A sociedade dos consumidores IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.
A participação ativa nos mercados de consumo é a principal virtude que se espera dos membros de uma sociedade de consumo (ou, como preferiria o secretário do Interior, das pessoas “de que o país necessita”). Afinal de contas, quando o “crescimento” avaliado pelo PIB ameaça diminuir, ou ainda mais quando ele cai abaixo de zero, é dos consumidores procurando o talão de cheques ou, melhor ainda, os cartões de crédito, devidamente persuadidos e estimulados, que se espera que “façam a economia ir em frente” – a fim de “tirar o país da recessão”.
Tais esperanças e apelos só fazem sentido, é evidente, se dirigidos a pessoas com contas bancárias no azul e uma carteira cheia de cartões de crédito, cidadãos “dignos de crédito” a quem os “bancos que ouvem” irão ouvir, os “bancos que sorriem” irão sorrir e os “bancos que gostam de dizer ‘sim’” irão dizer sim. Não é de surpreender que a tarefa de tornar os membros da sociedade de consumidores dignos de crédito e dispostos a usar até o limite o crédito que lhes foi oferecido está caminhando para o topo da lista dos deveres patrióticos e dos esforços de socialização. Na Grã-Bretanha, viver de crédito e em dívida agora se tornou parte do currículo nacional, planejado, endossado e subsidiado pelo governo. Alunos de universidades, a esperada “elite consumidora” do futuro, e portanto a parcela da nação que promete os maiores benefícios à economia de consumo nos anos vindouros, passam por um período de três a seis anos de treinamento, compulsório em tudo menos no nome, nos usos e habilidades de pegar dinheiro emprestado e viver a crédito. Espera-se que essa obrigatória vida baseada em empréstimos dure o suficiente para se tornar um hábito, varrendo da instituição do crédito ao consumidor os últimos vestígios de opróbrio (trazidos da sociedade de produtores e caracterizados pela caderneta de poupança). E o bastante para que a crença de que jamais pagar uma dívida é uma estratégia de vida inteligente e consistente seja elevada à categoria de “escolha racional” e de “bom senso”, e transformada num axioma não mais questionável da sabedoria de vida. Na verdade, o suficiente para transformar a “vida a crédito” numa segunda natureza.
Essa “segunda natureza” pode rapidamente seguir o caminho do treinamento patrocinado pelo governo. Mas a imunidade aos “desastres naturais” e outros “golpes do destino” pode não acompanhá-la. Para o grande deleite dos marqueteiros e políticos, rapazes e moças terão se juntado às fileiras dos “consumidores sérios” muito antes de começarem a ganhar a vida por si mesmos, já que uma pessoa de 20 anos pode agora obter um conjunto de cartões de crédito sem a menor dificuldade (e isso não surpreende, considerando-se que o desafio de se tornar uma mercadoria valorizada, tarefa que exige dinheiro e mais dinheiro, é condição preliminar para ser admitido no “mercado de trabalho”). No entanto, uma pesquisa recente realizada sob os auspícios conjuntos da Financial Services Authority4 e da Universidade de Bristol descobriu que a geração entre 18 e 40 anos de idade (ou seja, a primeira geração adulta criada e amadurecendo numa sociedade de consumo plenamente desenvolvida) é incapaz de administrar suas dívidas ou acumular algo acima de um nível “alarmantemente baixo” de poupanças: só 30% dos indivíduos dessa geração guardaram algum dinheiro para compras futuras, enquanto 42% nada fizeram para garantir alguma perspectiva de pensão e 24% dos jovens (mas apenas 11% das pessoas acima de 50 anos e 6% daquelas acima de 60) estão no vermelho em suas contas bancárias.
