Da série “A Arqueologia do Saber“.
Como a arqueologia trata as mudanças? Michel Foucault não teme críticas ao afirmar que, para a arqueologia, o tempo cronológico não importa, não é assim que se observa o conjunto de enunciados que, mais tarde, podem ser agrupados como um discurso.
Da mesma forma, apesar dos enunciados sempre carregarem a formação discursiva, eles não mudam com a frequência de sua repetição. É possível observar conceitos iguais em 100 anos, como no caso da história natural, que manteve suas regras de formação por mais de um século, até a ruptura em Darwin e a biologia.
Sendo assim, a arqueologia não se preocupa em enumerar acontecimentos em linha sucessória, obedecendo a cronologia de suas emergências, mas trabalha com séries de enunciados, que podem se cruzar ou não. Esta série de enunciados não retém uma cronologia, ela é feita a partir da análise do campo discursivo. É esta análise, aliás, que encontra as regras da formação do discurso.
Não interessa, portanto, para a arqueologia, dizer porque um dado enunciado foi dito, explicar um fenômeno político ou relacionar um acontecimento histórico com o desenvolvimento de uma ciência. O que ela quer é explicar como é possível a escolha de determinados objetos para se analisar ou determinados métodos para análise.
[A arqueologia] não afirma que a cólera de 1832 não tenha sido um acontecimento para a medicina: mostra como o discurso clínico empregava regras tais que todo um domínio de objetos médicos pôde ser, então, reorganizado, que se pôde usar todo um conjunto de métodos de registro e de notação[1].
A arqueologia não explica a relação entre um evento e o discurso, mas sim expõe quais sãos as condições para haver tal relação específica.
É necessário dizer também que as regras de formação que a arqueologia observa em uma dada formação discursiva não são do mesmo tipo. Umas podem ser mais específicas ou mais gerais que outras e é uma hierarquia que as classifica assim. Os discursos se relacionam, portanto, horizontalmente, mas também verticalmente.
Eles podem, aliás, variar ao longo do tempo, mas dentro de uma temporalidade própria do discurso. Foucault admite que o discurso não é uma figura sincrônica, encontrada após o isolamento de várias amostras diacrônicas, como no estruturalismo. Na verdade, o discurso não precisa, como já dito, da cronologia que o estruturalismo pede em suas análises ao longo do tempo.
É preciso, portanto, para constituir uma história arqueológica do discurso, livrarmo-nos de dois modelos que, por muito tempo sem dúvida, impuseram sua imagem: o modelo linear do ato de fala (e pelo menos uma parte da escrita) em que todos os acontecimentos se sucedem, com exceção do efeito de coincidência e de superposição. e o modelo do fluxo de consciência cujo presente escapa sempre a si mesmo na abertura do futuro e na retenção do passado[2].
As diferenças são o objeto a ser encontrado na arqueologia. Elas não podem ser ignoradas e nem ser colocadas como erro, como a mentira, como o caos. Pelo contrário, é a diferença que vai delimitar o discurso, que vai mostrar a serialidade específica de um conjunto de enunciados.
Mas essas mudanças, por sua vez, não são “criativas”. Elas não criam novos objetos, novos conceitos ou novas estratégias forçosamente. Elas colocam esses objetos, conceitos, estratégias e modos de enunciação sob regimento de novas regras, sendo assim, um discurso que acaba substituindo outro tem como fardo os resquícios do anterior.
A descontinuidade, para a arqueologia, nunca é tempo perdido, nunca é um caos que atinge a ordem do discurso. Pelo contrário, a descontinuidade acontece devido a um certo número de transformações que podem ser especificadas, analisadas, observadas e organizadas.
A ruptura, vai dizer Foucault, não é um ponto de limite da análise arqueológica, mas sim parte da análise, uma das partes principais. Um dos pontos mais sublimes para conseguir entender o discurso.
Referências
[1] ↑ FOUCAULT, Michel. A Mudança e as Transformações IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.204.
[2] ↑ FOUCAULT, Michel. A Mudança e as Transformações… p.207.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Assim toda vez que o homem olha para uma lei natural na verdade esta olhando para um reflexo de si mesmo de suas experiências e caberá a cada um que nao viveu esta experiência julgar se tal relato pode ser útil para si ou nao
Logo nao existe ciência sem ideologia pois a ideologia esta no modo de pensar de cada um
O problema acontece quando se tem uma ideologia que prega uma ética sem dialogo com o outro
Cara, eu acho que Foucault não concordaria com seu comentário. Para ele, o sujeito é uma negatividade. Sua positividade acontece com o poder lhe marcando.
Uma critica a noção de poder em Foucault. O que pensa sobre ?
Feita por um professor de Ciência Política da Unicamp.
http://www.grabois.org.br/portal/artigos/153040/2016-09-16/o-estado-capitalista-no-centro-critica-ao-conceito-de-poder-de-michel-foucault
Não sei, vou ler e comento a respeito.
Obrigado pelo comentário.