Índice
Introdução
Sueli Carneiro, ao descrever o dispositivo de racialidade presente no Brasil e construído desde a colonização com base no epistemicídio negro baseado na suposta inferioridade ontológica de pessoas negras que tem como base a suposta inferioridade biológica promovida pelo racismo científico e pela suposta inferioridade espiritural promovida pelo cristianismo.
Tal inferioridade foi base para a exclusão de pessoas negras do sistema de ensino. Ou seja, pessoas negras supostamente não teriam capacidade de alcançar a civilidade no mesmo ritmo que pessoas brancas e, no limite, ainda estariam em défict mesmo que dentro das escolas. O objetivo deste artigo é expôr o dilema do intelectual negro que supera todas as dificuldades postas ao longo da trajetória escolar e acadêmica.
O dilema
No sistema colonial de educação, o sujeito negro precisa ser branquificado para adentrar à estrutura de ensino e, mesmo assim, essa branquificação nunca é completa devido ao suposto déficit ontologicamente imputado aos sujeitos de raça/etnia negra.
Entretanto, mesmo quando alcançam os títulos necessários para uma posição intelectual de destaque, Sueli Carneiro compreende que há um dilema presente na própria constituição deste emergente intelectual negro. Este dilema é ter o corpo marcado pelo racismo mas, ao mesmo tempo, ser um sujeito constituído pelos discursos que ignoram a própria existência da negritude enquanto especificidade de uma identidade e de uma condição humana. A razão hegemônica que destitui a pessoa negra de suas possibilidades de ascenção é a mesma que, na exceção, forma um intelectual negro.
Mesmo quando o negro alcança o domínio dos paradigmas da razão ocidental, ele está diante do epistemicídio, embora esse domínio seja a negação de um dos seus pressupostos (o da incapacidade cognitiva inata dos negros) por ausência de alternativa a esse campo epistemológico hegemônico, pela redenção que a aculturação promove dos paradigmas da razão hegemônica, pela destituição de outras formas de conhecimento (CARNEIRO, 2005, p. 117).
Ou seja, mesmo para crianças negras que cresceram e atingiram um patamar intelectual destacado, há uma formação da própria identidade baseada nas práticas pedagógicas produzidas no seio do dispositivo da racialidade, o que afeta sua autoestima, sua capacidade de aprendizagem e sua própria formação identitária autônoma.
Desta forma, é previsível que
a subjetividade produzida pelo dispositivo de racialidade nos negros em relação à atividade intelectual em que afloram a insegurança internalizada sobre as capacidades acadêmicas, dê lugar à atitude de um certo desprezo, que tem efeitos paralisante sobre o progresso acadêmico dos negros (CARNEIRO, 2005, p. 118).
Um desprezo pela própria vida escolar e por aquilo que pode ser aprendido dentro do espaço escolar. Tornando, assim, o intelectual negro uma exceção isolada e solitária em diversas áreas do conhecimento. Com base em bel hooks, a autora expõe como as alunas negras detém um profundo anti-intelectualismo baseado num afastamento que o trabalho intelectual tem em relação à dita “vida real” nas suas experiências de vida. Já outras, quando interessadas no trabalho intelectual, vêem-se diante de exemplos de intelectuais negras que não obtém o devido reconhecimento pelo seu trabalho.
O “desprezo” pela vida intelectual reflete a internalização da idéia de fora-delugar, é assumir a atitude da raposa diante das uvas que estão fora do seu alcance e com desdém declarar, afinal “elas estão verdes” para aplacar o sentimento de inadequação, de não-pertencimento a um espaço ao qual o nosso acesso é viabilizado quase exclusivamente para sermos objeto de pesquisa daqueles que seriam dotados, pela natureza, da capacidade de “conhecer” e sobretudo de explicar (CARNEIRO, 2005, p. 118-119).
Carneiro cita Cornel West para exibir certo fardo intelectual negro dentro da academia: a tarefa de sempre evidenciar e defender que negros têm a mesma capacidade que brancos no mundo intelectual. Fardo esse que delimita uma trajetória intelectual e, ao mesmo tempo, afasta de todas as outras possíveis.