Essa vida a crédito, em dívida e sem poupança é um método correto e adequado de administrar os assuntos humanos em todos os níveis, tanto no da
política de vida individual como no da política de Estado, que se “tornou oficial” – com a autoridade da mais madura e bem-sucedida das atuais sociedades de consumidores. Os Estados Unidos, que têm a mais poderosa economia do mundo, vista como modelo de sucesso a ser seguido pela maioria dos habitantes do globo que estão em busca de uma vida satisfatória e agradável, talvez estejam mais afundados em dívidas do que qualquer outro país na história. Paul Krugman, que assinala que “em 2006 os Estados Unidos gastaram 57% mais do que ganharam nos mercados mundiais”, pergunta “como os norte-americanos têm conseguido viver tão além de seus recursos?”, e responde: “Aumentando suas dívidas com o Japão, a China e os países produtores de petróleo do Oriente Médio.” Os governantes e cidadãos norte-americanos são viciados em dinheiro estrangeiro (e dependentes dele), da mesma forma que do petróleo importado. O déficit de 300 bilhões de dólares no orçamento federal foi recentemente louvado pela Casa Branca como algo de que se deve ter orgulho só porque haviam sido cortados alguns bilhões das centenas de bilhões do déficit do ano anterior (um cálculo, diga-se de passagem, com grande chance de se mostrar falso antes de terminar o ano fiscal). Os empréstimos contraídos pelos Estados Unidos, tal como as dívidas dos consumidores, destinam-se a financiar o consumo, não o investimento. O dinheiro importado que terá de ser pago mais cedo ou mais tarde (mesmo que a atual administração chegue ao extremo de adiar esse pagamento para as calendas gregas) não é gasto para financiar investimentos potencialmente lucrativos, mas para sustentar o boom do consumo e, portanto, o “fator de boa sensação” do eleitorado, assim como para financiar os crescentes déficits
federais, exacerbados com regularidade (apesar dos cortes cada vez mais drásticos nos gastos sociais) pela continuidade da redução de impostos para os ricos.
A “redução de impostos para os ricos” não é apenas uma receita para tornar os
grandes e poderosos mais felizes ou para pagar as dívidas assumidas por políticos no calor de batalhas eleitorais exorbitantemente caras. Também não basta explicar as políticas de redução de impostos pela inclinação congênita de políticos que costumam vir das camadas mais prósperas (como no caso que talvez seja o mais notório, e também mais divulgado, embora sem proveito, do favorecimento do vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, à companhia Haliburton, a qual ele presidia e cuja gerência ele pode estar pretendendo reassumir ao término de seu mandato), ou pela corruptibilidade dos políticos que vêm das camadas inferiores, incapazes de resistir à tentação de transformar seu sucesso político, temporário por natureza, em ativos econômicos mais duradouros e confiáveis.
Além de todos esses fatores, que com certeza tiveram papel importante para gerar e sustentar a tendência atual, cortar os impostos dos ricos é parte integrante da tendência geral de transferir a tributação da renda, sua base “natural” na sociedade de produtores, para as despesas – uma base similarmente “natural” na sociedade de consumidores. Agora é a atividade do consumidor, não a do produtor, que deve supostamente fornecer a interface essencial entre os indivíduos e a sociedade como um todo. É basicamente sua capacidade como consumidor, não como produtor, que define o status do cidadão. É, portanto, certo e adequado, tanto em substância quanto em termos simbólicos, tirar do foco a interação entre direitos e deveres, muitas vezes evocada para legitimar a cobrança e coleta de impostos, substituindo-a pelas escolhas soberanas do consumidor.
De maneira distinta do imposto de renda, o imposto sobre valor agregado, ou IVA, coloca em foco essa liberdade de escolha (do consumidor) que, no senso comum da sociedade de consumidores, define o significado da soberania individual e dos direitos humanos, e que os governos que presidem as sociedades de consumidores ostentam e alardeiam como o tipo de serviço cujo
aprovisionamento fornece toda a legitimidade de que seu poder necessita.
Entre em nosso canal no telegram: https://t.me/colunastortas.
O Colunas Tortas é uma proto-revista eletrônica cujo objetivo é promover a divulgação e a popularização de autores de filosofia e sociologia contemporânea, sempre buscando manter um debate de alto nível – e em uma linguagem acessível – com os leitores.
Nietzsche, Foucault, Cioran, Marx, Bourdieu, Deleuze, Bauman: sempre procuramos tratar de autores contemporâneos e seus influenciadores, levando-os para fora da academia, a fim de que possamos pensar melhor o nosso presente e entendê-lo.
Como se explica então a alardeada superação das crises pelos Estados Unidos, os apoios económicos como o financiamento aos orçamentos gerais dos Estados, donde vem o financiamento às guerras Rússia-Ucrânia, Israel-Palestina, medicamentos etc.