O desejo de apartheid – Achille Mbembe

Aquele que se situa do outro lado do muro não é só um outro, mas é um outro que se faz como nada. Sua perda não é sentida, não por ser um sujeito menor, mas por praticamente não ser sujeito. Eram corpos que cercavam e, no limite, precisavam ser separados, precisavam ser vigiados e precisavam existir para manter estável a criação do inimigo a ser conquistado.

Da série “Necropolítica“.

Índice

Introdução

Se a fabricação daqueles que devem morrer está diretamente ligada a uma estratégia de poder racista, que se utiliza da transgressão do maior tabu possível, a morte, como elemento de dominação e de realização da própria existência, para além das relações de poder, há um elemento constituinte no nível do desejo que configura a relação entre o eu e um outro colonizado.

Uma energia que é alocada em alvos abstratos que se tornam concretos na medida em que a própria estratégia de poder necropolítica constitui suas vítimas e as coloca no interior da lógica própria de dominação tardo-moderna. É necessário compreender que o alvo da necropolítica também é constituído por ela, pois a resistência existe num momento de aplicação do poder e só pode ter espaço quando esta aplicação se faz real, concreta. Achille Mbembe retrata esta perplexidade:

Para o nativo, o dilema era saber como, na prática cotidiana, encontrar um equilíbrio entre, de um lado, o objeto psíquico que era chamado a interiorizar e muitas vezes forçado a assumir como seu próprio eu e, de outro, a pessoa humana de pleno direito que havia sido, que apesar de tudo ainda era, mas que, nas circunstâncias coloniais, era forçado a esquecer.[1]

O objetivo deste artigo é expor o movimento anterior ao da citação acima: aquele relacionado à própria condição de possibilidade da criação do inimigo, a que Mbembe chama de desejo de inimigo ou desejo de apartheid em Políticas da Inimizade.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


O desejo de apartheid

O desencadeamento de uma pulsão pura, uma pulsão que é arrolada a uma busca de um desejo, um “desejo mestre”, que é ordenado a partir de suas próprias regras, mas, ao mesmo tempo, também é uma força constituída por multiplicidades e tem um ponto de fixação, tem seu objeto próprio de fixação momentânea. Mbembe salienta que

ontem, esses objetos tinham como nomes privilegiados negro e judeu. Hoje, negros e judeus têm outras alcinhas: islamismo, muçulmano, árabe, estrangeiro, imigrante, refugiado, intruso, para citar apenas alguns deles.[2]

Tal desejo é aquele movimentado por um sujeito imerso em fantasias singulares (segundo Mbembe, “de onipotência, de ablação, de destruição, de perseguição, o que quer que seja”[3]) como no ímpeto de manter-se seguro isolado do perigo externo ou como força para encarar as fantasias que o preenchem. “Na verdade, arrancado de sua estrutura, ele se vê lançado à conquista do objeto perturbador. E como esse objeto na verdade nunca existiu, não existe e nunca existirá, ele então o inventa incessantemente”[4]. Este objeto inventado existe enquanto um lugar vazio, eternamente preenchido por diferentes objetos inventados, mas nunca reais.

O desejo de inimigo, o desejo de apartheid (segregação e enclave) e a fantasia de extermínio ocupam, nos dias que correm, o lugar desse círculo encantado. Em muitos casos, basta um muro para expressá-lo.[5]

O muro representa a divisão entre aqueles que são vivos, que devem viver, e aqueles cuja presença transborda e denuncia a necessidade do estabelecimento justamente de uma linha divisória. Esta necessidade leva a outra consequência prática: não há maneira de admitir entre este outro e nós a mera possibilidade de haver um elemento em comum. Sendo assim, a destruição é uma consequência dos projetos de separação, de apartheid, contemporâneos.

O projeto colonial de separação é preenchido também por este ímpeto:

Em grande medida, colonizar consistia num trabalho permanente de separação – de um lado, meu corpo vivo e, do outro, todos esses corpos-coisas que o rodeiam; de um lado, minha carne humana, em função da qual todas essas outras carnes-coisas e carnes-comidas existem para mim; de um lado, eu, tecido por excelência e marco zero de orientação para o mundo e, de outro, os outros, com quem nunca posso me fundir plenamente; os quais posso fazer vir a mim, mas com quem nunca posso verdadeiramente manter relações de reciprocidade ou de implicação mútua.[6]

Aquele que se situa do outro lado do muro não é só um outro, mas é um outro que se faz como nada. Sua perda não é sentida, não por ser um sujeito menor, mas por praticamente não ser sujeito. Eram corpos que cercavam e, no limite, precisavam ser separados, precisavam ser vigiados e precisavam existir para manter estável a criação do inimigo a ser conquistado.

Considerações finais

Christian Dunker foi feliz em sua descrição da lógica do condomínio, em que “os muros para não sair transformam-se nos muros para não entrar. O estado de exceção torna-se a regra. O cerco, não a trincheira ou a batalha se tornam a tática predominante”[7]. Desta forma, uma vida destinada ao conforto, sem qualquer preocupação em desenvolver um futuro em conjunto, mas somente guiada pelo objetivo de levar conforto e estabelecer novas regras de convivência aos condôminos.

Em contextos coloniais, “o trabalho permanente de segregação – e, portanto, de diferenciação – era em parte de corrente da angústia de aniquilação que acometia os colonizadores”[8]. Os colonizadores não suportavam a possibilidade de serem cercados pelos corpos colonizados, pelos seres no território do Estado colonial, “os nativos, os animais selvagens, os répteis, os micróbios, os mosquitos, a natureza, o clima, as doenças, até mesmo os feiticeiros”[9].

Referências

[1] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 83.

[2] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 76.

[3] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 76.

[4] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 76-77.

[5] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 77.

[6] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 81-82.

[7] DUNKER, C. I. L. A lógica do condomínio ou: o Síndico e seus descontentes. Revista Leitura Flutuante, São. Paulo, v. I, n. 1, 2009.

[8] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 82.

[9] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 82.

Deixe sua provocação! Comente aqui!