O niilismo em Nietzsche: decadência como um processo

De importância máxima na trajetória nietzschiana, o conceito de niilismo é mais que uma mera apropriação dos pensadores da época, mas é uma inovação.

Da série Friedrich Nietzsche.

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O niilismo em Nietzsche: decadência como um processo

O niilismo em Nietzsche é um conceito chave que precisa ser discutido. Não é algo misterioso, mas também se diferencia daquilo que se entende comumente pelo termo. Quando se fala de niilismo, é comum entender que se trata da negação de quaisquer valores. Nietzsche leva o termo para um caminho diferente, se referindo a ele como uma negação da vida.

O que é a vida? A vida é dominação, violência, afirmação de si, é exercício da força, é se desligar do rebanho e se individualizar, é enfrentar o mundo de peito aberto e não se enganar com falsas crenças, é amar o mundo do jeito que ele é. O niilista, desta forma, é aquele que acredita em valores que não se confirmam na realidade, é quem deixa de viver o agora em favor de uma suposta vida futura (num paraíso cristão ou numa sociedade ideal anarquista).

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O niilismo em Nietzsche não é uma escolha, mas é um processo. É uma situação em que nos encontramos não porque escolhemos individualmente, mas porque fazemos parte de um processo que atravessa a história. Segundo Giacoia Junior[1], o niilismo pode ser visto de duas maneiras nas obras de Nietzsche: como resultante da interpretação moral-cristã ou como resultante da crença nas categorias da razão.

Niilismo, Nietzsche e a interpretação moral cristã

Friedrich Nietzsche entende que o fundamento niilista da nossa civilização ocidental não nasce com o cristianismo, mas tem bases anteriores, no entanto o cristianismo precisa ser interpretado como “potência civilizatória do mundo moderno, que sistematiza e universaliza as condições de conservação e reprodução do ascetismo platônico”. Ou seja, o que importa no cristianismo é sua estrutura religiosa – é sua forma de iludir e fazer crer naquilo que não é vida, no nada (é promover a vontade de nada) e sua força em promover este processo civilizatório anti-natural.

No texto Niilismo europeu[2], o autor realiza uma pequena reflexão sobre a interpretação moral-cristã:

Quais são as vantagens que oferece a hipótese moral cristã?

1. ela conferia ao homem um valor absoluto, em oposição à sua pequenez e à sua natureza fortuita no fluxo do devir e do desaparecer;

2. ela servia aos advogados de Deus, na medida em que franqueava ao mundo, apesar do sofrimento e do mal, um caráter de perfeição, — aí incluída esta “liberdade” — o mal parecia pleno de sentido;

3. ela coloca no homem um saber que assenta em valores absolutos e lhe traz assim um conhecimento adequado sobre o que, precisamente, é o mais importante, ela impedia que o homem se desprezasse enquanto homem, que ele tomasse partido contra a vida, que ele desistisse do conhecimento: ela era um meio de sobrevivência: — no todo: a moral era o grande remédio contra o niilismo prático e teórico.

A interpretação moral-cristã estabelece um lugar para o homem dentro do devir e retira toda sua pequenez, sua fragilidade. Seu corpo decrépito é trocado por uma alma imortal. Esse objetivo precisa de uma noção que dê valor de verdade para sua trajetória, então o autor alemão continua[3]:

Mas, dentre as forças que a moral desenvolveu, estava a veracidade: esta se volta finalmente contra a moral, descobre a sua teleologia, a sua perspectiva interessada — e eis que a visão desta tendência inveterada para a mentira, da qual se desiste de se livrar, age justamente como um estimulante. Para o niilismo. Constatamos agora a presença em nós de necessidades implantadas pela longa interpretação moral, e que nos aparecem também como necessidades do não-verdadeiro: por outro lado, é a elas que parece estar liga­do o valor graças ao qual suportamos viver. Este antagonismo — não avaliar o que conhecemos, não mais ter o direito de avaliar as mentiras nas quais gostamos de nos embalar — desencadeia um processo de dissolução.

A mentira se transforma no estimulante que nos faz agir. Em nossa força de viver. Vale dizer que o caminho da superação do cristianismo está justamente neste ponto: a crença na verdade nos obriga a evitar a mentira, nos colocando de frente com a crença religiosa. A “veracidade” que Nietzsche se utiliza acima é o “imperativo pela verdade” – esta força é, em seu fim, a auto-supressão da estrutura religiosa. A exigência daquilo que a estrutura religiosa possibilitou exigir mas que não pode atender.

Niilismo e as categorias da razão

Para Nietzsche, a crença nas categorias da razão nos faz acreditar num mundo que precisa ser visto por meio de falsas referências. Segundo Giacoia Junior[4], “Nietzsche tematiza três formas do niilismo, considerado como ‘estado psicológico’, ou seja, como conteúdo da consciência reflexiva. Em cada um deles, trata-se sempre de uma categoria da razão, que dá apoio a uma interpretação do vir-a-ser e do valor da existência humana na corrente do devir”.