Em conjunto a isso, há ainda a divisão entre o profissional intelectual disciplinado e o indisciplinados. O profissional da ordem e o profissional insurgente. A formação de intelectuais negros com presença em movimentos de resistência gera a emergência de insurgentes dentro do campo acadêmico. Essas figuras insurgentes tendem a colocar em xeque a própria existência do dispositivo de racialidade o questionando e participando de ações que o questionam em diversos aspectos.
O papel da mulher negra nos movimentos feministas, a figura da pessoa negra hiperssexualidade, a figura condescendente do negro enquanto escape cômico, a figura infantilizante do negro em déficit cognitivo, a figura do negro vitimista que deve se submeter numa sociedade racista sem expressar a opressão que sente na pele, todos são aspectos manifestados a partir de práticas geradas no seio do dispositivo da racialidade que, ao serem questionados, ao serem colocados como alvo de crítica, mostram a clara existência do racismo e retiram a raça branco de seu lugar no universal, a localizando enquanto branquitude e, assim, a colocando como responsável pelas própria produção das regras de formação do discurso racista perpetuado no dispositivo.
Ao mesmo tempo, há a figura dos intelectuais da ordem que, mesmo compreendendo a existência do racismo e seus efeitos, tendem a desmoralizar as ações militantes:
Dentro da lógica de readaptação do dispositivo a injunções que busquem alterar os seus objetivos estratégicos, encontramos no campo do saber no Brasil um reconhecimento da disputa que os negros vêm travando no sentido de afirmar um olhar, um ponto de vista acadêmico insurgente. O dispositivo de racialidade, frente à crescente perda de legitimidade da exclusividade do discurso branco sobre o negro, começa a desenvolver um novo procedimento estratégico que altera, relativiza o monopólio do saber dentro de uma lógica de transição lenta e gradual, em que os intelectuais brancos e ativistas e pesquisadores negros realizam um tipo de parceria, na qual se reconhece o ativismo como fonte de saber. A formação de pesquisadores negros nos cânones tradicionais da tradição acadêmica assegura o caráter não insurgente de sua produção e, sobretudo, não comunitária, como pretende West. É freqüente que o intelectual negro tutelado, produzido, torne-se um agente crítico deslegitimador da prática ativista. Ao invés de “desalojarem discursos”, os intelectuais negros legitimam o saber branco sobre o negro, as relações raciais etc. São utilizados, portanto, para confirmar “poderes dominantes”. Enquanto isso os insurgentes amargam o isolamento acadêmico (CARNEIRO, 2005, p. 121).
Mas a armadilha da estratégia “da ordem” é o não reconhecimento de que a busca pelo endosso branco não melhora as condições de vida da população negra e nem mesmo aumenta a possibilidade de pessoas negras entrarem na academia.
Considerações finais
A existência de um dispositivo racial no Brasil formado desde o período colonial produz subjetividades submetidas à relação hierárquica entre classes e produz processos identitários que naturalizam, inconscientemente, a inferioridade de uma raça frente a outra. A participação negra na acadêmia num contexto racista tende a ser um forma de resistência do próprio intelectual quando adequado à norma, mas não surge como solução para os fatores sociais, econômicos, políticos e até mesmo ontológicos que promovem a exclusão negra do trabalho intelectual.
A sobrevivência intelectual em outras esferas da vida social, se assegura a resistência do intelectual negro, não assegura a superação dos fatores que promovem a sua debilitação no interior das instituições acadêmicas. Essa desolação se expressa na alternativa insurgente voltada “para dentro”, em que o intelectual negro reconhece sua validação na organicidade de sua produção em relação à sua comunidade (CARNEIRO, 2005, p. 121-122).
Voltar para dentro, assim, é voltar àqueles que podem lhe entender, lhe reconhecer e, evidentemente, lhe possibilitar a livre exploração do próprio potencial de criação e de constituição de si.
Referência
CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.