O estado de exceção – Giorgio Agamben

O estado de exceção é um dispositivo de estabelecimento do espaço em que o homo sacer tem seu lugar. Este, por sua vez, é o status do abandono. A exceção, assim, é um vazio que preenche a necessidade estrutural da lei de se ausentar em favor de si própria e da manutenção das condições de sua existência.

Índice

Introdução

Estado de exceção e soberania estão entrelaçados de tal maneira que é justamente na possibilidade de gerar a exceção que o soberano se mostra como tal. Sua característica fundamental não é só a criação de um local em que a validade da lei é incontestável, mas passa pela própria criação de espaços que a lei é suspensa e corpos excluídos podem ser depositados justamente para participarem da relação de inclusão através da exclusão característica do homo sacer.

Giorgio Agamben compreende que o estado de exceção é uma forma e uma aplicação que é amplamente presente na contemporaneidade. Deixou, assim, de ser um objeto teórico de momento específicos para se colocar, na prática, como uma ferramenta de governo em que o executivo consegue governar à revelia dos outros poderes, retirando, assim, a proteção jurídica dos sujeitos que ficam à mercê do ímpeto soberano em decidir quem deverá ser excluído e quais espaços os excluídos deverão ocupar.

O objetivo deste artigo é expor a noção de estado de exceção para Agamben.

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Estado de exceção

Giorgio Agamben compreende que o estado de exceção foi experimentado e difundido no contexto da Primeira Guerra Mundial, com a ascensão de regimes ditatoriais que se utilizaram justamente da possibilidade contida em lei de tornar possível o privilégio da gestão a partir do poder executivo sobre o legislativo, que acaba tendo função suplementar e secundária. “Uma das características essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostra, aqui, sua tendência a transformar-se em prática duradoura de governo”[1].

O totalitarismo moderno, afirma o autor, pode ser entendido como uma maneira de estabelecer, por meio do estado de exceção, uma guerra civil legal em que categorias de cidadãos são destituídos legalmente de proteção jurídica e ficam expostos ao terror da eliminação física[2].

Mas, apesar de utilizar o totalitarismo moderno como exemplo inicial da emergência do estado de exceção, a característica importante deste fenômeno é a expansão deste tipo de figura jurídica nos Estados contemporâneos. A possibilidade da existência de um Estado de emergência permanente “tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”[3].

Como exemplo, primeiramente, o Estado nazista e seu Decreto para a proteção do povo e do Estado:

Tome-se 0 caso do Estado nazista. Logo que tomou 0 poder (ou, como talvez se devesse dizer de modo mais exato, mal o poder lhe foi entregue), Hitler promulgou, no dia 28 de fevereiro, 0 Decreto para a proteção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos as liberdades individuais. O decreto nunca foi revogado, de modo que todo 0 Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou doze anos.[4]

Uma guerra civil instaurada que foi manejada pelo Estado por meio da ascensão de um regime totalitário de exceção. Ou seja, a resposta do Estado democrático a uma situação de guerra civil é a suspensão dos direitos individuais e o estabelecimento de um estado de exceção.

Nos Estados Unidos da América, é possível se referir ao Patriot Act de 2001, após o atentado contra as Torres Gêmeas em Nova Iorque. Tal ato permitiu a manutenção de estrangeiros suspeitos sob prisão e, num prazo de sete dias, a decisão sobre 1) sua expulsão ou 2) sua acusação de violação de lei sobre imigração ou qualquer delito. “A novidade da ‘ordem’ do presidente Bush está em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável”[5]. Ou seja, a novidade está na produção de um novo tipo de homo sacer no bojo de uma democracia liberal.

“Os talibãs capturados no Afeganistão, além de não gozarem do estatuto de POW [prisioneiro de guerra] de acordo com a Convenção de Genebra, tampouco gozam daquele de acusado segundo as leis norte-americanas”[6], explica Agamben. Trata-se de um tipo de sujeito que se encontra numa “irreparável exposição na relação de abandono”[7], pois foi abandonado de qualquer proteção jurídica e inserido num local de exclusão que o desumaniza, no bando soberano[8]. No exemplo dos EUA, Agamben estabelece uma ponte de ligação com o nazismo:

Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas detainees, são objeto de uma pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido temporal mas também quanto a sua própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle judiciário. A única comparação possível e com a situação jurídica dos judeus nos Lager nazistas: juntamente com a cidadania, haviam perdido toda identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a identidade de judeus.[9]

Ao menos, no regime nazista, os judeus mantinham sua identidade. Isso não retira sua inclusão no processo excludente de homo sacerização, mas demonstra que tal processo não é privilégio de regimes não democrático-liberais. A exceção, então, é uma ferramenta específica em que o soberano se constitui como espaço de suspensão das leis: seu limite é a própria suspensão que causa uma situação de governo sobre a vida nua, sobre a vida abandonada pela proteção jurídica e exposta à violência soberana.


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Soberano e o estado de exceção

O soberano é aquele que pode aplicar um tipo específico de violência: a violência do abandono num movimento duplo de exclusão e inclusão do sujeito na vida política. Soberano é aquele que captura um corpo animal, o transforma em corpo político e o insere numa situação de ameaça à sua constituição política: ou seja, o processo de politização e judicialização da vida insere a todos, ao mesmo tempo, permite a exclusão de qualquer um por meio da criação de espaços de exceção. Helder de Souza explica que o “poder soberano que desde as suas origens tem como característica essencial a decisão sobre o estado de exceção, ou seja: estar ao mesmo tempo dentro e fora da lei”[10].

É relevante a colocação anterior acerca do soberano. Estar fora e dentro da lei ao mesmo tempo indica que o estado de exceção não é a abolição da lei, não se trata de uma oposição entre um dentro e fora: a exceção é relacionada ao espaço específico que se abre para a suspensão da lei.

