Da série O Estado.
Para Nietzsche, em um momento da história houve uma mudança: o trabalho deixou de ser algo nojento, odiado, para se tornar uma categoria de primeira importância na sociedade. Enquanto na Grécia Antiga o trabalho era algo destinado aos escravos, já que os livres praticavam a arte e somente se submetiam ao esforço físico nos momentos de liberar a criação artística, hoje o trabalho é orgulho de todos, é até mesmo algo que define o caráter. Diz o alemão,
Os gregos não precisam dessas alucinações conceituais, entre eles se expressa com aterradora sinceridade que o trabalho é um ultraje – e uma sabedoria mais velada, que raramente vem à fala, mas que vive por toda parte, leva à conclusão de que as coisas humanas também são um nada ultrajante e lastimável e a “sombra de um sonho”. O trabalho é um ultraje porque a existência não tem valor em si mesma: mas ainda que essa existência brilhe com o adorno sedutor das ilusões artísticas, e então pareça realmente ter um valor em si mesma, ainda assim vale aquela frase segundo a qual o trabalho é um ultraje – no sentimento da impossibilidade de que, lutando pela mera sobrevivência, o homem possa ser um artista [Cinco Prefácios Para Cinco Livros Não Escritos].
Veja também: Nietzsche sobre o Pathos da verdade
O problema, segundo o autor, é que o escravo conseguiu tomar o posto do artista e agora é ele que define o que é cada coisa. Por conta disso a noção do trabalho que dignifica é tão valiosa. Ele continua com seus ataques aos valores ocidentais da dignidade do trabalho,
Tais fantasmas, como a dignidade do homem e a dignidade do trabalho, são os produtos indigentes da escravidão que se esconde de si mesma. Tempo funesto, em que o escravo precisa de tais conceitos, em que é incitado para a reflexão sobre si e sobre aquilo que está além dele! Sedutor funesto, que aniquilou a situação de inocência do escravo com o fruto da árvore do conhecimento! Agora ele tem que se entreter dia após dia com tais mentiras transparentes, que todo bom observador reconhece na pretensa “igualdade para todos” e nos chamados “direitos do homem”, do homem como tal, ou na dignidade do trabalho [Idem].
O trabalho, assim como a escravidão, era considerado pelos gregos como algo ultrajoso, mas inevitável, argumenta o autor. E é a partir disso que o Estado e a cultura devem ser pensados. A cultura tem dentro de si um poço de crueldade e o Estado é a manutenção de toda essa força sanguinária.
O Estado é o local em que o forte domina e explora o fraco. É a maneira do forte se utilizar do fraco, de conseguir viver plenamente a vida, mas sempre em detrimento da vida do escravo. Nas palavras do próprio autor,
Para que haja um solo mais largo, profundo e fértil onde a arte se desenvolva, a imensa maioria tem que se submeter como escrava ao serviço de uma minoria, ultrapassando a medida de necessidades individuais e de esforços inevitáveis pela vida. É sobre suas despesas, por seu trabalho extra, que aquela classe privilegiada deve ver-se liberada da luta pela existência, para então gerar e satisfazer um novo mundo de necessidade [Idem].
Sendo assim, a necessidade propriamente digna é aquela gerada (e satisfeita) num mundo de forças criativas, de senhores. Ou seja, é uma necessidade que está além da comida e bebida – que serão armazenados, feitos, cozinhados, filtrados e etc pelo escravos – mas está dentro de um mundo de necessidades propriamente artísticas. Livrando-se do mundo da necessidade pela sobrevivência, os senhores entram no mundo das necessidades da vontade forte, da vontade potência. Este novo mundo é o do dominador, do animal livre e forte. É o mundo de um novo tipo de homem.
E é aqui que vemos a verdade da cultura: a cultura é crueldade, é sangue e subjugação. A cultura dos fortes é um exemplo trágico e necessário da vida real, sob as regras da vontade forte,
Por isso, podemos comparar até mesmo a cultura magnífica [dos fortes] com um vencedor manchado de sangue, que em seu desfile triunfal arrasta os vencidos como escravos, amarrados a seu carro: e eles, a quem um poder benfeitor deixou cegos, continuam gritando, quase esmagados pelas rodas do carro: “dignidade do trabalho!”, “Dignidade do homem!” [Idem].
