O epistemicídio negro – Sueli Carneiro

A teoria da dominação e um analítica do poder são elementos que permitem compreender que o racismo está para além da ignorância ou do esclarecimento. É parte da própria estrutura social. O epistemicídio não promove uma concorrência ou uma convivência entre culturas, mas a hegemonia de uma cultura particular que, sozinha enquanto produtora dos critérios de legitimação, se autoproclama superior.

Índice

Introdução

A destruição das formas de conhecimento dos povos dominados é uma das maneiras de exterminá-los de qualquer horizonte de legitimidade social, política e ontológica. Trata-se de uma ferramenta colonial de justificação 1) do genocídio dos povos sob domínio da metrópole e 2) do ímpeto à conquista dos povos que se encontram fora dos limites da civilidade formulada pela cultura dominadora.

No presente artigo, pretendo expor a maneira como Sueli Carneiro entende o estabelecimento do epistemicídio do povo negro no Brasil. A autora utiliza este conceito a partir de Boaventura de Sousa Santos e estende seu alcance ao aplicá-lo sobre uma realidade brasileira em que a tensão racial permanece ao longo do tempo gerando uma população racialmente destituída da possibilidade de ser um sujeito do conhecimento legítimo.

Epistemicídio

A epistemologia de uma dada cultura é a base para que ela possa conhecer o mundo, estabelecer critérios entre verdadeiro e falso, além de construir um campo do possível, ou seja, um campo daquilo que poderá vir a ser verdadeiro ou falso, ao mesmo tempo, excluir deste campo tudo aquilo que nem mesmo será considerado relevante ou terá sua existência reconhecida pelos membros desta cultura.

Desta forma, entende-se que a epitemologia de uma cultura é a própria condição de sua existência. Os seres humanos, apesar de serem biologicamente pertencentes a mesma espécie, são culturalmente diferentes e, justamente neste ponto, há uma separação radical. Os membros desta mesma espécie não são membros de um mesmo sistema de reconhecimento de critérios do verdadeiro ou de um mesmo conjunto de elementos que são relevantes para se entender a realidade. Esta separação pode ser radical, o que gera uma diferença radical e, como consequência, um conflito insuperável. O impulso ocidetal à conquista (ego conquiro, segundo Enrique Dussel (2009)) foi e é uma resposta a este conflito, que atua em conjunto com o genocídio e o epistemicídio, diz Boaventura de Sousa Santos:

El epistemicidio es el proceso político-cultural a través del cual se mata o destruye el conocimiento producido por grupos sociales subordinados, como vía para mantener o profundizar esa subordinación. Históricamente, el genocidio ha estado con frecuencia asociado al epistemicidio. Por ejemplo, en la expansión europea el epistemicidio (destrucción del conocimiento indígena) fue necesario para “justificar” el genocidio del que fueron víctimas los indígenas. (SANTOS, 1998, p. 208)

Se o epistemicídio é a destruição das formas de conhecimento de uma dada cultura, o genocídio é a conclusão desta morte através da matança física. Um elemento justifica o outro: povos com formas de conhecimento ilegitimadas podem ser mortos enquanto povos que são mortos merecem ter suas formas de conhecimento rebaixadas. O ímpeto da conquista é elevado, é o objetivo final, sendo assim, tanto o epistemicídio como o genocídio traçam um caminho para a hegemonia da cultura dominante e de seu povo:

O genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinha formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupo sociais que podiam constituir uma ameaça à expansão capitalista ou, durante boa parte do nosso século, à expansão comunista (neste domínio tão moderna quanto a capitalista); e também porque o correu tanto no espaço periférico, extra-europeu e extra-norte-americano do sistema mundial, como no espaço central europeu e norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais) (SANTOS, 1999, p. 283).

Em sua tese, Sueli Carneiro utiliza o conceito de epistemicídio para explicar as formas de anulação do negro no Brasil. O racismo, assim, é entendido enquanto estratégia de elevação do ser em detrimento do outro, entendido como não-ser. Destruir as formas de conhecimento da cultura dominada no contexto de tensão racial é, assim, parte de uma estratégia de subjugação e desumanização.

O epistemicídio se constituiu e se constitui num dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos dominados e, consequentemente, de seus membros enquanto sujeitos de conhecimento (CARNEIRO, 2005, p.96).

E, do ponto de vista do sujeito, é retirar este outro, este não-ser, da possibilidade do conhecimento. O membro da cultura dominada deixa de ser, então, um sujeito do conhecimento para ser somente objeto do conhecimento e será, assim, analisado e averiguado pelo sujeitos do conhecimento legítimos, amparados por um sistema social que favorece a raça branca.

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O não-ser

Quando Sueli Carneiro estabelece foco no sujeito que está sendo subjugado pela empreitada do epistemicídio, mira justamente na permanência da relação de dominação através de um genocídio que nunca termina, um genocídio permanente que mantém o não-ser vivo, de tal maneira que mantém, assim, o próprio ser em destaque.:

Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualiicá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc (CARNEIRO, 2005, p.97).

Assim, no contexto racial brasileiro, o epistemicídio funciona num duplo movimento: desracionaliza o sujeito negro, o outro; enquanto busca readequá-lo à cultura branca e posicioná-lo de maneira subalterna.

