Necropoder e colônia – Achille Mbembe

A partir de Mbembe, entende-se que a colônia tardo-moderna é o laboratório de observação do exercício do necropoder. No território ocupado, tem-se a categorização de tipos de pessoas, sempre num status entre sujeito e objeto, de tal maneira que a própria humanidade deve ser vista em perspectiva. O racismo de Estado, enquanto necessidade para fazer morrer na tecnologia do biopoder, carrega consigo o fortalecimento da raça que se deve fazer viver; o necropoder não funda a morte na contrapartida da vida necessária, o necropoder age pela morte como necessidade civilizacional, como ação por si, classificação e proposta de morte.

Da série “Necropolítica”.

Índice

Introdução

As colônias não são construídas sobre as bases da ordem estatal, são territórios fronteiriços, expedientes da arbitrariedade da administração colonial. Achille Mbembe coloca em jogo a própria noção de sujeito aplicada aos habitantes da colônia: como aqueles que lá vivem não possuem o mesmo estatuto dos que vivem na metrópole, é possível agir sem o obedecimento às regras que têm como alvo o corpo social reconhecido pelo Estado, pois aquele lugar é composto pela desordem e pelo caos da natureza, da selvageria. Por fim, está no exato oposto da civilização[1].

Estar numa posição tão desconfortável, no exato oposto da civilização, coloca a administração colonial em posição relativamente confortável de aplicação da força, afinal, trata-se do exercício da força civilizacional frente ao caos da selvageria, numa situação em que a intervenção civilizatória é uma necessidade latente.

Ocupação

A intervenção civilizatória só pode acontecer nas colônias num contexto de ocupação. A ocupação colonial promove um novo conjunto de relações sociais e espaciais sobre um território, destruindo aquelas vigentes, repartindo e unindo espaços nunca antes sob qualquer proximidade. Para além do limite geográfico, espaços são constituídos por fluxos de símbolos, por delimitações propriamente sociais, desconsideradas e destruídas pela ocupação.

Essa inscrição (territorialização) foi, enfim, equivalente à produção de fronteiras e hierarquias, zonas e enclaves; a subversão dos regimes de propriedade existentes; a classificação das pessoas de acordo com diferentes categorias; extração de recursos; e, finalmente, a produção de uma ampla reserva de imaginários culturais.[2]

São justamente os imaginários culturais que dão sentido ao exercício do poder sobre um número diferente de pessoas categorizadas a partir das criações quiméricas da visão colonizadora.

Soberania significa ocupação, e ocupação significa relegar o colonizado em uma terceira zona, entre o status de sujeito e objeto.[3]

A colônia é local de aplicação da força bruta, da violência direta e frequente. Mbembe se utiliza da descrição de Franz Fanon para dar visualização à maneira como o necropoder opera[4]: existe na cidade do povo colonizado a má fama, a má reputação, a insignificância daqueles que lá vivem e morrem, trata-se de uma cidade carente de recursos. A soberania se faz através da categorização daqueles que são descartáveis e dos outros que não são.

Necropoder

Segundo Mbembe, a ocupação colonial da modernidade tardia se difere da primeira ocupação moderna por combinar mecanismos disciplinares, biopolítica e necropolítica. A Palestina é uma exemplo:

Aqui, o Estado colonial deriva sua reivindicação fundamental de soberania e legitimidade da autoridade de seu próprio relato de história e identidade. Essa narrativa é sustentada pela ideia de que o Estado tem o direito divino de existir; e então entra em conflito com outra narrativa pelo mesmo espaço sagrado. Como ambas são incompatíveis e suas populações estão entrelaçadas, qualquer demarcação de território com base na identidade pura é quase impossível. Violência e soberania, nesse caso, reivindicam um fundamento divino: o povo é forjado pela adoração de uma divindade, e a identidade nacional é concebida em oposição a outras divindades.[5]

Mbembe irá classificar três características principais no funcionamento do necropoder (que é uma formação específica do terror), tomando como base os exemplos concretos de Gaza e Cisjordânia[6]:

