O intelectual específico, segundo Foucault – Microfísica do Poder

O intelectual específico é a nova forma que o intelectual toma na contemporaneidade. Com uma força política que transcende os manuais de filosofia.

Durante muito tempo o intelectual dito “de esquerda” tomou a palavra e viu reconhecido o seu direito de falar enquanto dono de verdade e de justiça. As pessoas o ouviam, ou ele pretendia se fazer ouvir como representante do universal. Ser intelectual era um pouco ser a consciência de todos. Creio que aí se acha uma idéia transposta do marxismo e de um marxismo débil: assim como o proletariado, pela necessidade de sua posição histórica, é portador do universal (mas portador imediato, não refletido, pouco consciente de si), o intelectual, pela sua escolha moral, teórica e política, quer ser portador desta universalidade, mas em sua forma consciente e elaborada. O intelectual seria a figura clara e individual de uma universalidade da qual o proletariado seria a forma obscura e coletiva[1].

Esta é a posição de Foucault em relação à ideia antiga do intelectual que guia as massas. Na verdade, o intelectual que guia as massas era fruto de um momento particular em que sua presença era efetiva, era uma presença eficiente; no entanto, a forma de atuação do intelectual (simbolicamente após o Maio de 68) passou a se situar no particular, não mais no universal e essa é uma nova maneira de relacionar a teoria com a prática.

Essa abordagem particular, em problemas específicos (como a luta antimanicomial, a luta feminista e tantas outras), não está diretamente desligada da luta universal do proletariado: muitas vezes são os mesmos inimigos encontrados nos espaços particulares de luta, como a hierarquia patriarcal contra qual o feminismo luta ou a exclusão do sujeito não produtivo, um dos objetivos chave do internamento. Além disso, esta é uma maneira de enfrentá-los no imediato em situações que estão sempre ao alcance em qualquer espaço social.

O papel do intelectual específico não é guiar as massas, apontar os problemas e as soluções para suas questões. As massas sabem o que estão vivendo, entendem seus problemas, o intelectual específico tenta movimentar poder junto às massas. Ele, muitas vezes, serve ao capital, está em locais em que o capital domina discursivamente e não-discursivamente. No entanto, Foucault entende que essa pode ser também uma vantagem estratégica: a posição dentro das malhas de relações englobadas pelo capital serve como um ponto vantajoso para se lutar, para destruir a partir de dentro.

Segundo Foucault, Oppenheimer pode ter sido o primeiro sujeito a articular perfeitamente a ligação entre o particular e o universal que o intelectual específico precisa concretizar:

Tinha uma relação direta e localizada com a instituição e o saber científico que o físico atômico intervinha; mas já que a ameaça atômica concernia todo o gênero humano e o destino do mundo, seu discurso podia ser ao mesmo tempo o discurso do universal. Sob a proteção deste protesto que dizia respeito a todos, o cientista atômico desenvolveu uma posição especifica na ordem do saber. E, creio, pela primeira vez o intelectual foi perseguido pelo poder político, não mais em função do seu discurso geral, mas por causa do saber que detinha: é neste nível que ele se constituía como um perigo político[2].

A figura do intelectual universal surge a partir da figura do jurista, o homem da lei, aquele que precisa estabelecer uma norma universal e justa, “As grandes lutas políticas no século XVIII se fizeram em torno da lei, do direito, da constituição, daquilo que é justo por razão e por natureza, daquilo que pode e deve valer universalmente”. O intelectual específico surge talvez com os pós-evolucionistas, que tentavam travar uma batalha pela verdade local, como em suas influências na sociologia ou na antropologia.

A biologia e a física são as duas disciplinas com local privilegiado para o nascimento deste novo intelectual, já que são os saberes melhor localizados em nossa sociedade – foi “extensão das estruturas técnico−científicas na ordem da economia e da estratégia lhe deram sua real importância”[3]. É aí que o intelectual deixa de ser o grande escritor e passa a ser o cientista absoluto.

O intelectuais específicos estão à mercê de serem manipulados pelo mercado, pela universidade, pelo partido etc. Resta a eles tomarem para si uma outra função. Ao contrário dos intelectuais universais, que prezam por uma nova filosofia, uma nova visão do mundo, uma mudança global, os intelectuais específicos cumprem um papel político cada vez maior. O que eles pretendem é modificar o regime de produção do saber, de maneira específica e com participação política ativa. Eles são os intelectuais que saem de trás do escritório e assumem posições práticas.

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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. [Organização e tradução de Roberto Machado]. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

[2] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.

[3] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.

3 Comentários

  1. Gosto dessa postura específica e não individualista, inclusive porque o intelectual deve trabalhar para as massas que é o mesmo que trabalhar para si. É preciso dar mais ênfase nesse contraponto universal/específico. O intelectual universal trabalha muito e esquece do seu entorno e o intelectual específico busca mais o que está a seu alcance, tem mais objetividade.

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