O cantor e compositor Caetano Veloso conta, em “Verdade tropical”, livro publicado em 1997 que mistura relatos de sua vida, do movimento cultural conhecido como Tropicália, da ditadura militar brasileira (1964-1985) e reflexões suas e de outros intelectuais sobre o Brasil, que foi seu conterrâneo Gilberto Gil quem evocou as canções que faziam como um “movimento” político.
Gil acabara de regressar de uma curta viagem a Recife, onde ele havia feito uma série de apresentações acompanhado pelo produtor musical Guilherme Araújo e entrado em contato, segundo Caetano, com as condições sociais pernambucanas. Ele voltou ao Rio de Janeiro “querendo mudar tudo, repensar tudo – e, sem descanso, exigia de nós uma adesão irrecusável a um programa de ação que esboçava com ansiedade e paciência. […] Ele queria extrair um roteiro de conduta para nós. […] Ele dizia que nós não podíamos seguir na defensiva, nem ignorar o caráter de indústria do negócio em que nos tínhamos metido” (Veloso, 2017, p. 125-126).
As primeiras expressões materiais do movimento foram dois encontros organizados por Gil e Caetano com as presenças de nomes como Chico Buarque, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, José Carlos Capinan e Torquato Neto. Em um dos encontros, Gil falou em produzir uma música que fosse “realmente popular” (Veloso, 2017, p. 128), o que, naquele contexto do começo dos anos 1970, se alinhava com o discurso da esquerda tradicional e do Cinema Novo, cujo grande expoente era o cineasta baiano Glauber Rocha.
Para Caetano, o movimento forjado por Gil era uma “missão”, uma “necessidade”, uma “ruptura” à qual ele passou a se sentir fadado a realizar. “Só podíamos crescer numa direção que passasse pelo elenco de temas e problemas daquilo que veio a se chamar de tropicalismo” (Veloso, 2017, p. 143), cujo projeto pretendia apresentar o Brasil ao mundo como o esboço de uma nova civilização, forjado tanto em características geográficas (ser o maior país da América do Sul), como históricas (o isolamento do idioma português em um continente hispânico) e raciais (a mestiçagem). Para Caetano, o Brasil territorialmente imenso, no hemisfério Sul do mundo, lusófono, mestiço e americano é um “desvio de rota” inevitável ao progresso da civilização ocidental em sua perspectiva de valor universal. Não se trata de apresentar o Brasil como uma solução às contradições do mundo, mas de colocá-lo como parte integrante de um processo que se aceita como “civilizador” e cujas particularidades nacionais, se consumidas por esse Ocidente, poderiam enriquecê-lo.
Em “Verdade Tropical”, há várias tentativas do autor em delimitar a ideia original do tropicalismo, seja a partir de sua semelhança com os poetas concretos paulistanos, pela crítica que Caetano e Gil faziam à esquerda tradicional, representada na música popular pela figura de Geraldo Vandré, seja pela inspiração – estética e política – que vinha da Bossa Nova e do seu criador, João Gilberto. No capítulo em que revela as vertentes antropofágicas do tropicalismo, ele diz que
“…há uma pertinência em notar na Tropicália (na esteira da Antropofagia) uma tendência a tornar o Brasil exótico tanto para turistas quanto para brasileiros. Sem dúvida eu próprio até hoje rechaço o que me parecem tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas desse monstro católico tropical, feitas em nome da busca de migalhas de respeitabilidade internacional mediana. […] Apenas sei que este fato ‘Brasil’ só pode liberar energias criativas que façam proliferar pesquisas de tais disciplinas (ou inventores de disciplinas novas) se não se intimidar diante de si mesmo. E se puser seu gozo narcísico acima da depressão de submeter-se o mais sensatamente possível à ordem internacional” (Veloso, 2017, p. 247)
O projeto tropicalista ao país talvez seja mais palpável a partir da leitura do texto que Caetano Veloso levou à Enciclopédia da Virada do Século, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em outubro de 1993, onde, além de exaltar uma originalidade complexa oriunda da “condição” brasileira, ele instiga a construção de um futuro em que o Brasil se coloca como protagonista perante o mundo, sem deixar de saber sobre suas próprias contradições e originalidades.
