Da série “Necropolítica“.
Índice
Introdução
No momento limite da vida que não vale à pena ser vivida, a morte sacrificial se torna previsível, se torna uma possibilidade prática de amplo alcance. É necessário introduzir que a noção de vida aqui tratada não está localizada num dado da natureza nem mesmo num valor moral abstrato: a vida que não vale à pena ser vivida está localizada nas práticas de constituição dos corpos que podem morrer. Isso na medida em que o corpo, a partir da leitura de Fernando Silveira e Reinaldo Furlan da filosofia de Michel Foucault, é
o campo (porque as forças atravessam e constituem a realidade corpórea, não há força sem corpo) de forças múltiplas, convergentes e contraditórias, e o próprio lugar da sedimentação de seus combates.[1]
Um campo definível e modificável, portanto, um elemento a ser entendido e que é sempre fabricado, logo, neste nível é sempre artificial:
A noção de corpo em Foucault não é naturalista: o corpo não é braço, perna, organismo completo e a relação entre os órgãos, isso é evidente. Claro que o corpo biológico existe, o ponto é que a noção não está neste nível de análise. Quando Foucault fala sobre corpo, sua aproximação é justamente daquilo que parece não ter história, como os instintos.[2]
A necropolítica, então, constitui corpos à morte: tanto para a gestão da sociedade como para suas próprias vítimas, que são inseridas numa dinâmica de morte previsível, de vida vivida como espera da morte. O objetivo deste artigo é expor o fenômeno do suicídio numa dinâmica necropolítica como entendida por Achille Mbembe em Políticas da Inimizade.
O fim
Na medida em que o ato de máxima expressão do soberano é o fazer morrer, portanto, cometer a transgressão da morte, a vida do colonizado, daquele que está submetido e é constituído pela estratégia necropolítica é uma vida que só poderá realmente se mostrar como livre quando se puder viver a própria morte:
Não há dúvidas de que, nesse caso, o sacrifício consiste na espetacular submissão da si à morte, de tornar-se vítima por seu próprio empenho. O “autossacrificado” prossegue a fim de tomar posse de sua própria morte e de encará-la firmemente.[3]
Tomar posse de sua morte na medida em que a vida já não faz parte de qualquer noção possível de posse: a vida vivida é a posse negada de si, mas diretamente negada. Não se trata de um fazer viver biopolítico que investe suas forças no corpo-espécie e, ao mesmo tempo, mantém saberes econômicos, morais e políticos que servem à constituição de si no campo da liberdade; não se trata do sequestro dos corpos pelos dispositivos disciplinares que, após o período de reforma, entregariam corpos dóceis e livres em sua docilidade adequada,
pois, afinal, o suicídio interrompe brutalmente qualquer dinâmica de sujeição e qualquer possibilidade de reconhecimento. Dar adeus à própria vida de maneira voluntária, estregando-se à morte, não significa necessariamente desaparecer de si mesmo. É pôr voluntariamente um fim ao risco de ser tocado pelo Outro e pelo mundo. É recorrer ao tipo de desinvestimento que obriga o inimigo a confrontar o seu próprio vazio.[4]
No limite, a morte do suicida necropolítico expõe o nada presente no Outro, mas um nada sem utilidade: a morte é o destino que está programado e, quando vem abruptamente, exibe o único risco da gestão necropolítica que é o risco de não se ter corpos para gerir, o risco de administrar de maneira fraca um recursos utilizado, um alvo recorrente e que desempenha a função de inimigo.
Quando consegue executar uma ação suicida, o sujeito não só se mata, mas leva consigo parte daquilo que lhe inseriu na situação de permanente medo pela vida e calma diante da morte. Talvez a única maneira do dominado conseguir provocar danos aos dominadores, “em todo caso, não busca mais participar do mundo como ele é. Ele se desfaz de si mesmo e, a reboque, de alguns inimigos. Ao fazer isso, tira férias do que era e se dissocia das responsabilidades que eram suas enquanto pessoa viva”[5].
É notável tal situação através da análise do fenômeno dos homens-bombas, mas também é possível de ser observado nas constantes situações de risco vividas por qualquer participante do crime organizado no Brasil, em que o risco pela vida e a possibilidade de morte dos inimigos se torna um modo de vida que banaliza a morte e, de certa forma, a coloca num estatuto de honra, martírio, sacrifício.
O suicida que mata seus inimigos no ato de se matar mostra até que ponto, no que se refere à política, a verdadeira fratura contemporânea é a que contrapõe aqueles que se agarram a seus corpos e que assumem o corpo como a vida e aqueles para quem o corpo só abre o caminho para uma vida feliz se for expurgado.[6]
O corpo fabricado para morrer só se resolve na felicidade quando a morte é controlada pelo próprio sujeito: é a liberdade de morrer como se quer que atravessa o campo de possibilidades práticas para uma vida não dominada. A prática de liberdade específica dos alvos da necropolítica está diretamente relacionada, seguindo a mesma diretriz de morte da estratégia dita, ao desfalecimento do corpo.
