Para Michel Foucault, o dispositivo da sexualidade é responsável por inserir o sexo, a relação sexual, o gênero, as questões relativas aos papéis sociais de gênero. Trata-se, portanto, de uma construção que envolve configurações do poder e tipos de saber em relação constante fabricando formas de subjetivação.
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder.[1]
É necessário compreender que um dispositivo é um elemento teórico para explicar a conjunção entre elementos concretos dispersos como as ciências, o direito, a ética, as práticas educacionais, as técnicas disciplinares e etc. Esses elementos atuam com força de conjunto num dado momento histórico e sempre de maneira instável, pois um dispositivo não é uma criação artificial planejada e consciente: um dispositivo é um resultado das relações de poder e tipos de saber correntes num dado momento histórico que atuam para responder a uma urgência, responder a um problema local e temporal[2].
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Enquanto elemento de produção de subjetividades, o dispositivo fabrica a sexualidade também enquanto enunciado de repressão, mas a partir de um tipo específico de relação de repressão:
Existe, talvez, uma outra razão que torna para nós tão gratificante formular em termos de repressão as relações do sexo e do poder: é o que se poderia chamar o benefício do locutor.[3]
Se a existência do poder pressupõe a existência da resistência, então a tática perfeita para um exercício implacável do poder é ludibria a resistência a localizando dentro da própria dinâmica do poder praticado. O benefício do locutor é sua posição de transgressão no ato de falar sobre o sexo, na medida em que o assunto é fadado à proibição, seja pelos costumes, seja pelas normas de diferentes instituições em que o sujeito circula.
Tal suposta transgressão, inclusive, tem caráter deliberado, ou seja, individualiza e destacada o sujeito que fala, o define como autor da transgressão, o distinguindo da normalidade do não falar.
Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura. Daí essa solenidade com que se fala, hoje em dia, do sexo […] Há dezenas de anos que nós só falamos de sexo fazendo pose: consciência de desafiar a ordem estabelecida, tom de voz que demonstra saber que se é subversivo, ardor em conjurar o presente e aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa contribuir.[4]
O benefício do locutor, quando inserido no discurso da sexualidade, é duplo: a suposta subversão e a profecia. Algo que esbarra com a expressão que passa pelas bordas do poder e que, ao mesmo tempo, anuncia uma possibilidade de um bom sexo, de uma boa sexualidade que está porvir, no momento seguinte da destruição dos agentes responsáveis pela repressão sexual.
A forma da repressão, inclusive, é a responsável por não se associar a seriedade de uma revolução com a possibilidade do amor, do sexo, da felicidade, do novo corpo, do prazer.
Falar contra os poderes, dizer a verdade e prometer o gozo; vincular a iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; empregar um discurso onde confluem o ardor do saber, a vontade de mudar a lei e o esperado jardim das delícias — eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação em falar do sexo em termos de repressão.[5]
A repressão inserida pelo discurso da sexualidade é também uma forma de encobrir seu valor produtivo, mas a contrapartida desta repressão são justamente os rituais com valor mercantil que possibilitam que ela seja assunto a ser dito: Michel Foucault assinala que a psicanálise é um exemplo de como a simples escuta acerca do sexo aparece como ferramenta de um falar autorizado, “como se o desejo de falar e o interesse que disso se espera tivessem ultrapassado amplamente as possibilidades da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em locação”[6].
Segundo o autor, a contemporaneidade não só ilude através de uma retórica da repressão, como é o momento histórico de mais protagonismo da sexualidade no ocidente. A sexualidade aparece como aquilo que deve ser reprimido, mas, ao mesmo tempo, estudado e formalizado. Música, televisão, literatura, psicologia, ciências sociais e tantas outras áreas ou artes inserem o sexo em seus temas e produzem um falar autorizado mas também um falar que autoriza o não autorizado, que desinstitucionaliza a fala sobre o sexo.
A retórica da repressão é parte de um discurso que existe como parte do dispositivo da sexualidade. Trata-se de uma retórica que funciona produzindo uma sexualidade que se expõe na repressão, que se expõe no momento em que é reprimida ou no pressuposto da repressão. Tal pressuposto, mesmo que não anule a expressão, permite o exercício de um poder específico e, muitas vezes, institucional sobre o corpo, sobre a sexualidade, sobre o dia a dia das pessoas.
O sexo e a sexualidade, assim, se fazem enquanto aquilo que não se fala justamente falando sobre. Se fazem como algo que não é assunto justamente sendo um dos assuntos mais importantes da contemporaneidade. No miolo de uma explosão do interesse pela sexualidade, há a força de uma repressão que tem como efeito, a necessidade de seu falar, a necessidade de se conduzir uma fala em ambientes adequados, em círculos autorizados, em momentos permitidos.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13ª edição, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. p. 99.
[2] SIQUEIRA, Vinicius. O dispositivo – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em 25 Abr 2024. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-dispositivo-michel-foucault/>>.
[3] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber… p. 11.
[4] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber… p. 11.
[5] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber… p. 11-12.
[6] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber… p. 12.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.