“Só na perspectiva do país artista superior – que nós temos o dever de perceber que somos e que a história nos sugere que sejamos – é que podemos revalorar aspectos do nosso atraso como sinais de que casualmente escapamos de uma escravidão maior no misterioso desvelar do nosso destino” (Veloso, 2004, p. 320)
“Todo povo frustrado pode fazer fantasias compensatórias. Mas o que pensar quando estamos na situação de criar tais fantasias e temos como matéria real um país novo, imenso, tropical, mestiço e de fala portuguesa – quer dizer, usando uma das línguas do Sul da Europa que mais tem sofrido humilhações históricas depois de ser a que mais se espalhou pelo mundo, a língua em que se escreveu o épico inaugural da dominação européia sobre o globo, o grande épico da expansão ocidental?” (Veloso, 2004, p. 322)
Na ocasião da leitura do texto, no final do século XX, o tropicalismo como projeto e como discurso já havia se tornado hegemônico no Brasil – ao menos na visão do historiador Francisco Alambert (2012). Dez anos depois do MAM, enquanto Caetano Veloso se apresentava no Oscar, um dos principais eventos da indústria cultural mundial, Gilberto Gil se tornava ministro da Cultura no primeiro ano de governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Numa época em que a globalização era o objeto por excelência das pesquisas em ciências sociais no mundo, a percepção do Brasil como um exemplo (e alternativa) à civilização ocidental ganhava uma plateia reforçada. Logo, se o tropicalismo tinha se tornado a “verdade” da cultura brasileira, seria “também a verdade da cultura do novo mundo globalizado” (Alambert, 2012, p. 143).
Poucos anos antes de Caetano ir ao museu ler seu texto, mas quando o discurso da alternativa brasileira ao mundo ocidental já era hegemônico (ao menos internamente), Gilberto Gil o usou – numa das raras vezes em que o movimento expressou seu ideário como exemplo e contraponto – para responder a um dos argumentos mais relevantes da década de 1990: o do filósofo nipo-estadunidense Francis Fukuyama sobre o fim da história representado pela vitória em definitivo da democracia liberal com a queda, naquele ano, do socialismo soviético. A referência de Gil não diz respeito ao Brasil como solução ou alternativa à civilização ocidental, mas como demonstração, por meio de uma contradição autenticamente brasileira (a do cangaço nordestino), do equívoco que permitiu o surgimento de um argumento construído no centro do Ocidente. Apesar do artigo ter se tornado globalmente famoso, é preciso um breve reconhecimento dele antes de tentar encontrar a resposta de Gilberto Gil à premissa de que a história acabou. Dentro desta questão, aliás, talvez caiba outra: como o Brasil pode representar exatamente o contraponto ao argumento de Fukuyama?
O fim da história?
No primeiro semestre de 1989, Francis Fukuyama publicou um artigo intitulado “The End of History?” na revista The National Interest, do Center for the National Interest (CNI), criado em 1994 pelo ex- presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. O texto surgiu em meio aos acontecimentos que marcavam aquele final do século XX – o Muro de Berlim seria derrubado em junho de 1990 e a União Soviética passava por reformas liberalizantes graduais desde a chegada de Mikhail Gorbachev ao poder, em 1985 – e que, de certa forma, estabeleceram os parâmetros político-econômicos mundiais das décadas seguintes (Varoufakis, 2016), com o avanço da orientação neoliberal liderada por Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, e por Ronald Reagan, nos Estados Unidos, desde os anos 1980.
O argumento central do artigo de Fukuyama é que, com a dissolução da proposta socialista soviética e, consequentemente, da Guerra Fria, a ideologia político-econômica liberal havia triunfado, representando também a vitória definitiva do ideal da democracia ocidental sobre o mundo. “Há poderosas razões para acreditar que esse é o ideal que vai governar o mundo material por um longo tempo” (Fukuyama, 1989, p. 1, tradução minha).
