Um dos conceitos fundamentais da filosofia existencialista sartreana é o de liberdade, uma vez que, para o filósofo, o homem está condenado a ser livre e toda a sua existência decorre desta condição. Assim, frente a uma decisão, o homem percebe o seu total desamparo, já que não há nada que possa salvá-lo da tarefa de escolher; em suma, nada pode salvá-lo de si mesmo – diria Jean-Paul Sartre.
Desse modo, o ser humano, fundamentando-se na sua estrita liberdade, vê-se a todo instante compelido a se inventar, posto que são suas escolhas que constroem a sua essência. Diante desta condição, cabe somente a ele estabelecer, através de suas ações concretas, os critérios que servirão de norte para as suas decisões, explica Sartre.
[…] o que se poderia chamar de moralidade cotidiana exclui a angústia ética. Há angústia ética quando me considero em minha relação original com os valores. Estes, com efeito, são exigências que reclamam um fundamento. Mas fundamento que não poderia ser de modo algum o ser, pois todo valor que fundamentasse a sua natureza ideal sobre seu próprio ser deixaria por isso de ser valor e realizaria a heteronomia de minha vontade. […] Daí que minha liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, justifica minha adoção dessa ou daquela escala de valores.[1]
Frente a esta falta de fundamentos prontos, o homem angustia-se diante da responsabilidade de escolher, visto que a escolha é ao mesmo tempo afirmação do valor daquilo que se escolhe, trazendo consigo, assim, o peso da responsabilidade. Desse modo, ao escolher algo e, consequentemente, afirmar o seu valor, estamos ao mesmo tempo comunicando a todos o caráter benéfico daquela escolha, já que não há ninguém que possa escolher o mal para si. Desse ponto de vista, nos tornamos responsáveis não só por nós, mas por toda a humanidade.
Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos.[2]
Quando Jean-Paul Sartre diz que “nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos”, ele quer dizer, precisamente, que ao escolhermos algo, estamos optando por uma alternativa que, dentro das condições de existência nas quais estamos inseridos, seria a melhor opção e, por ser a melhor, todos também poderiam optar pela mesma. Assim, ao escolher algo, o homem cria um modelo de homem que outros podem seguir; daí a sua responsabilidade diante da humanidade.
O existencialismo de Sartre, ao contrário das filosofias contemplativas, caracteriza-se por ser uma doutrina de ação, colocando sempre o compromisso como fator indispensável para a existência humana, uma vez que, sem compromisso, não há projeto de ser e, sem projeto de ser, o homem torna-se incapaz de conferir qualquer sentido à existência. Se a intencionalidade é a característica fundamental da consciência, ser livre é engajar-se, comprometer-se e, enfim, responsabilizar-se.
Portanto, concluímos que não há nada que possa eximir o homem da sua condição de ser livre e, consequentemente, da sua condição de responsabilidade diante de seus atos. Barreiras psicológicas, históricas ou socioeconômicas não são capazes de ofuscar a liberdade a qual Sartre se refere, pois estas nada mais são do que as condições de existência que possibilitam escolher por A ou B; sem tais condições, a escolha seria impossível; mais do que isso: toda a existência seria impossível.
Toda condição é, por sua natureza, uma limitação; contudo, é também o que possibilita a existência de algo. Logo, para que a liberdade exista, é necessário que existam as condições que possibilitem a sua existência, isto é, que possibilitem o ato da escolher, mas que também, por outro lado e ao mesmo tempo, limitem as possibilidades dessa escolha.
O homem é livre porque não é si mesmo, mas a presença a si. O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade humana a fazer-se em vez de ser.[3]
Diante dessa constante tarefa de fazer-se, do desamparo, da falta de fundamentos prontos e da responsabilidade que carrega diante de si e da humanidade, a liberdade traz ao sujeito a angústia existencial, a qual emerge no momento da decisão. Angustia-se, pois não é capaz de alterar as condições de existência que se lhe apresentam, tendo de escolher, por vezes, entre o ruim e o pior e tendo de arcar com as consequências dessa escolha; mais que isso, também não é capaz de não realizar essa escolha; e por fim, tem a incontornável tarefa de buscar, em sua subjetividade imanente, ou seja, na sua pura liberdade, os princípios que regerão sua escolha; isto é, terá de estar diante de seu próprio nada; eis o princípio da angústia.
E minha liberdade se angustia por ser o fundamento sem fundamento dos valores. Além disso, porque os valores, por se revelarem por essência a uma liberdade, não podem fazê-lo sem deixar de ser ‘postos em questão’, já que a possibilidade de inverter a escala de valores aparece, complementarmente, como minha possibilidade. A angústia ante os valores é o reconhecimento de sua idealidade.[4]
A liberdade, porém, não possui uma realidade concreta; não possui uma essência, uma vez que ela própria é o fundamento de toda a essência humana na medida em que fundamenta o agir, possibilitando a projeção da vontade do homem na existência e, por fim, a construção do seu ser, tendo em vista que, segundo a máxima sartriana, a existência precede a essência; isto é, primeiramente o homem é lançado na existência e, só depois, por meio de suas ações, este homem pode representar-se como sendo alguma coisa, pois, a priori, não era nada.
