Índice
Introdução
Há inúmeras maneiras de controlar uma população sob o critério da propulsão à vida e do descaso à morte. O biopoder, conceituado por Michel Foucault, é um tipo de estratégia de poder que traduz uma necessidade: a manutenção de um corpo social normalizado que se fortalece em sua normalidade por meio da morte dos anormais.
É evidente que a distinção entre o normal e o anormal é arbitrária: é feita através de medidas estatísticas e da base biológica de que somos todos humanos e, portanto, uma ação política afeta o ser humano enquanto corpo-espécie, enquanto conjunto homogêneo.
Sueli Carneiro explora a prática do biopoder sobre o corpo das mulheres negras em sua tese de doutorado A construção do outro como não-ser como fundamento do ser (2005).
Mortes evitáveis
Se os homens negros são marcados pelo signo da morte sob a forma da violência, as mulheres negras são geridas à morte pela negligência. Sueli Carneiro compreende que a força do biopoder recai sobre esta parcela da população por meio dos números de mortes evitáveis, sendo que “Na literatura médica, mortes evitáveis são aquelas que não deveriam ter ocorrido se as medidas preventivas adequadas tivessem sido tomadas” (CARNEIRO, 2005, p.78).
Ou seja, a presença do racismo de Estado, mecanismo pelo qual o biopoder garante sua eficiência em matar, pode ser visto justamente na ausência do Estado em situações em que sua força se faz como um medidor. Ao longo deste texto, veremos como a ausência de pesquisas e fiscalização em instituições de saúde favorecem um tratamento desigual entre mulheres brancas e mulheres negras ou amarelas. Ao mesmo tempo, a exposição também será uma oportunidade para entender como a presença do racismo estrutural se manifesta de maneira inconsciente nas práticas individuais, de tal maneira que dificilmente pode ser encontrado sob a forma do racismo individual, como uma patologia moral (ALMEIDA, 2019).
Para compreender esta expressão do racismo estrutural por meio de uma política de morte baseada na ausência do cuidado do Estado, Carneiro utiliza dados de morte materna no Brasil:
Atualmente as capitais do Brasil apresentam a razão de morte materna de setenta e quatro e meio por cem mil nascidos vivos sendo que a primeira causa de morte materna no Brasil é por toxemia gravídica, ou seja, por hipertensão arterial não tratada durante a gravidez. Isso é atribuído à qualidade do pré-natal que é oferecida às parturientes ou à ausência do acompanhamento pré-natal durante a gestação ou ainda por imperícia, porque mais de noventa por cento dos partos são hospitalares (CARNEIRO, 2005, p.78).
Ou seja, mulheres negras recebem pior atendimento comparado as mulheres brancas. Visto em sua dimensão concreta, o racismo estrutural está presente nas escolhas inconscientes de melhor ou pior atendimento, de mais ou menos cuidados, de mais ou menos atenção.
A racialização é uma forma de traduzir um corpo humano em corpo matável ou passível de vida. O dispositivo da racialidade, no Brasil, ao racializar a pessoa negra, a insere num campo de morte ou de vulnerabilidade estrutural que pode ser entendida, grosso modo, como uma vulnerabilidade ontológica. Como se a racialização do negro enquanto negro fosse, desde seu nascimento, feita para vulnerabilizar:
A desqualificação da importância da vida segundo a racialidade imprime e determina o descaso e a desatenção, e não prioridade, da busca de reconhecimento e conhecimento dessas singularidades (CARNEIRO, 2005, p.80).
O biopoder faz viver a população normalizada e deixa morrer aquela que não se adequa aos critérios de normalização. Constroi condições de vida para aqueles que são normalizados (empregos que permitem contratar planos de saúde, escolas privadas e lazer) e entrega condições de vida de descaso para aqueles que não são normalizados (péssimos hospitais públicos ou em número insuficiente, péssimas escolas ou em número insuficiente, péssimos empregos, etc).
O resultado é a existência de uma ampla camada do corpo social deixada para morrer. Quando se diz que uma parcela da população é deixada para morrer, o que se quer dizer é que sua vida está sob sua própria responsabilidade num nível de sobrevivência. Aliado ao racismo estrutural da socidade brasileira, uma das consequências da política sobre a vida e a morte é um número maior de mortes materna na população de mulheres negras. Carneiro utiliza como base o estudo de Alaerte Martins (2000), em que a morte materna é analisada sob o recorte racial/étnico no estado do Paraná:
As conclusões desse estudo são que as mulheres negras morrem seis pontos seis vezes mais que as brancas de morte materna num dos estados mais desenvolvidos do país. Adicionalmente, essa pesquisa traz um novo achado: as mulheres autodeclaradas amarelas do Estado Paraná morrem sete vezes mais que as outras (CARNEIRO, 2005, p.80).
