurso político. Essa noção nos parece subjacente à análise das FD que a Arqueologia do saber efetua: toda formulação apresenta em seu “domínio associado” outras formulações que ela repete, refuta, transforma, denega…, isto é, em relação às quais ela produz efeitos de memória específicos; mas toda formulação mantém igualmente com formulações com as quais coexiste (seu “campo de concomitância”, diria Foucault) ou que lhe sucedem (seu “campo de antecipação”) relações cuja análise inscreve necessariamente a questão da duração e da pluralidade dos tempos históricos no interior dos problemas que a utilização do conceito de FD levanta.


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Isso retoma algumas preocupações das pesquisas históricas contemporâneas acerca da multiplicidade dos tempos: assim, o “acontecimento discursivo” que tomamos como exemplo inscreve-se num tempo curto “proporcional aos indivíduos, à vida quotidiana, às nossas ilusões, nossas breves conscientizações – o tempo por excelência do cronista, do jornalista” (Braudel, 1969, p. 46, Ecrits sur l’Histoire). Para o historiador, entretanto, tal acontecimento “traz testemunho às vezes sobre movimentos muitos profundos (…) anexa-se a um tempo muito superior à sua própria duração. Extensível ao infinito, liga-se livremente ou não, a toda uma cadeia de acontecimentos, de realidades subjacentes, e impossíveis, ao que parece, de separar uns dois outros”(Idem, p. 45).

A introdução da noção de “memória discursiva” em AD nos parece, assim, colocar em jogo a articulação dessa disciplina com as formas contemporâneas da pesquisa histórica, que insistem no valor a ser atribuído à longa duração. Apenas situaremos aqui essa problemática teórica, sem pretender absolutamente esgotá-la, ainda mais na medida em que nosso próprio estudo situa-se na duração do tempo médio de um ciclo (1936-1976). Entretanto, tentaremos a seguir esclarecer essa noção.

A propósito da noção de “memória discursiva”

Comecemos, antes de mais nada, distinguindo-a. O que entendemos pelo termo “memória discursiva” é distinto de toda memorização psicológica do tipo daquela cuja medida cronométrica os psicolinguístas se dedicam a produzir (assim, para utilizar um exemplo recente, o trabalho de Kintsch & Van Dijk (1975, A Comment on se rapelle et on résume des histories) sobre os processos cognitivos implicados na memória dos textos). A noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos; ela visa o que Foucault (Arqueologia do saber) levanta a propósito dos textos religiosos, jurídicos, literários, científicos, “discursos que originam um certo número de novos atos, de palavras que os retomam, os transformam ou falam deles, enfim, os discursos que indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda dizer”.

O mesmo acontece com os discursos políticos, a propósito dos quais a existência de uma memória discursiva remete a questões familiares à prática política, como esta que veremos a seguir: do que nos lembramos e como nos lembramos, na luta ideológica, do que convém dizer e não dizer, a partir de uma determinada posição em uma conjuntura dada, ao escrever um panfleto, uma moção, uma tomada de posição? Em outras palavras: como o trabalho de uma memória coletiva permite, no interior de uma FD, a lembrança, a repetição, a refutação, mas também o esquecimento desses elementos de saber que são os enunciados? Enfim, sobre que modo material existe uma memória discursiva?

Forneceremos posteriormente alguns elementos de resposta a tais perguntas a propósito da FD comunista. Queremos destacar, para concluir a caracterização “de efeitos de memória” em discursos produzidos em tal conjuntura histórica devem ser articuladas aos dois níveis de descrição de uma FD que destacamos anteriormente, assim como às observações que acabam de ser feitas quanto à pluralidade dos tempos históricos: os objetos que chamamos “enunciados”, na formação dos quais se constitui o saber próprio a uma FD, existem no tempo longo de uma memória, ao passo que as formulações são tomadas no tempo curto da atualidade de uma enunciação. É então, exatamente, a relação entre interdiscurso e intradiscurso que se representa neste particular efeito discursivo, por ocasião do qual uma formulação-origem retorna na atualidade de uma “conjuntura discursiva”, e que designamos como efeito de memória.

 – Jean-Jacques Courtine.

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