Interpretando Hobbes – Foucault

O artigo discute a noção de guerra civil como modelo de guerra de todos contra todos proposto por Thomas Hobbes em Leviatã. Michel Foucault considera que tal noção não comporta os elementos coletivos que se desenvolvem e se movem durante o processo da guerra civil. É necessário rejeitar a ideia hobbesiana de que o estabelecimento de um soberano e seu exercício do poder anulam a guerra em seu espaço de dominação, pois na própria guerra civil há movimentação do poder estabelecido e não estabelecido.

Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça.

Thomas Hobbes[1]

La Liberté guidant le peuple (A liberdade guiando o povo), 1830, por Eugène Delacroix.
La Liberté guidant le peuple (A liberdade guiando o povo), 1830, por Eugène Delacroix.

Para Michel Foucault, há uma tradição na teoria política que associa a guerra civil com a guerra generalizada de todos contra todos, tendo como referência a obra Leviatã de Thomas Hobbes, onde o autor constrói tal ligação partindo do princípio de que a guerra civil seria, de certa forma, um retorno à guerra fora do estabelecimento de um soberano:

 

É fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacifico costumam deixar-se cair, numa guerra civil.[2]

Primeiramente, Hobbes não afirma a universalidade factual do estado de guerra de todos contra todos que aconteceria no momento anterior ao estabelecimento de um soberano e suas leis, no entanto, coloca em relevo sua potencialidade:

Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra.[3]

Para Hobbes, o continente americano do século XVII é um exemplo factual do estado de selvageria, de guerra de todos contra todos:

Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem qualquer espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi.[4]

Os povos da América vivem em estado de guerra. Este estado de guerra pode ser visto, então, in loco, no continente americano, e em modelo, nas guerras civis. Foucault salienta[5] que, apesar da noção de guerra de todos contra todos ser criticada no século seguinte por pensadores da ciência política, a aproximação entre a guerra civil como versão da guerra de todos contra todos nunca foi alvo de comentários.

Mas o filósofo francês entende que não há fundamento na equiparação entre a guerra civil e a guerra de todos contra todos. Inicialmente, há três dimensões que caracterizam a guerra geral:

  1. A noção do estado natural de guerra feito por Hobbes está numa dimensão natural e universal no campo das relações entre os indivíduos e na qualidade de indivíduos, já que a guerra generalizada acontece, primeiramente, porque os indivíduos, dentro desta noção, são iguais nos objetos e objetivos que visam e equivalentes na potencialidade de utilizar os meios necessários para consegui-los. Os indivíduos são, de certa forma, substituíveis uns pelos outros:

    Quando algo é oferecido ao desejo de um, o outro sempre pode substituir esse um, querer tomar seu lugar e apropriar-se daquilo que o primeiro deseja. Essa substitutibilidade dos homens entre si, essa convergência do desejo vão caracterizar essa rivalidade originária.[6]

  2. Com base na situação natural de combate eterno, somente a vitória de um dos combatentes a partir do aumento de poder, que é não só a satisfação do gozo natural, mas a detenção dos instrumentos necessário para seu alcance: somente o aumento do poder em relação aos outros, de tal maneira que já não faça parte da equivalência na guerra geral e, assim, não seja visado, não substituível, poderá garantir a segurança de evitar outros que tentarão gozar os objetos que ele próprio conseguiu.
  3. Os signos de glória (o status social expressado a partir de signos, como título de nobreza) são elementos que marcam a qualidade de insubstituível e impõem respeito àqueles que tentariam substituir o indivíduo glorificado.

Somente através da transferência de poder a um indivíduo ou a uma assembleia que será responsável por determinar qual será a vontade geral a sociedade poderá nascer enquanto efeito propriamente social e restabelecer a paz. Quando o poder se atenua e se dissocia, volta-se aos poucos ao estado de guerra. “De certo modo, portanto, a guerra civil é o estado terminal da dissolução do soberano, assim como a guerra de todos contra todos é o estado inicial a partir do qual o soberano pode constituir-se”[7].

No entanto, Foucault coloca em jogo uma concepção alternativa a de Hobbes para guerra civil: ao contrário da concepção do inglês, não há guerra civil sem um confronto de elementos coletivos (como parentes, clientelas, religiões, etnias, comunidades linguísticas e classes). A guerra civil não tem relação direta com a dimensão natural das relações entre indivíduos, pois seus atores são sempre grupos na qualidade de grupos e, além disso, também é um processo de construção de novos elementos coletivos, como o campesinato no que se constituiu como classe, como comunidade ideológica com interesses coletivos, a partir de levantes populares do século XV ao século XVIII.