A especificação “ao mesmo tempo” não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei está fora dela mesma”, ou então: “eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei”.[11]

O soberano é um ente político de decisão acerca do local específico de possibilidade da lei, já seu espaço de exceção é a suspensão desta lei e o abandono dos sujeitos que lá se encontram. Quando o governo Bush institui o Ato Patriótico, ele se utiliza de sua posição de governo dentro da estrutura política dos EUA para tornar realidade a criação de uma exceção a partir da soberania: o espaço de exceção é correspondente à categoria de estrangeiros possivelmente suspeitos que, na prática, refere-se aos estrangeiros provenientes do Oriente Médio. Ao mesmo tempo, abre-se também um espaço concreto de exceção, que são as prisões, em que detentos provenientes do Afeganistão se encontram despidos de qualquer proteção jurídica, pois pertencem ao bando soberano.

Isso significa que o estado de exceção é uma criação de um ente artificial que, justamente por meio desta criação, garante sua autoridade e a manutenção da ordem social. Como o soberano é um ente artificial, político, não natural, ele só se torna “dado da realidade”, só oculta sua artificialidade, quando sua cobertura é plenamente válida, mesmo sobre espaços em que a lei não é aplicada: a criação de um estado de exceção (ou sua promulgação por dispositivos jurídicos) é a garantia da autoridade do soberano sobre seu território, até mesmo quando não garante a manutenção do ordenamento jurídico normal. O soberano cobre toda a realidade política de seu território retirando os sujeitos da vida nua, os colocando na vida política mas sempre sob ameaça de um retorno à exclusão. A instituição de um estado de exceção é a cobertura de todo território nacional pela vida nua.

Estado de exceção e necessidade

Giorgio Agamben também relaciona a discussão do estado de exceção com uma elaboração comum de juristas do século XX sobre a necessidade, que seria uma razão para a instauração de um estado de exceção:

Segundo 0 adágio latino muito repetido (uma história da função estratégica dos adagia na literatura jurídica ainda está por ser escrita), necessitas legem non habet, ou seja, a necessidade não tem lei, 0 que deve ser entendido em dois sentidos opostos: “a necessidade não reconhece nenhuma lei” e “a necessidade cria sua própria lei” (necessite fait lot).[12]

A oposição entre estado de exceção e necessidade cria uma situação curiosa: o aumento da necessidade seria causador da perda de legitimidade do estado de direito e impulsionador da solução de exceção.

A necessidade, neste sentido, não seria uma fonte da lei, ou seja, ela não é um conceito-chave para a criação da possibilidade jurídica da exceção, mas é a própria teoria da exceção em outros termos, pois a necessidade teria como função abrir espaço à exceção: por meio do conceito de necessidade, o estado de exceção teria espaço para gerar um espaço de exclusão no decorrer de uma gestão estatal, suspendendo o ordenamento jurídico por meio de um ativador supostamente razoável[13].

o estado de exceção, enquanto figura da necessidade, apresenta-se pois – ao lado da revolução e da instauração de fato de um ordenamento constitucional – como uma medida “ilegal”, mas perfeitamente “jurídica e constitucional”, que se concretiza na criação de novas normas (ou de uma nova ordem jurídica).[14]

No entanto, a discussão acerca da situação que representaria uma necessidade objetiva ao estabelecimento do estado de exceção esbarra no fato de que necessidade é um conceito relativo: do ponto de vista jurídico, a situação de necessidade seria simplesmente aquela determinada no texto jurídico, portanto, refletiria um projeto de sociedade, uma decisão e uma ação pertencentes ao campo da subjetividade.

Essa ingênua concepção, que pressupõe uma pura factualidade que ela mesma criticou, expõe-se imediatamente as criticas dos juristas que mostram como a necessidade, longe de apresentar-se como um  dado objetivo, implica claramente um juízo subjetivo e que necessárias e excepcionais são, e evidente, apenas aquelas circunstâncias que são declaradas como tais.[15]

Ou seja, a necessidade do estado de exceção para manutenção da ordem social responde a uma questão conjuntural e não é real por um erro jurídico, por uma falha ou uma lacuna do direito, pois é o próprio estado de exceção que abre um espaço em branco no ordenamento jurídico. Tudo se passa como se o direito garantisse uma fratura essencial que, em caso extremo, pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, que preenche tal fratura com o vazio, permitindo a existência da lei por meio deste vazio supostamente temporário[16].

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Considerações finais

O soberano é aquele que “através do estado de exceção, ‘cria e garante a situação’, da qual o direito tem necessidade para a própria vigência”[17], ou seja, ele é o ente que garante a existência da esfera política através da exclusão.

Para além, o poder soberano é criador do corpo biopolítico, pois é justamente com o poder soberano que a vida biológica é colocado em primeiro plano. Desta forma, “o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua”[18]. O estado de exceção é um dispositivo de estabelecimento do espaço em que o homo sacer tem seu lugar. Este, por sua vez, é o status do abandono. A exceção, assim, é um vazio que preenche a necessidade estrutural da lei de se ausentar em favor de si própria e da manutenção das condições de sua existência.

Referências

[1] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 19.

[2] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 13.

[3] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 13.

[4] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 12-13.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 15.

[6] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 15.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 91.

[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 84.

[9] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 14.

[10] SOUZA, Helder Félix Pereira de. A perspectiva biopolítica de Agamben: alguns conceitos para se (re)pensar o direito atual. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.9, n.1, 1º quadrimestre de 2014. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica – ISSN 1980-7791, p. 408.

[11] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 84.

[12] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 40.

[13] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 41.

[14] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 44.

[15] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 46.

[16] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 49.

[17] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 25.

[18] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 14.

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