Sueli Carneiro entende que este dado de mortalidade materna é consequência de uma ciência cujo sujeito teórico é concretizado no homem branco e na mulher branca. Ou seja, as predisposições biológicas de pessoas negras e amarelas são deixadas de lado na aplicação universal de uma ciência eminentemente local, mas que, em sua função política de conquista (parte do ego conquiro europeu) amplia o local por meio da destruição (GROSFOGEL, 2016). Desta forma, o sujeito concreto da medicina tende a ser uma abstração do homem e da mulher branca.
Os dados disponíveis permitem dizer que as mulheres negras portam uma maior predisposição biológica para a hipertensão arterial (a primeira causa da morte materna no Brasil) e que no período da gravidez essa predisposição biológica em condições adversas desfavorecem as mulheres negras. E que essas predisposições biológicas precisam se conhecidas para diminuir o entorno das condições desfavoráveis. Condições biológicas aliadas à condições sociais desfavoráveis potencializam-se para inscrever as mulheres negras num círculo vicioso de incidência superior ao risco de morte materna (CARNEIRO, 2005, p.81).
Mulheres negras e também asiáticas estão sob o manto do mesmo descaso e, evidentemente, os dados relacionados à morte materna insere a necessidade de um recorte de raça/etnia para compreender como se constrói este tipo de fatalidade. A ausência de pesquisas com tal recorte representa uma sabotagem na tentativa de compreender que mortes maternas, por exemplo, não são mera fatalidades, mas consequências de uma estratégia de poder que, mesmo não acontecendo no nível da consciência, ainda assim opera eficientemente sobre o corpo social
Carneiro também cita uma pesquisa realizada pela FioCruz em conjunto com a prefeitura do Rio de Janeiro que ouviu dez mil mulheres imediatamente após o parto entre julho de 1999 e março de 2001. As variáveis de controle foram escolaridade e classe social além, claro, do objetivo principais do estudo, que era analisar a discriminação racial em hospitais e maternidades público e privadas. “A conclusão do estudo é a existência de tratamento diferenciado para gestantes negras e brancas expresso na menor atenção às parturientes negras” (CARNEIRO, 2005, p.81).
Os dados encontrados pela pesquisa são: a) Uso de analgesia de parto: apenas 5,1% das brancas não receberam anestesia, contra 11,1% das negras; b) a ausulta de batimentos cardíacos do feto: 97,6% das brancas tiveram o batimento fetal auscultado em todas as consultas, contra 95,9% das negras; c) Medida do tamanho do útero durante o pré-natal: 85,4% das brancas responderam sim, contra 81,9% das negras; d) Respostas às dúvidas durante o pré-natal: 73,1% das brancas receberam informações sobre sinais do parto e 83,2% sobre alimentação adequada durante a gravidez. contra apenas, respectivamente, 62,5% e 73,4% das negras; e) Permissão de acompanhante antes e durante o parto: 46,2% das brancas puderam ter acompanhante, contra apenas 27% das negras (CARNEIRO, 2005, p.81).
A repercussão desta pesquisa foi imediata e gerou matérias em jornais e entrevistas com profissionais da área. Em uma dessas entrevistas, publicada na Folha de São Paulo de 26 de maio de 2002, o obstetra e ginecologista Bartolomeu Penteado Coelho, diretor da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) produziu uma fala que traduz, talvez ingenuamente, o racismo estrutural existente no Brasil:
Mulheres grávidas mais pobres e sem estudo não têm condições financeiras nem discernimento suficiente para procurar um bom posto de saúde ou hospital público e acabam sendo prejudicadas. (…) Em alguns lugares, como na Baixada Fluminense, o atendimento nos hospitais público é ruim, não importa a cor da pessoa (…). Acontece que nesses lugares a maioria dos pacientes é pobre e grande parte deles é composta por negros. Como as gestantes negras são maioria, a pesquisa acaba concluindo que elas recebem um atendimento pior, quando, na verdade, as brancas é que são poucas. (…) Nem mesmo hoje, que trabalho numa clínica particular, presencio coisas desse tipo. Um obstetra não se importa com a cor. A gestante é a nossa paciente” (Folha de São Paulo, 26 Mai 2002).