Portanto, não se deve de modo algum ver a guerra civil como algo que dissolveria o elemento coletivo da vida dos indivíduos e os levaria de volta a algo como sua individualidade originária. A guerra civil, ao contrário, é um processo cujos personagens são coletivos e cujos efeitos são, além do mais, o aparecimento de novos personagens coletivos.[8]

Diferente daquilo estabelecido na teoria política, a guerra civil não é uma etapa anterior à constituição do poder, como desenvolvido acima a partir dos escritos de Hobbes, além de não ser um marco de sua história, que sinalizaria seu desaparecimento. “A guerra civil desenrola-se no teatro do poder. Não há guerra civil a não ser no elemento do poder político constituído; ela se desenrola para manter ou para conquistar o poder[9].

A guerra civil não destrói o poder, mas se apoia em seus elementos para acontecer. Ou seja, as coletividades em combate na guerra civil elaboram estratégias em conformidade com os elementos e relações de poder para mirar na vitória. Há procedimentos utilizados na guerra civil em relação ao poder:

  1. Reativação de fragmentos do poder: nas revoltas frumentárias do século XVIII, quando da carestia de grãos e a elevação do preço do pão, os próprios revoltosos reativaram as antigas regras do fim do século XVI que determinavam que o grão não poderia ser vendido nos mercados aos maiores compradores antes de ser ofertado aos pequenos compradores.
  2. Inversão de relações de poder: “Os massacres de setembro durante a Revolução Francesa foram uma espécie de justiça ao contrário, ou seja, a reconstituição de um tribunal”[10]. Até mesmo a reativação das regras de compra do trigo mostram uma inversão da relação de poder promovida pelos revoltosos.
  3. Apropriação: a relação de poder passa a funciona de modo que atenda aos interesses dos revoltosos. Novamente, Foucault cita o exemplo da revolução francesa: “tem-se o esquema de reativação, pois se trata de protestar contra a inércia do tribunal pretensamente revolucionário, que acabava de ser estabelecido nas semanas anteriores, Há inversão pois são submetidos a esse tribunal popular aqueles que por determinação política, estavam destinados a escapar ao tribunal revolucionário: aristocratas e eclesiásticos. Logo, tem-se aí um esquema de apropriação, reativação e inversão da relação de poder”[11].
  4. Efetivação: os movimentos que se desenvolvem de maneira coletiva, decentralizada, podem efetivar a centralização política através do mito: inventando um suposto chefe e construindo uma organização ao redor dele, mantendo um sentido de futuro para as ações do movimento.

Não há guerra civil sem trabalho diretamente relaciona ao poder, ela não é um elemento externo a ele. Ao mesmo tempo, há um nível de análise em que se pode afirmar a antítese entre poder e guerra civil: o nível do poder estabelecido. Este poder tenta colocar para fora de si toda guerra civil, pois é ela que o ameaça de fora, a guerra civil é o elemento que assombra o poder, que lhe habita, permeia, anima e investe.

Considerações finais

A guerra civil não deve ser vista como elemento fora do poder (em geral), nem mesmo fora do poder estabelecido. Apesar de ser a ameaça externa, é aquilo que circunda as práticas de Estado sob a forma da “vigilância, da ameaça, da posse da força armada, enfim de todos os instrumento de coerção que o poder efetivamente estabelecido adota para exercer-se”[12].

Os instrumentos e táticas de poder devem ser analisados sob o prisma da guerra civil, portanto. O poder, assim, não é aquilo que suprimiria a guerra civil, mas é sua condição, é o que lhe possibilita continuar ou parar.

“E, se for verdade que a guerra externa é o prolongamento da política, caberá dizer, reciprocamente, que a política é a continuação da guerra civil[13], sendo assim, é necessário rejeitar a ideia hobbesiana de que o estabelecimento de um soberano e seu exercício do poder anulam a guerra em seu espaço de dominação. Pelo contrário, mantêm sua presença.

Referências

[1] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil (os pensadores). 3ª ed. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 419 p.

[2] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil (os pensadores)…

[3] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil (os pensadores)…

[4] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil (os pensadores)…

[5] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva. Curso no Collège de France (1972-1973). São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.25.

[6] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.25.

[7] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.27.

[8] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.28.

[9] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.28.

[10] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.29.

[11] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.29.

[12] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.30.

[13] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.31.

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