O encobertamento da discriminação social como tática – Sueli Carneiro

Entende-se que o silêncio é uma tática de reprodução das relações de poder e das relações discursivas que garantem a manutenção do dispositivo racial que hierarquiza negros e brancos no Brasil. Entende-se, portanto, que a prática do silêncio cúmplice e do silêncio transitivo é uma maneira de construir subjetividades que normalizam e internalizam as dinâmicas hierárquicas entre raças no Brasil.

Índice

Introdução

O silêncio não deve ser entendido como mera repressão ou negatividade. O silêncio é produzido, ou seja, o não dizer é produzido enquanto negação da existência ou abertura para a manutenção da existência do que é silenciado.

Aqui, trato de um tipo específico de silêncio: o silêncio sobre a violência, o silêncio sobre a opressão, o silêncio sobre aquilo que se quer que exista, mas que, justamente para existir, precisa ser escondido de uma reflexão crítica e direta.

Sueli Carneiro entende que o silêncio institucional acerca da discriminação racial no Brasil é uma tática de sua normalização, de sua perpetuação e, acima de tudo, de gerar subjetividade impotentes quanto a esta situação, além de constribuir ao epistemicídio negro no Brasil. No silêncio sobre o racismo, sua vítima não consegue se expressar enquanto vítima e, no limite, questiona a si própria sobre sua condição.


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O silêncio

Inicialmente, começarei por definir de que tipo de silêncio estamos a tratar. Para isso, usarei como base o artigo de Ricardo Franklin Ferreira (2002) que nos introduz a concepção de um racismo brasileiro silenciado que se transforma em cordialidade racista, conceituado principalmente por Gilberto Freyre:

A crença de que, no Brasil, vive-se uma ‘democracia racial’. O preconceito contra a população negra, em função de um mito que o nega, torna-se difícil de ser compreendido e combatido. Há mecanismos subliminares de encobertamento permeados por um aparente tratamento cordial, desenvolvendo a crença de que a discriminação etnoracial não existe (FERREIRA, 2002, p. 70).

O mito da democracia racial não foi criado por Freyre, apesar de ter nele o nome de um conceituador. A democracia racial é uma tática racista de manutenção das relações hierarquicas entre raças no Brasil. Com base na sua existência sub-reptícia, não é necessário compreender como funciona o racismo no país, afinal, ele não existiria enquanto fenômeno social. Na prática, “sabe-se da discriminação, mas não se quer falar a respeito” (FERREIRA, 2002, p. 70).

Ferreira salienta que, no Brasil, o racismo parece sempre ser um problema do outro, na medida em que as pesquisas revelam que as pessoas compreendem a existência do racismo, mas majoritariamente afirmam que elas próprias não são racistas. Ou seja, o mito da democracia racial pode até ser questionado perante notícias ou acontecimento testemunhados, mas ele permanece vivo quando essas mesmas notícias e acontecimento reafirmam este lugar afastado onde se situa o racismo. Em outras palavras, quando o racismo é sempre um problema do outro, de um outro que é racista, os sujeitos tendem a viver uma vida como se o racismo não existisse, na medida em que depende diretamente de uma identificação individual sobre a vida particular. Sujeitos que não percebem o racismo em suas vidas, mas sempre em atos particulares dos outros vivem o mito da democracia racial e, quando a maioria percebe no outro a possibilidade do racismo, a maioria, então, vive esta democracia racial.

Assim, no Brasil, o preconceito não é abertamente afirmado, dificultando a elaboração de leis que favoreçam sua reversão. A ideologia de que vivemos num país em que as diferenças são aceitas e valorizadas, ‘um verdadeiro exemplo para as outras nações’, encobre o problema (FERREIRA, 2002, p. 71).

E, além de encobrir o problema, também encobre a própria identidade negra no Brasil, na medida em que “nos lares de famílias negras e na escola, a maneira mais comum de se lidar com o preconceito é o silêncio” (FERREIRA, 2002, p. 71-72). Nos próprios lares de pessoas negras, o preconceito tende, nos dados coletados pela pesquisa de Cavallero (1998), a ser diminuído em sua significação. Ferreira traz um exemplo didático sobre este silenciamento que acontece na própria cordialidade do dia-a-dia:

Parece ser ‘politicamente correto’ tratar o afro-descendente como ‘moreno’, palavra fortemente enraizada na cultura brasileira. É um exemplo de uma situação que revela uma estratégia simbólica de fuga de uma realidade em que a discriminação impera (FERREIRA, 2002, p. 72).

De fuga de uma realidade em que existem negros. Em que, por existirem negros e por serem tratados institucionalmente, culturalmente, individualmente e estruturalmente por meio de relações hierárquicas, existe o racismo. O silêncio, aqui, tem como objetivo o embranquecimento da sociedade brasileira, que transforma negros em “morenos”, que desacredita na própria existência da raça/etnia negra. Trata-se de uma “das mais eficazes táticas de dominação do racismo no Brasil que é o silêncio ou silenciamento em relação à existência do problema da discriminação racial no Brasil” (CARNEIRO, 2005, p. 115).

