Para contar um pouco da história da Internacional Situacionista é necessário voltar no tempo e seguir os passos de seu líder, Guy Debord, em organizações anteriores. Para isso, devemos prestar atenção na Internacional Letrista. A IL foi uma organização de cunho artístico fundada em 1952 que publicou do seu ano de nascimento até 1954 o periódico Internationale Lettriste e depois, até 1957 (ano de sua dissolução), 29 números do periódico Potlatch. As informações são do Vitruvius.
Os periódicos tinha como tema central a arte, mas no Potlatch, as temáticas de superação do surrealismo, de uma ação além da arte, foi mote para a produção de artigos que tratavam da vida cotidiana, da relação da arte com a vida como um todo e da arquitetura e urbanismo na cidade, criticando o funcionalismo moderno.
Michèle Bernstein, Franck Conord, Mohamed Dahou, Gil Wolman e Jacques Fillon eram os membros mais influentes do Potlatch, todos editores junto com Debord, e já mostravam os conceitos básicos que seriam desenvolvidos na Internacional Situacionista, como a psicogeografia, a ideia da deriva e o conceito que deu nome ao grupo posterior, a “criação de situações”.
Os estudos pré-situacionistas
Segundo o próprio Debord, em artigo publicado na revista Les lévres nues, “a psicogeografia pode determinar o estudo das leis precisas e efeitos específicos do ambiente geográfico, organizado, conscientemente ou não, nas emoções e no comportamento dos indivíduos. O adjetivo psicogeográfico, sendo agradavelmente vago, pode assim ser aplicado aos achados resultantes deste tipo de investigação, à sua influência nos sentimentos humanos e, ainda mais genericamente, a qualquer situação ou comportamento que pareça refletir o mesmo espírito da descoberta”.
A teoria da deriva só foi formulada de maneira consistente posteriormente, quando a Internacional Situacionista já estava formada, e tinha como fundamento a tentativa de conhecer o ambiente urbano de maneira inédita. Segundo Debord, em artigo publicado no periódico da Internacional Situacionista (e reproduzido pelo CMI), “uma ou várias pessoas que se lançam à deriva renunciam, durante um tempo mais ou menos longo, os motivos para deslocar-se ou atuar normalmente em suas relações, trabalhos e entretenimentos próprios de si, para deixar-se levar pelas solicitações do terreno e os encontros que a ele corresponde. A parte aleatória é menos determinante do que se crê: no ponto de vista da deriva, existe um relevo psicogeográfico nas cidades, com correntes constantes, pontos fixos e multidões que fazem de difícil acesso à saída de certas zonas”.
A psicogeografia é o saber para se estudar os resultados de uma prática de deriva. Já a criação de situações sempre foi um enorme mistério, pois nunca foi plenamente aplicado pelos situacionista, entretanto, a respeito de sua conceituação, podemos citar o texto coletivo publicado na revista Une idée neuve en Europe (reproduzido pelo site Vitruvirus), “a construção de situações será a realização contínua de um grande jogo deliberadamente escolhido; a passagem de um ao outro desses cenários e desses conflitos em que os personagens de uma tragédia morreriam em vinte e quatro horas. Mas o tempo de viver não faltará mais. Uma crítica do comportamento, um urbanismo influenciável, uma técnica de ambiências devem se unir a essa síntese, nós conhecemos os seus primeiros princípios. É preciso reinventar em permanência a atração soberana que Charles Fourier chamava de livre jogo das paixões”.
A criação de situações é a encenação não-teatral de um situação que pudesse fazer com que os espectadores tomassem as rédeas de suas vidas, ou seja, seria algo que retiraria todo e qualquer espectador de uma posição passiva e os fariam tomar a posição de sujeitos históricos.
A fundação da Internacional Situacionista
Em 1956, o grupo MIBI (Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista, que durou de 1954 até 1957) realizou uma reunião entre diversos grupos europeus que tratavam de questões parecidas, mesmo que independentemente, como o London Psychogeographical Association – LPA (comandado por Ralph Rumney) e a própria Internacional Letrista. Membros dos grupos de oito países diferentes se encontraram em Alba, na Itália e realizaram o que seria o rascunho da fundação da IS, já que, no ano seguinte, em Cosio d’Arrosca, Debord fundou a Internacional com estes mesmos membros presentes em Alba.
Depois de sua fundação, o grupo conseguiu adeptos de diversos países como Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Argélia. A IS publicou 12 números de sua revista homônima, mas foi somente após a sexta edição que a temática dos situacionistas se voltou para questões revolucionárias e políticas, o que culminou na participação ativa no Maio de 68 de seus integrantes e de sua teoria.
Os situacionistas tinham publicados as edições da revista homônima, inúmeros panfletos e alguns livros que influenciaram a revolta de Maio de 68, como o livro assinado pelo coletivo “A Miséria do Meio Estudantil”, “A Arte de Viver Para Novas Gerações”, de Raoul Vaneigem, e o clássico “A Sociedade do Espetáculo“, de Guy Debord. Após o abrupto crescimento do coletivo, houve a impossibilidade de mantê-lo sob administração rígida (papel que Debord desempenhava) e em 1972 a Internacional Situacionista se dissolveu.
Da proposta de uma cidade à crítica da cidade
Os situacionistas pretendiam utilizar suas formulações sobre a psicogeografia, deriva e a criação de situação, para elaborar um pretensioso novo projeto de mudança social, a construção de cidades situacionistas, segundo Debord no texto Sobre a Arquitetura Selvagem, “sabe-se que no princípio os situacionistas pretendiam, no mínimo, construir cidades, o ambiente apropriado para o despertar ilimitado de novas paixões. Porém, como isso evidentemente não era tão fácil, nos vimos forçados a fazer muito mais”.
