Da série “As heterotopias“.
Uma heterotopia é um outro lugar não necessariamente acessível a qualquer um. O quinto princípio da heterotopologia preconiza o olhar sobre os sistemas de entrada e saída das heterotopias: “as heterotopias possuem sempre um sistema de abertura e de fechamento que as isola em relação ao espaço circundante”[1]. São sistemas que preparam o sujeito para sua entrada ou então o inserem de maneira brusca neste outro lugar: “Em geral, não se entra em uma heterotopia como em um moinho, entra-se porque se é obrigado (as prisões, evidentemente), ou entra-se quando se foi submetido a ritos, a uma purificação”[2].
Uma característica observável das heterotopias é, portanto, a impossibilidade de circulação ocasional e confusa pelos sujeitos. O outro espaço é um espaço distante daqueles socialmente previsíveis e, acima de tudo, é distante dos locais de desejo de circulação, distante do normal previsível e planejado pela organização social. Isso significa que as heterotopias, apesar de não representarem resistência a priori, são espaços que mostram pontos cegos da sociedade analisada. São espaços que evidenciam nós confusos das relações de poder.
Se a circulação não é ocasional, há maneiras de se entrar nestes espaços. Rituais de purificação e higienização tendem a ser necessários, como nas casas de banho muçulmanas ou saunas escandinavas. Mas nas prisões há também um processo, um ritual que permite a passagem: a necessidade de vestir seu uniforme ou de se despir das roupas do corpo, a necessidade da revista, a necessidade de abster-se de todos os itens que carrega consigo. Segundo Michel Foucault:
Há até mesmo heterotopias inteiramente consagradas a esta purificação. Purificação meio-religiosa e meio-higiênica, como nos hammams do mulçumanos, ou como nas saunas dos escandinavos, purificação somente higiênica, mas que carrega consigo todo tipo de valores religiosos ou naturalistas.[3]
Este ritual de entrada delimita uma relação entre espaço e sujeito: se o espaço é protegido pelos rituais de entrada, o sujeito é inserido num fluxo de vestimenta, comportamento e postura que são exigidos na permanência em cada uma dessas heterotopias. “Isso mostra o quanto uma heterotopia determina todo um direcionamento de tempo e de posicionamento do sujeito, ou seja, o quanto o espaço produz subjetividades”[4], assiná-la Karoline Pereira.
Karoline apresenta o carnaval como exemplo para um espaço estruturado, regrado, entretanto, cuja regra que extrapola na estruturação do espaço atravessa o signo da desordem. Uma ordem da desordem, segundo a autora. Desta forma, ao se inserir na ordem do carnaval, o sujeito se insere na ordem de uma desordem previsível e torna a ordem social um objeto a ser negado.
“Se no mundo cotidiano tem-se a ordem, a disciplina, o trabalho e a normativização, no período do Carnaval tudo se inverte, tudo é aceitável, inclusive a nudez, ou seja, a (des)ordem é que é a ordem”[5], segundo a autora. Evidentemente, o “tudo” que é aceitável não é literal: “tudo é aceitável” significa justamente a inversão em alguns hábitos civilizacionais: a quietude é substituída pelo barulho, pela música; a vestimenta é substituída pelo corpo exposto ou pela fantasia; a introspecção é substituída pela extroversão; a hierarquia social é substituída pela sátira cômica a esta mesma hierarquia.
Desta forma, a regra da heterotopia do carnaval envolve a inversão das bases de conduta da civilização ocidental normatizada, sendo assim, “tudo é aceitável”, tudo que esteja dentro de um campo de previsibilidade do inaceitável nas regras de conduta ocidentais.
Evidentemente, o ritual de entrada nesta heterotopia é a própria fantasia, o corpo desnudo e o complexo de condutas referidas a um folião.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 26.
[2] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 26.
[3] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 26-27.
[4] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em linguística do Centro de ciências humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 2015, p. 57.
[5] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira… p. 57.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.