A Internacional Situacionista agia principalmente nas questões da vida cotidiana. O lazer, a arquitetura e a cultura eram temas sagrados para a ação situacionista, que utilizava a própria cultura fabricada pelo mercado como arma contra ele. Guy Debord e Gil J. Wolman escreveram um artigo simples e prático chamado Desvio: modo de usar, explicando como utilizar a técnica do desvio para fazer das produções culturais da classe dominante, armas da classe dominada.
A teoria do desvio
Os autores começam declarando que a arte não pode mais ser vista como uma esfera superior da atividade do espírito humano. A arte passou a ser “profanada” com a ascensão do capitalismo e da emergência de novas relações de produção – como se o racionalismo capitalista retirasse toda a aura das obras de arte e da atividade artística.
Todos os meios de expressão, segundo os autores, se transformaram em uma grande máquina de propaganda que “deve compreender todos os aspectos, em perpétua interação, da realidade social”. Portanto, “nesse contexto, a herança literária e artística da humanidade deve ser utilizada para fins de propaganda apoiadora. Ela precisa, bem claro, ir além da ideia do escândalo. A negação da concepção burguesa do gênio e da arte já foi em muito superada, os bigodes da Gioconda não apresentam nenhum caráter mais interessante que a primeira versão dessa pintura. É preciso agora prosseguir com esse processo até a negação da negação”.
É preciso entender que a subversão dadaísta já foi engolida pelo capital, já se apresenta como parte da cultura inofensiva transformada em ideologia. Bretch, que realizava cortes em peças clássicas para aumentar o seu poder educativo, só os fazia dentro de um “respeito imaturo pela cultura”. Ainda havia alí um respeito pela cultura, faltava, então, dar um passo a mais.
Este próximo passo estaria relacionado com a subversão do produto cultural em uma arma contra o aparelho que o produz. “Todos os elementos, tomados não importa onde, podem ser o objeto de novas relações. As descobertas da poesia moderna sobre a estrutura de analogias da imagem demonstrou que entre dois elementos, de origens totalmente distintas, sempre se pode estabelecer uma relação”. Novas relações são feitas entre objetos que não parecem se relacionar e um novo significado emerge desta mistura.
Mas esta subversão, este desvio, não está ausente de regras.
As classificações e regras do desvio
“Podem-se definir primeiramente duas categorias principais para todos os elementos desviados, e sem diferenciar se seu uso é acompanhado ou não de melhorias introduzidas nos originais. São os desvios menores e os desvios enganosos”.
A) Desvios menores: são desvios de objetos sem importância própria. A sua importância é adquirida de acordo com o contexto em que é colocado, “por exemplo, recortes de jornal, uma frase neutra, a fotografia de um sujeito qualquer”.
B) Desvios enganosos: são desvios de objetos que têm uma significação por si só e, com a prática do desvio, adquirirá uma nova significação, pois estará disposto em novas relações. “Um slogan de Saint-Just, uma sequência de Einsenstein, por exemplo”.
Todas as obras desviadas vão conter uma série de desvios menores e enganosos. Além disso, algumas regras precisam servir com guia para a prática do desvio:
1) Aquilo que faz com que o desvio tenha seu caráter de subversão são os elementos desviados de um contexto mais distante. “Por exemplo, em uma metagrafia sobre a Guerra Civil Espanhola, a frase com sentido mais claramente revolucionário é uma propaganda incompleta de uma marca de batom: ‘os lábios lindos são vermelhos'”.
2) As modificações nos elementos desviados precisam ser mínimas e mais simples possíveis. É necessário entender que o que faz o desvio ser eficiente é a compreensão consciente ou inconsciente daquilo que é desviado e das novas relações que se formaram depois do desvio. Todo desvio, portanto, precisa ser pensando tendo a preocupação de atingir um dado público. Não há nenhuma forma absoluta de expressão, então se cria a necessidade de entender quem verá o desvio, para fazer as modificações que mais se adaptarão a eles.
3) O desvio não pode ser uma simples resposta racional. “Quanto mais o caráter racional da réplica é aparente, mais ela se confunde com o espírito banal de resposta pronta, já que se trata de usar do mesmo modo os discursos do adversário contra ele mesmo”.
4) “O desvio por simples reversão é sempre o mais imediato e o menos eficaz”. Ir até a igreja e realizar um desvio clamando por satanás terá uma visibilidade imediata, mas morrerá rapidamente. O desvio só é eficaz se se tornar algo à parte: ele não pode depender do contexto original dos elementos desviados.
Apenas a primeira regra é universal, as outras podem ser seguidas conforme as características próprias dos elementos desviados. “As primeiras consequências aparentes da geração do desvio, além dos poderes intrínsecos de propaganda que ele carrega, serão a reapropriação de um sem número de livros ruins; a participação massiva de escritores ignorados; a diferenciação cada vez maior das frases ou das obras plásticas que estão na moda; e, sobretudo, uma facilidade de produção superando de muito longe, pela quantidade, variedade e qualidade, a há muito entediante escrita automática”. Quando Debord e Wolman se referem à escrita automática, estão apontando diretamente para o surrealismo.
Os autores dão o exemplo da 3ª sinfonia de Beethoven, que foi denominada “Sinfonia Eroica” (segundo alguns estudiosos, esta sinfonia seria uma homenagem à Napoleão, teria até mesmo sido chamada de “Napoleão”, mas após este se declarar imperador, Beethoven teria mudado para “Sinfonia Eroica”). Para eles, “um titulo sempre exerce grande influência, mas sua escolha não é verdadeiramente baseada em nada. Não seria, assim, errado fazer uma última correção ao título da ‘Sinfonia Eroica’, dando origem, por exemplo, a uma ‘Sinfonia Lênin'”.
O ultra-desvio
O ultra-desvio é a tendência do desvio ser “utilizado na vida social cotidiana”. Ou seja, são as pequenas modificações de sentido que são dadas para atos comuns do dia-a-dia. “As sociedades secretas da China antiga usavam uma grande sofisticação de sinais para reconhecimento, englobando a maior parte das atitudes mundanas (maneira de dispor copos; de beber; citações de poemas paradas em certos momentos). A necessidade de uma língua secreta, de senhas, é inseparável de uma tendência ao jogo. A ideia é que não importa qual sinal, não importa qual vocábulo, ele pode ser convertido em outra coisa, até mesmo em seu antônimo. As insurreições realistas de Vendée [guerra que aconteceu no período pós-revolucionário, na França], providas da imunda efígie do coração de Jesus, se chamavam de Exército Vermelho. No domínio, ainda que limitado, da política, essa expressão foi completamente desviada em um século”.
As roupas podem fazer parte do desvio, somando o disfarce ao jogo de ressignificação de elementos desviados. No fim, o ultra-desvio é a prática do desvio feita num contexto em que o desvio não é algo especial, mas obrigatório. Não é somente subversão, mas é também norma.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.