FOUCAULT, Michel. Terceira Parte: Disciplina IN Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999, p. 160-161. Grifos e quebras de parágrafo minhas.
As disciplinas marcam o momento em que se efetua o que se poderia chamar a troca do eixo político da individualização. Nas sociedades de que o regime feudal é apenas um exemplo, pode-se dizer que a individualização é máxima do lado em que a soberania é exercida e nas regiões superiores do poder. Quanto mais o homem é detentor de poder ou de privilégio, tanto mais é marcado como indivíduo, por rituais, discursos, ou representações plásticas.
O “nome de família” e a genealogia que situam, dentro de um conjunto de parentes, a realização de proezas que manifestam a superioridade das forças e que são imortalizadas por relatos, as cerimônias que marcam, por sua ordenação, as relações de poder, os monumentos ou as doações que dão uma outra vida depois da morte, os faustos e os excessos da despesa, os múltiplos laços de vassalagem e de suserania que se entrecruzam, tudo isso constitui outros procedimentos de uma individualização “ascendente”. Num regime disciplinar, a individualização, ao contrário, é “descendente” à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados; e por fiscalizações mais que por cerimônias, por observações mais que por relatos comemorativos, por medidas comparativas que têm a “norma” como referência, e não por genealogias que dão os ancestrais como pontos de referência; por “desvios” mais que por proezas. Num sistema de disciplina, a criança é mais individualizada que o adulto, o doente o é antes do homem são, o louco e delinquente mais que o normal e o não-delinquente.
É em direção aos primeiros, em todo caso, que se voltam em nossa civilização todos os mecanismos individualizantes; e quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista, agora é sempre perguntando-lhe o que ainda há nele de criança, que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis cometer. Todas as ciências, análises ou práticas com radical “psico”, têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas as funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo. E se da Idade Média mais remota até hoje a “aventura” é o relato da individualidade, a passagem do épico ao romanesco, do feito importante à singularidade secreta, dos longos exílios à procura interior da infância, das justas aos fantasmas, se insere também na formação de uma sociedade disciplinar. São as desgraças do pequeno Hans e não mais “o bom Henriquinho” que contam a aventura de nossa infância. O Roman de La Rose é escrito hoje em dia por Mary Barnes; no lugar de Lancelot, o presidente Schreber.
Muitas vezes se afirma que o modelo de uma sociedade teria indivíduos como elementos constituintes é tomada às formas jurídicas abstratas do contrato e da troca. A sociedade comercial se teria representado como uma associação contratual de sujeitos jurídicos isolados. Talvez. A teoria política dos séculos XVII e XVIII parece com efeito obedecer a esse esquema. Mas não se deve esquecer que existiu na mesma época uma técnica para constituir efetivamente os indivíduos como elementos correlatos de um poder e de um saber. O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “excluir”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz: ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção.
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