O silêncio, então, enquanto arma de produz preconceito na medida em que destrói a própria possibilidade de enfrentá-lo, seja pela sua vítima que se compreende como vítima, seja pela vítima que nem mesmo se vê enquanto vítima de violência racial por não ter sido assujeitada em processos de identificação com raça negra. Este tipo de silêncio, tomando como base Menezes e Mendes (2023), pode ser dividido em duas categorias: o silêncio cúmplice, em que há ausência do debate para a manutenção da ordem racista; e o silêncio transitivo, em que há ativamente o silenciamento dos sujeitos que ousam denunciar o racismo (seja com chacota, com violência ou com descaso). Cavalleiro (2012) exemplifica uma técnica do silêncio cúmplice:

O silêncio dos professores perante as situações de discriminação impostas pelos próprios livros escolares acaba por vitimar os estudantes negros. Esse ritual pedagógico, que ignora as relações étnicas estaelecidas no espaço escolar, pode estar comprometendo o desempenho e o desenvolvimento da personalidade de crianças e de adolescentes negros, bem como estar contribuindo para a formação de crianças e de adolescentes brancos com um sentimento de superioridade (CAVALLEIRO, 2012, pp. 32-33).

Enquanto o próprio discurso da democracia racial é uma prática do racismo transitivo (e do cúmplice), silenciando as vítimas de racismo como se, no Brasil, o racismo não existisse e como se não valesse à pena expôr uma denúncia racista. Tudo se passa como se fosse vitimismo.

O silêncio na escola

Carneiro disseca todos os pontos recolhidos anteriormente neste artigo com foco no silenciamento dentro da escola:

O silêncio se manifesta também, na relação aluno-professor, instâncias diretivas do aparelho escolar, nas atitudes dos pais dos alunos brancos e negros; no discurso ufanista sobre as relações raciais no Brasil, presente nos instrumentos didáticos, acoplado a uma representação humana superior (CARNEIRO, 2005, p. 115).

Na internalização da sociabilidade branca, a morte da identidade negra se faz enquanto paranoia e autorresponabilização:

O silêncio tem, como sub-produto, a produção de um tipo de esquizofrenia ou
suposição de paranóia nos alunos negros, posto que ele vive e sente um problema que ninguém reconhece (CARNEIRO, 2005, p. 115).

Sente um problema que precisa ser escondido enquanto problema e diminuído, transformado em “frescura” digna de chacota. Junto a isso, há uma persistência entre os profissionais da escola de um imaginário da péssima capacidade do aluno negro em avançar nos processos de ascenção escolar. O aluno negro é visto, mesmo que indiretamente ou sem intencionalidade presente, como aquele que tem mais dificuldade de aprender, o que é parte integrante da construção branca da identidade de pessoas negras.

Assim, reforçando a negligência sobre a pessoa negra e implicando em uma violência ao corpo negro. Novamente, vê-se a figura do corpo negro como aquele que é abandonado enquanto sujeito do conhecimento e capturado enquanto exemplo de inferioridade racial. Um corpo próximo ao animal. Um corpo sem, por exemplo, a constituição da família, instituição propriamente humana que ultrapassa o laço de sangue entre prole e animais reprodutores.

Diversos autores vêm demonstrando que têm sido feitas alterações na literatura infantil, por força das críticas das imagens estereotipadas do negros e em especial a forma como eles eram representados geralmente sem famílias, vínculos sociais etc. Contudo está ainda por ser verificado o quanto as mudanças de fato alteraram a imagem de subalternização social (CARNEIRO, 2005, p. 117).

Tem-se, então, um conjunto de elementos que passam pelo tratamento dado pelos professores, pela didática, pelos materiais didáticos e pela própria escola enquanto instituição que silenciam a existência do racismo o mantendo operante no espaço escolar.

Considerações finais

Desta forma, entende-se que o silêncio é uma tática de reprodução das relações de poder e das relações discursivas que garantem a manutenção do dispositivo racial que hierarquiza negros e brancos no Brasil.

Entende-se, portanto, que a prática do silêncio cúmplice e do silêncio transitivo é uma maneira de construir subjetividades que normalizam e internalizam as dinâmicas hierárquicas entre raças no Brasil.

Como entender o biopoder em Michel Foucault

Referências

CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.

CAVALLEIRO, E. S. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo preconceito e discriminação na educação infantil. 6ª ed, São Paulo: Contexto, 2012.

FERREIRA, R. F.. O brasileiro, o racismo silencioso e a emancipação do afro-descendente. Psicologia & Sociedade, v. 14, n. 1, p. 69–86, jan. 2002.

MENEZES, M.; MENDES, L.. O silêncio, o silenciamento e o silêncio cúmplice como mecanismos de perpetuação do racismo nas organizações. Cadernos EBAPE.BR, v. 21, n. 6, p. e2022–0233, 2023.

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