Para ele, o liberalismo, à medida que reconhecia e protegia os indivíduos por meio de liberdades universalmente previstas nos sistemas de leis, e a democracia, que só podia existir com o consenso dos governados, eram os eixos de um “Estado homogêneo universal” suficientemente capaz de superar as “contradições” que fizeram parte da história humana – como as questões sobre o reconhecimento do outro, a dialética entre o senhor e o servo, a transformação e o domínio da natureza, as lutas pelos direitos universais e a dicotomia entre proletários e capitalistas. Em termos mais claros, Fukuyama argumentava que os conflitos políticos que vinham dos séculos imemoriais não existiriam mais a partir daquele momento da história:
“…em um estado homogêneo universal, todas as contradições anteriores seriam resolvidas e todas as necessidades humanas seriam satisfeitas. Não haveria luta ou conflito sobre ‘grandes questões’, e consequentemente nenhuma necessidade de generais ou estadistas; o que permanece é prioritariamente atividade econômica” (Fukuyama, 1989, p. 3, tradução minha)
Como intelectual assumidamente neo-hegeliano, Fukuyama constrói sua argumentação sobre uma suposição semelhante anterior feita por Friedrich Hegel, em 1806, quando o exército francês comandado por Napoleão Bonaparte venceu as forças prussianas na chamada Batalha de Jena. Hegel escreveu que o triunfo da França no conflito representava também a vitória dos ideais revolucionários franceses do final do século XVIII, e que a partir dali todos os lugares do mundo iriam incorporar gradualmente os princípios da liberdade e da igualdade. As guerras mundiais, a abolição do comércio escravo, a extensão de direitos aos trabalhadores e a outras minorias cumpriram, para Fukuyama, apenas o papel de universalizar o liberalismo.
O fim da história de Hegel é, antes de tudo, um fim ideal, já que, para o filósofo alemão, a história avança por meio das ideias, cujos efeitos se refletem no mundo material. Sendo um idealista em contraposição ao materialismo – leitura marxista da teoria hegeliana –, o autor estadunidense dizia que, como o liberalismo era o último ideal existente, ao mundo material só caberia se moldar à sua força. Assim, “dizer que a história se encerrou em 1806 significa que a evolução ideológica humana acabou nos ideais das revoluções Francesa ou Americana: embora regimes particulares no mundo real possam deixar de implementá-los totalmente, sua verdade teórica é absoluta e não pode ser melhorada” (Fukuyama, 1989, p. 6, tradução minha).
Ainda de acordo com Fukuyama, os dois últimos desafios à estrutura político-econômica do liberalismo moderno como ideal foram colocados pelo fascismo, quase na metade do século XX, e pelo comunismo, logo após a Segunda Guerra Mundial. A primeira “ideologia”, baseada em um Estado forte que forjaria um novo “povo” a partir de raízes nacionais, ruiu ao fim do conflito com as bombas atômicas sobre o Japão e a queda do Terceiro Reich alemão.
O segundo, “muito mais sério”, se estruturou no argumento marxiano de que o liberalismo carregava em si mesmo o germe da sua destruição na contradição entre o capital e o trabalho. No entanto, para o autor, o neoliberalismo estadunidense havia conseguido resolver esse problema: “O igualitarismo na América moderna representa a conquista essencial da sociedade sem classes imaginada por Marx. Isso não significa dizer que não existam pessoas ricas e pobres nos Estados Unidos, ou que a distância entre eles deixou de crescer nos últimos anos. Mas as causas profundas da desigualdade econômica não têm a ver com a estrutura legal e social da nossa sociedade, que permanece fundamentalmente igualitária e moderadamente redistribucionista” (Fukuyama, 1989, p. 8, tradução minha). Assim, o comunismo como ideal permaneceu, para Fukuyama, apenas com os “velhos socialistas” ou nos discursos marginais da política, já que, em 1989, até mesmo a China maoísta abrira mão da economia planificada e aceitara o livre-mercado.
