Negros não podem ascender socialmente – Sueli Carneiro

Os desenvolvimentos presentes na própria transformação interna do sistema educacional brasileiro e na esfera política nacional não interferem no dispositivo de racialidade na medida em que não visam diretamente alterá-la. O resultado é a mudança nas técnicas de exclusão de pessoas negras do sistema educacional e da educação de qualidade mesmo após os avanços nos últimos séculos.

Para Sueli Carneiro, o epistemicídio negro no Brasil se desdobra e se fortalece na falta de acesso de pessoas negras ao sistema educional brasileiro. Esta falta de acesso, quando diminuída, torna-se um acesso precário, na medida em que as camadas médias brancas tendem a utilizar do sistema privado de educação como locus do desenvolvimento intelectual de seus filhos, tornando a escola pública o local destinado aos pobres e aos negros, que compõem em sua maioria as camadas baixas da sociedade brasileira.

A questão do acesso é relevante na medida em que ela é fundamentada numa concepção religiosa racista do início da colonização brasileira, em que negros eram entendidos como sujeitos sem alma e, portanto, passíveis de escravização que, na modernidade, se transformou numa concepção científica de inferioridade intelectual negra. Na concepção científica, pessoas negras seriam comparáveis aos adolescentes europeus e, assim, poderiam ser tratados da mesma maneira. A tarefa do sistema educacional era dirigi-los.

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A dirigência sobre pessoas negras, assim, traduz uma hierarquia racista presente na estrutura da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, também traduz a impossibilidade de dirigência do próprio conjunto de pessoas negras sobre os temas educacionais. O epistemicídio acontece na falta de garantia de acesso público e de qualidade para a população negra e tem como consequência a falta de produção pedagógica baseada nas experiências e na história negra no Brasil e nos países de origem das populações negras brasileiras.

“Então, se o que está em jogo é assegurar privilégios e uma estrutura social hierarquizada segundo parâmetros raciais e de classe, será o controle do acesso à educação um mecanismo insubstituível” (CARNEIRO, 2005, p. 112) na medida em que a educação é base do conjunto de oportunidades sociais que surgem ao cidadão ao longo da vida, além de ser o elemento fundamental para assegura justiça social. A hierarquização elimina da educação seu papel de base, pois “no caso do epistemicídio enquanto subdispositivo do dispositivo de racialidade, são as desigualdades raciais naturalizadas no âmbito da educação que se apresentam como efeitos de poder” (CARNEIRO, 2005, p. 112). Segundo Carneiro:

Mesmo uma visão superficial das políticas educacionais ou melhor da forma pela qual as políticas de acesso e distribuição das oportunidades educacionais se deram leva, à dedução de que, intencionalmente, elas visavam assegurar padrões sociais hierárquicos ditados pelo dispositivo de racialidade (CARNEIRO, 2005, p. 112).

No Brasil, a educação é reconhecida como instrumento efetivo e seguro de ascenção social, é o elemento que permite às classes subalternas alcançar padrões de vida superiores ao de sua origem por meio da especialização e da conquista de empregos públicos ou em empresas privadas com salários maiores que os concedidos aos que não receberam uma educação completa ou de qualidade.

Controlar a própria distribuição das oportunidades educacionais é, por consequência, controlar a possibilidade de ascenção social da população brasileira. Numa sociedade racista, o controle se dá a partir de uma visão hierarquizada por raça/etnia:

Acreditamos que essa maneira de administração das oportunidades educacionais permitiu a um só tempo a promoção da exclusão racial dos negros e a promoção social dos brancos das classes subalternas, consolidando, ao longo do tempo, o embranquecimento do poder e da renda e a despolitização da problemática racial, impedindo, ao mesmo tempo, que essa evoluísse para um conflito aberto (CARNEIRO, 2005, p. 113).

Neste contexto, a misérie e a cor negra tendem a se unir num nível quase ontológico, em que a cor negra é associada como pertencente à pobreza. Negro é pobre e pobre é negro. Evidentemente, sendo o Brasil um país de população pobre, há pessoas brancas em favelas e periferias, mas é notável que “os dados de educação desagregados por cor demonstram que os negros obtêm níveis de escolaridade inferiores aos dos brancos da mesma origem social e, ainda, que brancos têm probabilidade sete vezes maior que negros, de completar estudos universitários” (CARNEIRO, 2005, p. 114). Ou seja, a própria perspectiva de saída da pobreza é retirada da categoria racial negra. O branco na favela tem mais chances de sair da favela que o negro.

Na faixa etária de 14 e 15 anos, o índice de negros não alfabetizados é 12% maior do que o de brancos não alfabetizados. Nossa percepção é que os elementos estruturais dessa definição foram as variáveis cor, raça e etnia, que asseguraram a subalternidade social dos negros, em conformidade com um projeto de nação cuja aspiração fundamental era desenvolver o melhor de nossa ascendência européia (CARNEIRO, 2005, p. 114).

É importante frisar que a ligação ontológica entre a pobreza e a pessoa negra torna a própria transformação social um desafio. Em vez de exigir mudança, tal ligação permite que a condescendência seja imperante, permite que a pena seja praticada, permite que a caridade tenha seus alvos preferidos e, por fim, garante sempre haverá este outro negro como referência do destino social que os indisciplinados terão em sua permanência na indisciplina.

Sueli Carneiro arrebata:

A exclusão racial via o controle do acesso, sucesso e permanência no sistema de educação manifesta-se de forma que, a cada momento de democratização do acesso à educação, o dispositivo de racialidade se rearticula e produz deslocamentos que mantêm a exclusão racial. É nosso entendimento que no início da República, foi acionado para isso o controle da quantidade dos que teriam acesso à escola pública. Posteriormente é o controle do acesso ao ensino de qualidade que será o instrumento. O sucateamento do ensino público coincide com a afirmação social de uma classe média branca que pode passar a pagar pela qualidade da educação que receberá. É também um momento e um processo de demarcação dessa classe média branca em relação às classes populares notadamente negras (CARNEIRO, 2005, p. 114).

Ou seja, os desenvolvimentos presentes na própria transformação interna do sistema educacional brasileiro e na esfera política nacional não interferem no dispositivo de racialidade na medida em que não visam diretamente alterá-la. A democratização do ensino desloca as técnicas de exclusão aplicadas sobre pessoas negras de tal maneira que a pobreza passa a ser um elemento determinante na falta de acesso à educação de qualidade.

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Referência

CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.

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