Justiceiros de copacabana e o bolsonarismo

O fenômeno dos justiceiros de Copacabana ressurgiu como uma tragédia mais ou menos previsível nas ruas do Rio de Janeiro. O mesmo fenômeno já havia existido no início deste século, mas foi rapidamente abrandado. Há uma novidade neste reaparecimento: o discurso do bolsonarismo é vigente em nossa sociedade.

Trata-se de um elemento novo no cenário discursivo brasileiro e elemento novo na formação de subjetividades. O bolsonarismo é um novo modo de subjetivação que, dentre diversas características, a virilidade e o uso da violência para resolver problemas sociais são facilmente observáveis.

É evidente que os justiceiros não precisam ser bolsonaristas declarados. O sujeito do discurso é atravessado. Independentemente de sua auto declaração, é atravessado pela formação ideológica que insere a violência como ferramenta de resolução de problemas sociais e a formação discursiva que insere o enunciados como o de Rachel Sheherazade na normalidade do dito: “O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva”.

A então jornalista do SBT que proferiu este enunciado em 2014 falava sobre o linchamento de um criminoso. É interessante compreender o lugar histórico da prática de linchamento no Brasil. Segundo José de Souza Martins, em pesquisa realizada a partir da coleta de 2028 casos entre 1948 a 1998, foi possível identificar que 2.579 pessoas foram vítimas de linchamentos, das quais 44,6% foram salvas, e 47,3% feridas ou mortas. As vítimas foram espancadas de maneira variada e somente 8,1% conseguiram escapar sozinhas, sem a ajuda de terceiros.

Segundo o professor William Héctor Gómez Soto, “Os linchamentos que ocorrem no Brasil são uma forma de vingança coletiva reparatória e compensatória. Portanto, não são meros atos de punição. A “crueldade elaborada” dos linchamentos é manifestação de uma cultura da morte e do corpo”. Cerca de um milhão de brasileiros participaram deste tipo de ritual coletivo de violência, segundo os dados recolhidos por José de Souza.

O bolsonarismo legitimou tal ato no campo da política. Matar supostos criminosos é um ato político de uma suposta defesa da sociedade contra cidadãos eleitos para serem supostos criminosos, geralmente eleitos por um olhar racista. Não é de se espantar que os justiceiros de Copacabana são homens brancos de classe média na caçada de um certo fenótipo negro brasileiro.


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O bolsonarismo transformou um ato de violência popular em um ato de segurança, situado numa política de suposta defesa pessoal que se relaciona com a própria concepção da possibilidade do armamento liberalizada pelo discurso bolsonarista. Segundo Bolsonaro em fala pública em 17 de maio de 2022:

Nós defendemos o armamento para o cidadão de bem, porque entendemos que a arma de fogo, além de uma segurança pessoal para as a famílias, ela também é a segurança para a nossa soberania nacional e a garantia de que a nossa democracia será preservada, não interessa os meios que porventura tenhamos que usar, a nossa democracia e a nossa liberdade são inegociáveis.

No contexto carioca, esta associação ainda tem ecos nas associações milicianas. O ponto que eu gostaria de destacar aqui é que a violência própria dos linchamentos justiceiros não nasce do nada. Não é uma emergência aleatória e nem mesmo é fruto de indivíduos com problemas psicológicos. Individualizar o fenômeno dos justiceiros é patologizar um problema propriamente social e político. A moralização dos indivíduos justiceiros é um problema que pode valer à pena para compreender como conviver ou não com estes indivíduos, mas o fenômeno é propriamente social e político.

Este fenômeno é uma prova da força ainda presente do bolsonarismo. O bolsonarismo não é produto daquilo que Jair Bolsonato diz. Bolsonaro é só uma maneira de pessoalizar em um ícone específico este discurso, mas o discurso não depende dele. Um discurso não depende de um indivíduo e nem depende do que uma pessoa específica fala. Um discurso se forma historicamente. Nosso momento histórico é constituído pelo bolsonarismo, o saber político do presente é também bolsonarista.

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Anexo

Abaixo, um trecho da entrevista de Michel Gherman ao canal do Colunas Tortas no Youtube.

Michel Gherman: O que o Bolsonaro está propondo, e chegou ao poder apoiado pelo neoliberalismo, é a morte de todos. Nossa e dele. Isso que é trágico, isso que é trágico. Me lembra a ideia do mercador de Veneza, a ideia de que “a tua morte e a minha morte caminham juntas para a morte de todos” . É disso que o Alvim está falando, Alvim não está sendo somente um homem que promove exclusão, promove-se a morte e o suicídio. Nada mais coerente com o nazismo do que a morte de Hitler, do que a prática dele de produzir falas sobre a própria morte, de caminhar em direção à própria morte, de não se vacinar e falar sobre isso.

Não dá pra entender o bolsonarismo sem entender a fala do Achille Mbembe de que essas perspectivas que promovem necropolítica são de compromisso com o outro e consigo, no sentido de produzir a morte do outro e a própria morte. Estamos falando de um regime homicidário e suicidário. No final, se todos morrerem é que deu certo.

[…]

Em algum sentido, os nazistas não matavam judeus, consideravam o que eles consideravam judaico, porque se você se convertesse você não deixaria de ser morto, ou seja, a vitimização se dá a partir do assassino não a partir da vítima.

No caso do Bolsonarismo, ele veio numa onda de propaganda onde se criminalizava a esquerda, o petismo, o lula. O desejo que levou à eleição do Bolsonaro foi a possibilidade de você purificar o Brasil através da limpeza dessa esquerda. Isso não se parece com nazismo, isso é nazismo

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