Como vimos, não há determinismos que possam eximir o homem da sua condição ontológica de liberdade. Contudo, na tentativa de livrar-se da angústia trazida pela responsabilidade que a liberdade carrega consigo, o homem refugia-se na má-fé. Sartre admite que a má-fé pode ser compreendida como o ato de mentir para si mesmo, mas um mentir que não comporta a dualidade do enganador e do enganado, pois, aqui, aquele que é enganado é também consciente da verdade que deseja suprimir. Porém, a má-fé tem por sua natureza mesma a característica de negar-se como má-fé, sendo um processo de constante e frustrado esforço, uma vez que, para que se possa fugir de algo que se faz presente na própria consciência, é necessário que se pense constantemente nesse algo; isto é, o projeto da má-fé consiste em encarar certo aspecto do ser com a pretensão de dele fugir, num só movimento; obviamente, na consciência, tal objetivo é impossível de ser realizado e, por ser impossível, a má-fé nunca se encerra em seu objetivo.
Basicamente, podemos compreender a má-fé como a tentativa de transferir responsabilidades que concernem unicamente ao indivíduo; ou seja, ao atribuir exclusivamente a fatores sociais, metafísicos, históricos ou até inconscientes o fundamento e as responsabilidades de sua escolha, o indivíduo se encontra no estado de má-fé, pois tais fatores exercem influência na sua decisão ao determinarem as possibilidades de escolha; contudo, cabe somente a ele optar, por meio de sua liberdade, por qual possibilidade lhe é mais adequada. Aqui, não há como fugir; só há espaço para a subjetividade do sujeito, ou seja, para o seu próprio nada de ser, e qualquer tentativa de preencher este espaço vazio será aqui denominada de má-fé.
Referências
[1] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Voltar ao texto ↑.
[2] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Voltar ao texto ↑.
[3] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Voltar ao texto ↑.
[4] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Voltar ao texto ↑.
Anexo
SILVA, A. M. V. B. A concepção de liberdade em Sartre. Filogenese, v. 6, n. 1, 2013, p. 102-103.
Escolher é angustiante porque o homem está lançado à vida, ele é responsável por tudo o que faz do projeto fundamental, isto é, de sua existência. Nessa perspectiva, para Sartre, o fato do ser humano ser sua própria angústia, sem dela poder fugir, remete o homem ao mascaramento dessa angústia e a eliminação de sua liberdade.
Essa atitude, como não se pode furtar nem da liberdade, nem da angústia, só se constitui como uma atitude de mentira, de engano. Ou seja, é somente no ato de enganar a si próprio, de mentir para si mesmo, que o homem pode desenvolver a crença de que não é angústia e sim, uma essência, um fundamento de sua própria existência.
Além do mais, a fuga da angústia não é apenas empenho ante ao devir: ela tenta desarmar a ameaça do passado. Nesse caso, tenta escapar da sua própria transcendência, na medida em que sustenta a liberdade e ultrapassa sua essência.
Tudo isso porque essa condenação ontológica do homem é a própria liberdade,
dirá Sartre. “A conseqüência essencial das observações anteriores é de que o homem está condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser”.
Eis aqui o sentido fundamental da responsabilidade para Sartre; a responsabilidade implica no poder do homem enquanto centro da existência. É o homem o autor da totalidade das coisas e também o autor do seu próprio ser.
Em última análise, o homem não tem desculpas para sua própria existência, porque desde o momento em que nasce ele se torna ser, ele carrega sozinho o peso do mundo, sem que nada ou alguém possa torná-lo leve. A responsabilidade tem um alicerce sobre todas as realidades, menos sobre si mesma, dado que o homem é gratuitamente abandonado, condenado à liberdade e à responsabilidade.
– Aline Maria Vilas Bôas da Silva.
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Republicou isso em With Johnnie Walker Eyese comentado:
“O homem percebe o seu total desamparo, já que não há nada que possa salvá-lo da tarefa de escolher; em suma, nada pode salvá-lo de si mesmo”.
Escolher é gerar e projetar mais possibilidades.
Mas a escolha em si já limitada justamente por existirem opções, por mais incontáveis ou contáveis que sejam.
Mas é essa limitação que dá sentido às coisas.
Mesmo fazendo a escolha de fazer nada, isso por si já é uma escolha.
Escolher não projetar mais, é descobrir mais, é explorar.
O ser humano conclama a liberdade como algo ou alguma coisa a ser alcançada, construída, desejada e, no entanto, é a sua própria essência e, como tal, padece de reconhecimento.
Com tudo isso que vir , conclui que samos todos limitados em nossos direitos de escolha ! vejo que o que seria bom para mim , não seria bom para todos ! .
A idéia do conceito de má fé, aqui apresentada, em muito coincide com a ideia de “banalidade do mal”, apresentar por Hanna Arendt, quando analisou circunstâncias em que determinados soldados ou funcionários de um dado Estado, apenas seguem ordem, transferindo as responsabilidades de suas consciências, as ordens de seus superiores.
Se faz agora, o necessário (re)pensar: Onde e quando a nossa ‘liberdade’ de escolha colocaria nossas existências situadas à uma significância não banalizada e nem de má fé?
Esta linha de pensamento não corre o risco de nos levar ao niilismo ?
Acontece que eu não tenho escolha, por isso mesmo é que eu sou livre!!!
O nome do autor é Lucas Caminha kkkk que bonitinho kkkkk
Além disso, belo texto
A um comentário anterior acima: Se me é dada a possibilidade de escolha, mesmo que eu escolha não escolher, é que configura minha liberdade. O fato de eu não ter escolha, me remete ao determinismo, isto é, não importa que escolha eu faça, estarei determinado ao mesmo fim. Se minha escolha não faz diferença no fim, se eu não tenho escolha, não tenho liberdade.