Sem perceber, num nível de ingenuidade que fura a ideologia e torna o real quase explícito, o médico descreve como a própria estrutura de nossa sociedade coloca pessoas negras em situação de vulnerabilidade. A falha do médico foi não perceber que a partir dos resultados é possível voltar o olhar para a estrutura. A prática científica positivista vicia o olhar da hipótese para o resultado, castrando a possibilidade de, a partir dos dados, criar uma análise que siga o caminho contrário, em que não há hipótese inicial, mas os próprios dados geram uma problemática.
Outra dimensão em que o descaso em relação à saúde da população negra se revela, em especial sobre as mulheres negras, está na ausência de reconhecimento ao tema das miomatoses que atingem de maneira desproporcional as mulheres negras […] há tanto evidências inconstestáveis de que as mulheres negras portam uma predisposição biológica maior para desenvolver os miomas uterinos, quanto o fato de que a atenção médica aos miomas uterinos é diferenciado para a mulher branca e a mulher negra, como é diferenciado para a mulher pobre e a mulher rica (CARNEIRO, 2005, p. 84-85).
A predisposição biológica é ignorada na prática, na medida em que o sujeito concreto alvo das práticas médicas é substituído por um sujeito abstrato, pressuposto, sempre branco.
Os dados dos Estados Unidos sobre o tema indicam que as negras desenvolvem cinco vezes mais miomas que as brancas, e são corroborados pelas pesquisas realizadas por Vera Cristina de Souza para o Brasil. Coniderando que as mulheres negras têm maior dificuldade de fazer o diagnóstico do que as mulheres brancas, o problema alcança dimensões assustadoras (CARNEIRO, 2005, p.86).
Ou seja, limitando o sujeito teórico alvo da medicina ao sujeito concreto branco, a prática médica mata o sujeito negro em nível teórico, evitando a aplicação de procedimentos que leve em consideração a constituição biológica própria de pessoas negras.
Considerações finais
Por fim, é posível dizer que há duas técnicas específicas operando sobre a população de mulheres negras que podem ser evidenciadas:
- O atendimento intermediado pela discriminação, pelo descuido;
- O atendimento movido pela liberdade em explorar o corpo negro, o manipulando de maneira desumana.
Estudo de Vera Cristina de Souza (2002), por exemplo, analisa os dados de histerectomia do SUS. Essa pesuisadora identifica maior acesso, relativamente, das mulheres negras à histerectomia, atribuindo essa maior disponibilidade a uma questão de natureza política: o útero de mulher negra não tem valor, então qualquer mioma tm a indicação da retirada do útero. Souza aponta que as condutas médicas são diferentes diante de uma mulher se ela é ngra ou se ela é branca. A conduta conservadora do uso de remédios ou expectantes é geralmente indicada para a mulher branca de qualquer classe social; ao contrário, para as mulheres negras, é indicada a histerectomia (CARNEIRO, 2005, p.87).
Enquanto corpo passível de morte, o corpo negro é fabricado ao descuido, fabricado à desatenção, fabricado à morte. A permanência da vida do corpo negro, e aqui entendo a palavra “vida” no contexto do biopoder, é um erro. Um corpo errado numa posição normalizada. Um corpo fabricado para ser incorrigível numa posição disciplinada e normalizada.
Oliveira é enfática em declarar que negros morrem antes do tempo no Brasil em todas as faixas etárias, por causas preveníveis e evitáveis, portanto a mortalidade precoce dos negros desnuda o racismo na (des)atenção à saúde. Além do que, invisibilizar é uma velha e vitoriosa estratégia política sexista e racista. Portanto, eis, para ela, a explicação das dificuldades de pesquisadores da área biomédica e do aparelho formador da área de saúde em relação ao recorte racial/étnico na pesquisa e na assistência em saúde (CARNEIRO, 2005, p.87).
A própria ausência de pesquisas em nível nacional que evidenciem o recorte racial é uma das maneiras de perceber, enquanto manifestação concreta, o racismo estrutural que o biopoder é apoiado e apoia na fabricação do corpo destinado à morte.
Referências
ALMEIDA, S. . Racismo estrutural. [Edição digital]. São Paulo: Pólen, 2019.
CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.
Folha de São Paulo. Médicos afirmam que pesquisa é “equivocada”. Jornal Folha de São Paulo de 26 de maio de 2002.
Disponível em <<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2605200203.htm>>. Acesso em 12 de novembro de 2024.
MARTINS, L. A. Mulheres negras e mortalidade materna no Estado do Paraná, de 1993 à 1998. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2000.
OLIVEIRA, F. O racimo mata, às escâncaras, todo dia. Jornal O tempo. Minas Gerais (BH), 10 de abril de 2002.
SOUZA, V. C. Sob o peso dos temores: mulheres negras, miomas uterinos e histerectomia. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2002.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.