O indivíduo e a epistémê em Michel Foucault – DROPS #8

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. — São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 85-86. Grifos meus e quebras de parágrafo minhas.

Um sistema arbitrário de signos deve permitir a análise das coisas nos seus mais simples elementos; deve decompor até a origem; mas deve também mostrar como são possíveis combinações desses elementos e permitir a gênese ideal na complexidade das coisas. “Arbitrário” só se opõe a “natural” se se quiser designar a maneira como os signos foram estabelecidos. Mas o arbitrário é também o crivo de análise e o espaço combinatório através dos quais a natureza vai se oferecer no que ela é ao nível das impressões originárias e em todas as formas possíveis de sua combinação.


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Na sua perfeição, o sistema dos signos é essa língua simples, absolutamente transparente, que é capaz de nomear o elementar; é também esse conjunto de operações que define todas as conjunções possíveis. A nossos olhos, essa busca da origem e esse cálculo dos agrupamentos parecem incompatíveis, e nós os explicamos facilmente como uma ambigüidade no pensamento dos séculos XVII e XVIII. O mesmo ocorre com o jogo entre o sistema e a natureza. De fato, não há para esse pensamento nenhuma contradição.

Mais precisamente, existe uma disposição necessária e única que atravessa toda a epistémê clássica: é a pertença de um cálculo universal e de uma busca do elementar a um sistema que é artificial e que, por isso mesmo, pode fazer aparecer a natureza desde seus elementos de origem até a simultaneidade de todas as suas combinações possíveis. Na idade clássica, servir-se de signos não é, como nos séculos precedentes, tentar reencontrar por sob eles o texto primitivo de um discurso afirmado, e reafirmado, para sempre; é tentar descobrir a linguagem arbitrária que autorizará o desdobramento da natureza no seu espaço, os termos últimos de sua análise e as leis de sua composição. O saber não tem mais que desencravar a velha Palavra dos lugares desconhecidos onde ela se pode esconder; cumpre-lhe fabricar uma língua e que ela seja bem-feita — isto é, que, analisante e combinante, ela seja realmente a língua dos cálculos.

É possível agora definir os instrumentos que ao pensamento clássico prescreve
o sistema dos signos. É ele que introduz no conhecimento a probabilidade, a análise e a combinatória, o arbitrário justificado do sistema. É ele que dá lugar ao mesmo tempo à busca da origem e à calculabilidade; à constituição de quadros fixando as composições possíveis e à restituição de uma gênese a partir dos mais simples elementos; é ele que aproxima todo saber de uma linguagem e busca substituir todas as línguas por um sistema de símbolos artificiais e de operações de natureza lógica. No nível de uma história das opiniões, tudo isso apareceria sem dúvida como uma imbricação de influências, em que seria necessário sem dúvida fazer aparecer a parte individual que cabe a Hobbes, Berkeley, Leibniz, Condillac, aos ideólogos. Mas se se interroga o pensamento clássico ao nível do que arqueologicamente o tornou possível, percebe-se que a dissociação entre o signo e a semelhança no começo do século XVIII fez aparecer estas figuras novas que são a probabilidade, a análise, a combinatória, o sistema e a língua universal, não como temas sucessivos engendrando-se ou repelindo-se uns aos outros, mas como uma rede única de necessidades. E foi ela que tornou possíveis essas individualidades a que chamamos Hobbes ou Berkeley ou Hume ou Condillac.

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