Para o comentarista,

O primeiro desses estados de autoconsciência do niilismo é analisado por Nietzsche na perspectiva da categoria do “sentido”, ou finalidade. Para suportar a existência, o homem tem necessidade de interpretar o vir-a-ser como dotado de um sentido […] O niilismo ocorre, então, nessa primeira forma, com a descoberta de que não existe nenhum alvo no e para o devir, que o acontecer do mundo e da história não são processos que se desenvolvem em vista de um fim a ser alcançado, ao qual estaria ligado o seu sentido e valor. Desse modo, o desalento sobre a pretensa finalidade é causa do niilismo, enquanto sentimento de vazio, de um frustrador ‘foi tudo em vão’[5].

Ele continua,

a segunda forma do niilismo como estado psicológico é presidida pela categoria de “totalidade” – enquanto suporte de uma interpretação global do vir-a-ser. A representação de uma unidade, de uma organização e sistematização globais conectaria a multiplicidade caótica dos seres individuais, contingentes e efêmeros, a uma totalidade integrada e orgânica – a um todo racional, de infinito valor (panteísmo, monismo, etc.), promovendo a reconciliação entre a finitude aleatória e o infinito necessário[6].

Já a terceira forma surge a partir das duas primeiras, como uma situação de negação de sua validade por não compreenderem o mundo “verdadeiro”. “com isso, a terceira forma do niilismo surge como consciência da mendacidade do mundo metafísico, e como descrença na categoria de verdade – com a descoberta de que o vir-a-ser é a única realidade – uma realidade, contudo, que não conseguimos suportar. Balanço final: desprezamos o resultado que alcançamos pelo conhecimento, ao mesmo tempo que não nos é mais lícito valorizar aquilo em que gostaríamos de continuar a crer”, revela o comentarista.

Essas três formas de niilismo em Nietzsche (quando tomando as categorias da razão como referência) representam a impossibilidade de continuar com as interpretações baseadas nas categorias de sentido, totalidade e ser. Acredita-se que há um sentido, quando não há; acredita-se que há uma totalidade, quando não há; e acredita-se que, por nada ser de fato uma verdade (ou seja, por não haver sentido e nem totalidade), não há mais como viver a vida senão a partir de um movimento autodestrutivo de niilismo passivo, de aceitar o mundo sem valores e viver de forma covarde, ou seja, sem criar, somente aceitando. Sabemos que o “ser” não pode ser acreditado, mas não sabemos como viver sem a presença do “ser”, precisamos, então, entender que a única saída é criar.

As quatro formas de niilismo propostas por Deleuze

Gilles Deleuze (1925-1995), que trabalhou com o conceito de niilismo proposto por Nietzsche em sua obra.
Gilles Deleuze (1925-1995), que trabalhou de maneira criativa com o conceito de niilismo proposto por Nietzsche.

Para além das três formas de niilismo observadas por Giacoia Junior, Deleuze classificou o conceito de niilismo de Nietzsche em quatro tipos[7]:

  1. Niilismo Negativo, que é a negação do mundo real por um mundo superior extramundano. É clara a relação deste tipo de niilismo com as religiões. O sujeito religioso é castrado da realidade porque deixa de vivê-la e segue regras para ter o privilégio de viver aquilo que seria a realidade verdadeira, o paraíso, o outro mundo. O niilismo negativo tem esse nome porque nega, não porque tem sinal invertido em relação a um niilismo positivo, inclusive a segunda etapa do niilismo não se relaciona com uma afirmação do mundo (essa sim, o contrário da negação), mas com uma reação;
  2. Niilismo reativo, que é a reação em relação ao mundo imperfeito. O mundo não é ideal, não é como deveria ser, por isso, deve ser outra forma, para ser de outra forma, eu vivo a vida como se outra realidade fosse possível no agora, embora o agora me mostre constantemente que a realidade atual é a única possível. A reação envolve a morte de deus: a ausência da vida extramundana obriga o homem a observar um novo mundo no futuro, não fora do mundo. As novas regras que irão definir como se viver o presente serão regras vindas de um mundo que não é o do agora, mas é imaginado como possível numa situação ideal.
  3. Niilismo Passivo, que envolve a morte de deus e do sentido do mundo, ou seja, a impossibilidade de um futuro ideal. O mundo é visto como sendo somente o presente, a lógica que rege a vida cotidiana é a lógica presente, envolve o indivíduo agindo sobre o mundo, mas este mundo não tem nenhum sentido. O niilismo passivo é como um convite ao suicídio, um aceno para a morte, ele impede qualquer tipo de vida empolgada ou empolgante, qualquer forma de ação sobre a vida, de criação de valores, de criação artística, de geração de energia.
  4. Niilismo Ativo, aqui, a depressão do mundo sem sentido é superada pela força da criação de valores, da ação sobre o mundo, da afirmação de si, da arte, da música, da dança que só os deuses podem dançar. O mundo finalmente é visto como um palco para a vida se expandir, para ser criada a cada instante e se tornar permanentemente uma tela renovada pelo branco neutro pronto para ser banhado pela paleta de valores que cada indivíduo passa a ser responsável.