Este sujeito negro, no sistema educacional, é um ser estranho forçado a se encaixar numa formação social que, na melhor das hipóteses, lhe submete à hierarquia racial branca. Em vez de sujeito cognoscente apto ao conhecimento, torna-se objeto de um conhecimento já fabricado que lhe será imposto. Evidentemente, a escola é um local de disciplinamento, de introjeção das relações sociais de produção, no entanto, ao mesmo tempo, é uma forma de constituir o sujeito legítimo da sociedade que poderá exercer poder de maneira legítima e eficiente, enquanto constitui também o sujeito que lhe servirá.

Entendendo essa posição do sujeito negro no sistema educacional, pode-se compreender que ele deixa de assumir a posição de produtor do conhecimento, encontra-se distante da fonte do conhecimento, distante de sua legitimidade enquanto sujeito do conhecimento. “Nessa percepção se encontra subsumida uma interpretação de seu estatuto como sujeito cognoscente” (CARNEIRO, 2005, p.98), que é a interpretação enquanto o outro do conhecimento.

Para reconstituir as bases da formação discursiva que embasou a conquista europeia pelo mundo, Carneiro cita trabalhos de Kant e Hegel como determinantes para construir um sujeito do discurso legítimo e superior segundo a prática discursiva branca sobre as outras raças e etnias.

Em sua antropologia, Kant identifica diferenças inatas entre as raças. Elas abrigariam capacidades e inclinações que seriam grandemente devidas ao meio ambiente. Assim, os trópicos seriam inibidores do desenvolvimento de tipos laboriosos como seria o caso dos negros, ao contrário do que ocorreria nos climas temperados, fator explicativo da propensão dos povos brancos ocidentais, que neles tendem a serem mais laboriosos. O foco das preocupações de Kant é determinar as condições de possibilidade de desenvolvimento da espécie humana da cultura e da civilização e identificar os grupos humanos mais aptos para a realização dessa tarefa (CARNEIRO, 2005, p.98).

O que está em jogo é a legitimação de um raça ou povo específico para guiar a tarefa de constrir uma humanidade global, ou seja, a raça ou povo específico que deverá se impor sobre as outras raças e povos enquanto tarefa moral e civilizacional.

Da classificação das capacidades inatas de cada uma das raças humanas, Kant conclui serem os nativos americanos pessoas fracas para o trabalho árduo e resistentes à cultura. Já os asiáticos seriam tipos humanos civilizados, mas sem espírito e estáticos, enquanto os africanos seriam tipos humanos que representam a cultura dos escravos, posto que aceitam a escravidão, não têm amor à liberdade, e seriam incapazes de criarem sozinhos uma sociedade civil ordenada. Essas características seriam da ordem do caráter moral dos seres humanos, no qual se inscreve o mundo da liberdade do qual os africanos estariam excluídos, por sua natureza individual afeita à escravidão (CARNEIRO, 2005, pp. 98-99).

Enquanto Hegel descreve o negro como aquele destituído de auto-controle, elemento civilizatório essencial para a construção cultural europeia. Como não compartilham nenhuma característica essencial, são ligados somente por meio da escravidão. Assim, este outro deve ser descrito justamente para conter as características excluídas do eu, excluídas do sujeito europeu. O ser do sujeito europeu é definido negativamente por meio da descrição dos outros, tanto asiáticos como africanos ou de outras etnias e, ao mesmo tempo, é definido positivamente por características que são negadas a esses outros, que lhes definem negativamente.

O Não-ser assim construído afirma o Ser. Ou seja, o Ser constrói o Não-ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de características definidoras do Ser pleno: auto-controle, cultura, desenvolvimento, progresso e civilização No contexto da relação de dominação e reificação do outro, instalada pelo processo colonial, o estatuto do Outro é o de “coisa que fala” (CARNEIRO, 2005, p.99).

E, a partir desta construção discursiva, a conquista praticada através do genocídio e do epistemicídio se torna justificada, legitimada. No presente, a construção de uma sociedade em que a figura do negro é um elemento a ser domesticado ou integrado em posições subalternas se torna razoável e se esconde na própria estrutura da sociedade brasileira. Anonimamente, impessoalmente, a própria estrutura da sociedade brasileira incorpora a lógica colonial e destitui o negro da possibilidade de ser sujeito pleno, o destinando à negligência ou à morte.

Considerações finais

Entende-se, assim, que uma sociedade racialmente organizada concebe normas de cognição que desafiam a realidade, tornando o outro negro um não-ser que valida a existência do ser branco. Sem uma teoria da dominação materialista, seria possível até mesmo entender que este fenômeno é devedor da ignorância. Seria possível, assim, vislumbrar o fim do racismo alicerçado no fim da ignorância e, portanto, na disseminação de informação esclarecida.

A teoria da dominação e um analítica do poder são elementos que permitem compreender que o racismo está para além da ignorância ou do esclarecimento. É parte da própria estrutura social.

O epistemicídio não promove uma concorrência ou uma convivência entre culturas, mas a hegemonia de uma cultura particular que, sozinha enquanto produtora dos critérios de legitimação, se autoproclama superior.

Referências

CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.

DUSSEL, Enrique. Meditações anti-cartesianas sobre a origem do anti-discurso filosófica da modernidade IN SOUZA SANTOS, Boaventura; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. Coimbra, Portugal: Almedina, 2009.

SANTOS, B. S. La globalización del derecho. Los nuevos caminos de la reulación y la emancipación. 1ª Ed. Universidad Nacional de Colombia – Faculdad de Derecho, Ciencias Políticas y Sociales, Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos – ILSA, 1998.

SANTOS, B. S. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 7ª ed. Porto: Edições Afrontamento, 1999.

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