Deborda ainda escreveria em seu ensaio “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional” que “a pesquisa psicogeográfica […] assume assim seu duplo sentido de observação ativa das aglomerações urbanas de hoje, e de formulação de hipóteses sobre a estrutura de uma cidade situacionista”.
Fica claro que o objetivo dos situacionistas era planejar e colocar em prática a construção de uma nova cidade. Ao contrário dos arquitetos da época, os situacionistas viam na arquitetura uma maneira de libertar os sujeitos para sua ação política, ao invés de evitar revoluções e revoltas – como este trabalho ficou cada vez mais difícil, a atenção do grupo precisou se voltar para ações mais palpáveis, como as críticas ácidas que foram direcionadas à sociedade em que viviam (e que resultaram nos melhores textos dos membros da IS).
A tese situacionistas era de que a construção de situações por toda a cidade, tomando como base o método de análise psicogeográfico e a técnica da deriva, impulsionaria uma revolução da vida cotidiana. “Esta seria a fronteira onde nasceria a alienação mas onde também poderia crescer a participação; assim como o lazer seria o tempo livre para o prazer e não para a alienação, o lazer poderia passar a ser ativo e criativo através da participação popular”, relata a matéria no Vitruvírus.
Se a psicogeografia era definida como “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” e a deriva como “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência”, então a deriva seria uma forma de conseguir bolar as situações, construí-las, enquanto se apropria da rua pelo andar sem rumo.
Uma geografia afetiva, pode ser a descrição da psicogeografia que, apoiada com a técnica da deriva, mapeava e documentava as diferentes ambiências psíquicas do andante sem rumo pelas ruas da cidade. Estes mapas foram de fato realizados e transformados no livro que quase passou a ser o símbolo situacionista: The Naked City foi lançado em 1957 e é um recorte de mapas de Paris em preto e branco com ligações em vermelho de possíveis relações que cada pedaço de mapa recortado poderia ter com o outro. Cada recorte era tido como uma Unidade e essas unidades não eram colocadas em uma ordem geograficamente correta, mas eram dispostas pelas suas ligações afetivas. Elas correspondiam ao final do estudo psicogeográfico feito pelas inúmeras experiências de deriva que Debord e seus colaboradores fizeram.
Este é uma das melhores expressões do pensamento urbano situacionista e da ideia do Urbanismo Unitário. Cada seta vermelha indicava uma possibilidade de deriva e, por fim, incitava o leitor a realizar novos “jogos” dentro do ambiente urbano.
Segundo Debord, “A confecção de mapas psicogeográficos e até simulações, como a equação – mal fundada ou completamente arbitrária – estabelecida entre duas representações topográficas, podem ajudar a esclarecer certos deslocamentos de aspecto não gratuito mas totalmente insubmisso às solicitações habituais. As solicitações dessa série costumam ser catalogadas sob o termo de turismo, droga popular tão repugnante quanto o esporte ou as vendas a crédito. Há pouco tempo, um amigo meu percorreu a região de Hartz, na Alemanha, usando um mapa da cidade de Londres e seguindo-lhe cegamente todas as indicações. Essa espécie de jogo é um mero começo diante do que será a construção integral da arquitetura e do urbanismo, construção cujo poder será um dia conferido a todos”.
A Sociedade do Espetáculo e Maio de 68
A virada política da IS teve como ponto máximo o livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, lançado em 1967. Se The Naked City quase foi o símbolo da IS, este destino não se concretizou pela onda de escritos críticos-políticos produzidos pelo coletivo nos últimos seis números da revista homônima do grupo.
Debord realizou uma análise minuciosa da sociedade que estava emergindo com a explosão dos meios de comunicação tendo como base a dialética hegeliana e a dialética marxista. Ninguém e nada escapa de suas críticas, desde o surrealismo, o dadaísmo, o liberalismo americano e o stalinismo soviético – Debord não deixa de lado nem mesmo os estruturalistas, que dominavam o mundo acadêmico francês, na época.
O conceito de espetáculo pode ser resumido em “ideologia em todas as esferas da vida”. É quando a ideologia domina tudo e a vida passa a ser vista como pura imagem, como mero espetáculo, sem um significado real, sem a presença de um núcleo duro em cada conceito da vida cotidiana. Debord também lançou um filme com o mesmo nome, baseado em recortes de imagens sem ligação aparente e trechos do livro.
Mais tarde, Debord elaborou a técnica do desvio, largamente utilizada em Maio de 68, que se trata de retirar um dado produto cultural, seja ele qual for, esteja ele onde estiver, de seu contexto e colocá-lo em um novo contexto. Este novo contexto transformaria o produto cultural em uma arma contra a própria ideologia presente nele anteriormente.
“O desvio não leva apenas à descoberta de aspectos novos do talento; somando-se a isso, e se chocando contra todas as convenções sociais e legais, não poderá falhar em se tornar uma arma cultural a serviço da verdadeira luta de classes. Os seus produtos baratos são a artilharia pesada que derruba todas as Muralhas da China do conhecimento. É um verdadeiro meio de educação artística do proletariado, o primeiro passo em direção a um comunismo literário”, escreve Debord em seu Guia Prático para o Desvio.
Dadaísmo, surrealismo, marxismo e revolução cultural. O Situacionismo ainda vive como crítica à sociedade do espetáculo!
Artigos sobre o situacionismo
- Internacional Situacionista: teoria do desvio
- Orientações para se debater a Internacional Situacionista
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
3 Comentários