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Referências

[1] GIACOIA JR, Oswaldo. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos. Cap. I em Metafísica Contemporânea, por Guido Imaguire, Custódio Luis S. Almeida, Manfredo Araújo de Oliveira (Org), p. 13-39. Rio de Janeiro, RJ: Vozes, 2007.

[2] NIETZSCHE, Friedrich. O niilismo europeu. Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 249-255, jul./dez. 2013.

[3] Ibidem.

[4] GIACOIA JR, Oswaldo. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos…

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Porto: Rés-Editora, 2001.

Anexo

Abaixo, uma descrição poética e, ao mesmo tempo, tensa sobre o “último homem”, ou seja, o niilista passivo, que vive dos prazeres fáceis na medida em que já perdeu completamente sua esperança na vida, sua força para produzir transformações e sua coragem para ser grandioso.

O perigo do niilismo, então, é a privação de criar. É o vício em consumir a vida em grandes doses.

HERPICH, Jean. Nietzsche: uma história do Niilismo. PERI, v. 9 n. 1 (2017), p.108-109.

O niilismo abre a porta para um novo profeta: Zaratustra, o profeta do superhomem. Segundo Zaratustra com a ‘morte de Deus’ os homens têm duas possibilidades: ou permanecer na figura do último homem ou lançar-se à superação de si mesmo (super-homem). Não se trata de duas figuras opostas que existam uma do lado da outra; “o super-homem nem sequer é uma realidade, é uma esperança, mas a esperança cuja situação é a realidade do último homem”(FINK, Eugen. A Filosofia de Nietzsche). O super-homem deve nascer da realidade do último homem. O evangelho de Zaratustra está, assim, voltado ao último homem. Quem é o último homem? Ele é o homem que perdeu todo idealismo, toda a força “de vitória sobre si mesmo” (idem). Ele é o homem que já não é capaz de se sacrificar a nada grandioso; é o homem dos prazeres fáceis. O último homem é “o homem que já não ousa nada, que já não quer nada, que já não arrisca nada” (idem). Ele vive o niilismo passivo, sem crer em nada, sem nenhuma força criadora. Na verdade, o último homem representa “o homem que no fundo vegeta, embora disponha de extensa cultura é o homem que já não é tarefa para si próprio; é o pequeno homem em cuja alma já não arde a chama do entusiasmo”. O último homem vive do estômago: “têm seu pequeno prazer do dia e seu pequeno prazer da noite: mas respeita a saúde”. Para Nietzsche, o último homem é o “mais desprezível”, é o homem moderno.

O maior perigo do niilismo está em ficarmos estagnados na mediocridade do último homem, sofrendo com o “empobrecimento da humanidade, de uma terrível banalização num vulgar ateísmo e numa vulgar depravação moral” (FINK, Eugen. A Filosofia de Nietzsche). Mas Nietzsche tem esperança na possibilidade do super-homem. Zaratustra prega a vinda do super-homem. Mas o que é o super-homem? Numa palavra, o super-homem é o “sentido da terra”. Este sentido que foi constantemente negado pela religião, pela moral e pela metafísica. Em nome do “além” por muito tempo se ofendeu a terra. O super-homem representa uma nova forma de avaliação. Ele é a avaliação que afirma a vida terrestre em vez do “além”. Segundo Nietzsche, a história do ocidente foi a história da depreciação da vida. Em vez da alma, o super-homem valoriza o corpo; em vez do transcendente, o imanente; em vez do repouso, o movimento. Até agora o homem buscou seus valores na “realidade” transcendente. O homem precisou imaginar um Deus para sustentar sua tábua de valores. Os valores que criou “desvalorizaram a terra, depreciaram a vida, desprezaram o corpo” (MARTON, Scarlett. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche). O homem criou a alma a fim de desprezar o corpo; inventou um mundo transcendente para negar a vida terrestre; mas a “maior objeção à existência” foi a criação de Deus.

 – Jean Herpich.

28 Comentários

  1. Eu adorei o post. Me ajudou a elucidar alguns pontos que eu não estava conseguindo entender ao ler a parte do ”Desmoronamento dos valores cosmológicos”. Obrigada! Ah, curti também a linguagem poética usada pra explicar, caiu bem no assunto sobre o qual se falava. Parabéns, migo 🙂
    ps: Não conhecia esse tal Giacoia, vou procurar mais conteúdos dele – e do blog – sobre Nietzsche.

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