Da série Friedrich Nietzsche.
“Prazer e erro. — Um beneficia involuntariamente os amigos, com sua natureza; o outro voluntariamente, com ações. Embora a primeira coisa seja tida como superior, apenas a segunda é relacionada à boa consciência e ao prazer — ao prazer da santidade mediante as obras, baseado na crença no caráter voluntário de nossas ações boas e ruins, ou seja, num erro.” [1]
Nietzsche não demora para declarar sua repulsa à boa consciência. Tirando seu significado do aforismo 51 do segundo volume de Humano Demasiado Humano, a boa consciência é o resultado da corrupção do indivíduo. É o momento em que a carapuça da moral dos fracos lhe serve à cabeça.
Aquele que naturalmente beneficia seus amigos não é bom porque a sua bondade não vem de uma adequação (e castração) dolorosa. Isso demonstra já de antemão uma característica importante do cristianismo: o sofrimento. Mais do que uma dor física ou espiritual, o sofrimento é o pressuposto da bondade.
O sofrimento é fundamental para se ter o “prazer mediante as obras, baseado no caráter voluntário de nossas ações”. O erro está justamente nesta crença errada, a qual nos faz imaginar que, ao agirmos positivamente, estamos deixando de fazer o ruim, estamos sacrificando uma opção.
No aforismo seguinte, Nietzsche continua a descrever a boa consciência: se trata da consciência da vítima, aquela que será abraçada pela compaixão da sociedade, que está sempre com a razão do rebanho, que tem sua proteção e a proteção de suas leis. É por isso que existe mais vantagem em ser injustiçado do que em ser injusto.
O injusto pode sofrer todo tipo de sanção social, terá sua paz perturbada caso seja pego ― o injusto sofrerá com a ira cega do rebanho. Já o injustiçado, bom… Ele é agraciado pelos louros da coletividade,
“… ou seja, para não sermos privados de nosso bem-estar, independentemente do que pedem a religião e a moral, tratar de não cometer injustiça, mais ainda que de não sofrer injustiça: pois nesse último caso temos o consolo da boa consciência, da esperança de vingança, de compaixão e aplauso dos justos, até mesmo da sociedade inteira, que teme quem faz o mal.” [2].
É interessante que esta moral dos fortes nietzschiana, isenta da estrutura sufocante da religiosidade, é pautada no pragmatismo maquiavélico. O que interessa é aquilo que causa bem a mim e não me causa mal no futuro. Esta e somente esta é a ação boa. O que Nietzsche faz ao tomar esta posição é reafirmar o seu foco no presente (e a negação da História e das filosofias da história), no aqui e agora, na vida que é vivida como é e não como deveria ser.
Referências
[1] NIETZSCHE, Friedrich. Humano Demasiado Humano II. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 25.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. Humano Demasiado Humano II… p. 25.
Originalmente publicado em 2014. Atualizado em 2024.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.