O Estado nasce, desta forma, a partir da moral dos nobres, fruto do direito primário de tomar para si e de escravizar o derrotado. Este direito, como qualquer direito, é resultado da violência. A força é a grande mãe do direito. O Estado, então, é a ferramenta para pressionar a massa a favor da socialização, o que significa que ele é a maneira pela qual os senhores utilizam de sua força de maneira legítima para ensinar os servos como serem servos e mantê-los sob controle.
Sendo uma força contínua de fadiga para muitos homens, de crueldade e opressão, é com o Estado que a sociedade consegue avançar, ir além das limitações dos grupos familiares, conseguir empreender, conquistar e criar, ao mesmo tempo, é com o Estado que as guerras mais sangrentas nascem, já que todo o impulso de dominação acaba se concentrando em momentos esparsos. Nietzsche resume,
No meio dessa misteriosa conexão que pressentimos entre o estado e a arte, cobiça política e geração artística, campo de batalha e obra de arte, entendemos por estado, como já foi dito, a mola de ferro que impele o processo social. Sem estado, no natural bellum omnium contra omnes, a sociedade não pode de modo algum lançar raízes em uma escala maior e além do âmbito familiar. Agora, após a formação do estado por toda parte, o impulso do bellum omnium contra omnes, de tempos em tempos, concentra-se em terríveis nuvens de guerra dos povos, descarregando-se como que em trovões e relâmpagos mais raros, mas também muito mais fortes. Nos intervalos, contudo, sobra tempo para a sociedade germinar e verdejar, sob o efeito daquele bellum concentrado e dirigido para dentro, a fim de deixar a flor luminosa do gênio brotar assim que surjam alguns dias mais quentes [Idem].
O Estado e a Guerra
Mais adiante, Nietzsche lembra de como o Estado, quando nas mãos de burocratas guiados pelo instinto do capitalismo financeiro , se torna somente uma força para a satisfação de suas vontades fracas. O que Nietzsche descreve é o espírito burguês da vida destinada ao lucro e dos esforços para conseguir uma sociedade pacificada com mercados duradouros.
É assim que o burguês, fraco por essência, destina sua liderança nos Estados em que participa para fazer da comunidade política um local próprio para tomadas de posição seguras.
É neste sentido que Nietzsche faz seu louvor à guerra. Segundo o alemão, o Estado não tem fundamento no medo da guerra (como diria Hobbes), mas sim no amor à terra natal e ao príncipe. O medo da guerra vem sempre dos monetaristas, da burguesia internacional, em suma, dos fracos que tem uma vida que não vale à pena. Mas qual vida vale a pena?
Antes de responder essa pergunta, voltemos ao próprio Nietzsche: “nas castas superiores nota-se um pouco melhor o que está em jogo, no fundo, nesse processo: a geração do gênio militar – que conhecemos como o fundador original do estado”.
A dignidade vem da vontade de potência: ela existe quando o sujeito se põe como meio para o gênio militar.
Eu teria de pensar que o homem guerreiro é um meio para o gênio militar, e que seu trabalho também é apenas um meio para o mesmo gênio; não é como homem em sentido absoluto e como não-gênio que lhe cabe um grau de dignidade, mas ele como meio para o gênio – que também pode admirar seu aniquilamento como meio para a obra de arte guerreira [Idem].
Desta forma, o homem não é digno por si. Ele não é digno por essência, mas somente através de uma prática que o dignifique.
O que se mostra aqui em um único exemplo vale do sentido mais geral: cada homem, como conjunto de seus atos, tem dignidade à medida que é instrumento do gênio, de modo consciente ou inconsciente; a conseqüência ética que se conclui imediatamente daí é que o “homem em si”, o homem em sentido absoluto não possui nem dignidade, nem direito, nem deveres: o homem só pode justificar sua existência como a de um ser totalmente determinado, servindo a finalidades inconscientes[Idem].
O que interessa é a nova química produzida pelas múltiplas afinidades individuais ao objetivo do gênio. A sociedade como uma massa caótica é substituída por uma estrutura piramidal de castas militares, sob a qual a sociedade guerreira se ergue e possibilita o funcionamento do Estado conforme dito na primeira parte do presente artigo.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
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