  1. Fragmentação territorial: baseada no acesso proibido e na expansão dos assentamentos. “O objetivo desse processo é duplo: impossibilitar qualquer movimento e implementar a segregação à moda do Estado do apartheid“, assinala Mbembe. Desta forma, tem-se territórios ocupados constituídos por redes celulares que atravessam territórios já povoados, os dividindo, isolando em pontos isolados sempre distantes e de difícil comunicação.
  2. Soberania vertical: uma soberania vertical que assinala a marcação da ação soberana sobre o espaço tridimensional cuja vigilância está orientada para aquilo que está dentro do território como para o que está em seu entorno. Não se traça uma linha territorial limite: dentro e fora são definidos através de um jogo constante de vigilância, controle e separação, que funciona de tal maneira que a reclusão do povo colonizado é seu resultado. O povo da cidade tardo-colonizada é recluso. Ao mesmo tempo, em toda locomoção, a metáfora do topo, a sua verticalidade, é recolocada, como quando passagens subterrâneas para palestinos são inseridas abaixo das autoestradas em que israelenses se movimentam de assentamento a assentamento. “Assim, o terreno elevado oferece benefícios estratégicos não encontrados nos vales (eficácia da vista, autoproteção, fortificações panópticas que permitem orientar o olhar para múltiplas direções)”.
  3. Terra arrasada: técnicas de sítio medievais são aplicadas aos territórios coloniais, como a sabotagem de toda infraestrutura social e urbana e a apropriação dos recursos de terra, água e espaço aéreo. “Demolir casas e cidades; desenraizar as oliveiras; crivar de tiros tanques de água; bombardear e obstruir comunicações eletrônicas; escavar estradas; destruir transformadores de energia elétrica; arrasar pistas de aeroporto; desabilitar os transmissores de rádio e televisão; esmagar computadores; saquear símbolos culturais e político-burocráticos do Proto-Estado Palestino; saquear equipamentos médicos. Em outras palavras, levar a cabo uma ‘guerra infraestrutural'”.

Assim, o necropoder opera separando os territórios da colônia, desrespeitando e destruindo as divisões locais; implantando um senso de soberania vertical, de tal forma que a metáfora do topo, daqueles que lá estão versus aqueles que estão na base, é frequentemente exibida, o que cria novos espaços de violência, já que o espaço tridimensional de exercício do poder envolve os céus, a superfície, mas também o subsolo, destinando a população colonizada à reclusão; por fim, o necropoder destrói toda rede infraestrutural no território ocupado, promove a morte através da escassez.

Considerações finais

A partir de Mbembe, entende-se que a colônia tardo-moderna é o laboratório de observação do exercício do necropoder. No território ocupado, tem-se a categorização de tipos de pessoas, sempre num status entre sujeito e objeto, de tal maneira que a própria humanidade deve ser vista em perspectiva. A humanidade seria essência, substância daqueles que ocupam, daqueles que mantêm os assentamentos nos territórios ocupados e exemplificados por Gaza e Cisjordânia.

A desumanização é levada à cabo a partir da construção de imaginários culturais próprios dos colonizadores a respeito do povo colonizado. São esses imaginários que preservam a base ideal do exercício cru do poder, da violência direta, da ação frequente sobre o povo oprimido. Entretanto, não se trata somente de uma imagem socialmente construída, mas também da opressão com base num argumento religioso fundamental que, juntos, promovem a exploração dos povos colonizados.

Enquanto procedimento, divisão, controle e destruição fazem parte das características que compõem o necropoder, mecanismo qualitativamente diferente do biopoder na medida em que se coloca como mecanismo atravessado pela transgressão e pela morte do corpo descartável, não mais pelo fazer viver do corpo populacional. O racismo de Estado, enquanto necessidade para fazer morrer na tecnologia do biopoder, carrega consigo o fortalecimento da raça que se deve fazer viver; o necropoder não funda a morte na contrapartida da vida necessária, o necropoder age pela morte como necessidade civilizacional, como ação por si, classificação e proposta de morte. Pode-se partir da hipótese de que há uma força positiva neste novo fazer morrer que o racismo de Estado não entrega.

Referências

[1] SIQUEIRA, Vinicius. Necropolítica e biopoder – Achille Mbembe. Colunas Tortas. Acesso em 07 nov 2020. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/necropolitica-biopoder/>>.

[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016, p.135.

[3] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016, p.135.

[4] Frantz Fanon. The wretched of the Earth, traduzido por C. Farrington. New York: Grove Weidenfeld, 1991: 37-39.

[5] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016, p.136.

[6] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016, p.136.

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