Quando fala sobre o suicídio num contexto de forte identificação religiosa, Mbembe[7] exibe uma lógica de aproximação do infinito, do absoluto, do nada ou do todo:
Quem se predispõe ao martírio se lança em busca de uma vida feliz. Vida essa que ele acredita residir junto ao próprio Deus. Ela nasce de uma vontade de verdade que é assimilada a uma vontade de pureza. E não existe relacionamento autêntico com Deus que não seja por meio da conversão, ato pelo qual a pessoa se torna outra em relação a si mesma e, ao fazê-lo, escapa à vida postiça, ou seja, impura. Aceitar o martírio é fazer um voto de destruição da vida corporal, da vida impura.
A vida é impura justamente pela impossibilidade de felicidade. A vida feliz enquanto conceito ocidental é uma possibilidade abstrata aberta a literalmente qualquer um com o mínimo contato com a cultura desta mesma civilização: o bombardeiro espetacular das possibilidades de gozo na civilização está em contato direto com parcelas das populações que literalmente nunca poderão sequer se aproximar do objetivo final da felicidade consumista.
Condenados da fé
Diferentemente do olhar ocidental para o fanatismo religioso que seria causa dos atentados muçulmanos em países do Ocidente, Mbembe compreende o suicida a partir de suas condições de existência:
As convicções e certezas íntimas adquiridas no final de uma lenta jornada “espiritual”, pontuadas pela revolta e pela conversão, não decorrem de fanatismos tolos, da loucura bárbara ou do delírio, mas da “experiência interior” que só pode ser partilhada por aqueles que, confessando a mesma fé, obedecem à mesma lei, às mesmas autoridades e aos mesmos mandamentos. Em grande medida, eles pertencem à mesma comunidade. Comunidade essa formada por comungantes, os “condenados da fé”, fadados a dar testemunho, por palavras e atos, até as últimas consequências se necessário, do caráter finalista da própria verdade divina.[8]
O caráter finalista da própria verdade divina envolve, no limite, a eliminação do corpo, portanto, a eliminação da condição material que permite a dominação como se dá através de práticas necropolíticas. É por isso que o suicídio em sociedades de gestão necropolítica é uma forma de abolição, quando entendido pela posição do suicida, do inconsequente, não pela própria posição da gestão de morte. “No sentido estrito do termo, pôr um fim à própria vida ou abolir-se a si mesmo é, pois, incumbir-se da dissolução dessa entidade aparentemente simples que é o corpo”[9].
O evento do suicídio é esperado, assim, por parcelas da população sob a gestão necropolítica. “O martírio é um dos meios utilizados pelo condenados da fé para pôr fim a essa espera”, assinala Mbembe. O sacrifício imediato promovido por tais atos coloca cada vítima da necropolítica sob o signo da coragem e da perda. “Animado pela vontade de totalidade, ele procura se tornar um sujeito singular, mergulhando nas fontes disjuntivas e até mesmo demoníacas do sagrado”, entregando-se ao dilaceramento do absoluto[10].
Considerações finais
“O suicida não quer mais se comunicar, nem pela fala nem pelo gesto violento”[11], aponta Mbembe para dar cabo de uma visão do suicídio que não se situa somente no campo da psicologia, mas que está imbricado na política e na própria existência. Não se trata de uma mensagem para ser compreendida, mas de um ato de libertação dentro de seu contexto específico, um ato de existência no momento em que ela própria se perde.
Abraçar a perda consentida, aquela que destrói tanto a linguagem quanto o sujeito do discurso, permite inculcar o divino na carne de um mundo convertido em dom e graça. Não é mais uma questão de suplício, mas de aniquilação, de travessia de si mesmo até Deus.[12]
Desta forma, a vida que é perdida a partir de fora passa a ser dominada a partir de dentro. O mundo externo impede a realização de uma vida já entendida como mítica, enquanto o mundo interno permite a acumulação de forças para a produção de uma nova moral “pela via de uma batalha decisiva, se necessário sangrenta e de todo modo definitiva, viver um dia a experiência da exultação e da afirmação extática e soberana”[13]. A morte, assim, enquanto vitória de uma moral que nasce de dentro, que cresce talvez na consciência, mas que se faz no desfazer-se do corpo.
Referências
[1] SILVEIRA, Fernando de Almeida e Furlan, Reinaldo. Corpo e Alma em Foucault: Postulados para uma Metodologia da Psicologia. Psicologia USP [online]. 2003, v. 14, n. 3 [Acessado 3 Outubro 2022] , pp. 171-194. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0103-65642003000300012>. Epub 05 Maio 2005. ISSN 1678-5177. https://doi.org/10.1590/S0103-65642003000300012.
[2] SIQUEIRA, Vinicius. O corpo em Michel Foucault. Colunas Tortas, 2022. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-corpo-em-michel-foucault-drops-25/>>. Acesso em 10 out 2022.
[3] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016, p.142.
[4] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 87.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 89-90.
[9] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 90.
[10] Idem.
[11] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 87.
[12] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 90.
[13] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 91.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.