A ruína iminente da União Soviética, que ainda não havia se materializado naquele ano, apresentava, segundo Fukuyama, a tendência de que, na esfera da ideologia e da consciência, o liberalismo seria a alternativa do futuro – e não à toa ele já se expressava mesmo nas decisões reformistas econômicas e políticas de Gorbachev no final dos anos 1980.
Por fim, Fukuyama argumenta que mesmo duas possíveis contradições ainda não resolvidas no contexto do liberalismo – além da luta de classes que, para ele, já havia sido solucionada –, a religião e o nacionalismo, não eram alternativas que se colocavam à altura do ideal liberal: o liberalismo moderno surgiu exatamente no seio de sociedades sem bases religiosas que jamais conseguiram concordar com a natureza de uma “boa vida”, e o nacionalismo, ainda que fosse uma questão importante, não se tornaria uma ideologia com o mesmo tamanho do liberalismo para iniciar um novo combate. Em outros termos, portanto: os dois possíveis desafios estavam inseridos dentro do ideal liberal ocidental e poderiam ser resolvidos por ele. Assim,
“…o mundo atual parece confirmar que os princípios fundamentais de organização sociopolítica não avançaram terrivelmente desde 1806. Muitas das guerras e revoluções que aconteceram desde aquele período foram feitas em nome de ideologias que afirmavam ser mais avançadas do que o liberalismo, mas essas pretensões foram desmascaradas pela história. Nesse intervalo, elas ajudaram a expandir o estado homogêneo universal a um ponto em que poderia ter um efeito significativo para o caráter geral das relações internacionais” (Fukuyama 1989, p. 14, tradução minha)
Há algo na suposição de Fukuyama, porém, que, para os fins deste trabalho, é fundamental: o autor admite que sua argumentação tem como ponto de observação os países desenvolvidos – os Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japão, deixando de fora mesmo a China e a Rússia – à época ainda URSS. Diz ele que: “claramente, o vasto Terceiro Mundo permanece muito mais atolado na história, e vai ser um terreno de conflitos pelos muitos anos que ainda virão” (idem).
Ele ainda concorda que o fim da história não significaria o encerramento dos conflitos internacionais, já que o mundo se dividia a partir dali em países “históricos” e “pós-históricos”, em que os primeiros ainda vivenciariam os grandes conflitos presentes ao longo da história, mas que essas contradições seriam cada vez menores em escala e frequência. Assim, quem permanecesse na história seguiria vivenciando as lutas por reconhecimento, os riscos de morrer por objetivos abstratos e os confrontos ideológicos, enquanto, na pós-história, sequer a arte e a filosofia permaneceriam, “apenas o perpétuo cuidado do museu da história humana” (Fukuyama, 1989, p. 18).
O fim da história
Em janeiro de 1992, o cantor e compositor baiano Gilberto Gil lançou o disco “Parabolicamará” com canções compostas durante os três anos anteriores – ele havia colocado “O eterno deus Mu dança” no mercado em maio de 1989. Naquele mesmo janeiro, a editora “Free Press” publicou o primeiro livro de Francis Fukuyama nos Estados Unidos, “The end of history and the last man” (“O fim da história e o último homem”, Rocco, 1992), baseado no artigo que, três anos depois, tinha se tornado um fenômeno da imprensa mundial: o autor deixara de ser um desconhecido “sovietologista” de Chicago para dar palestras em universidades mundo afora, ter perfis publicados em grandes revistas e ver seu texto traduzido em mais de 20 línguas.
Um dos doze fonogramas de “Parabolicamará” é “Fim da História”, nome que sugere a pretensão direta de Gil em dialogar com a suposição publicada por Fukuyama em 1989 e que, por coincidência temporal, tinha se tornado livro no mesmo mês e ano em que o disco do compositor brasileiro estava sendo lançado. Gil diz que a música é uma “contestação frontal” ao argumento do fim da história, mas em um primeiro momento ele não deixa de concordar que ela é possível, apesar de improvável.
“Não creio que o tempo
Venha comprovar
Nem negar que a História
Possa se acabar”
O artifício usado neste primeiro trecho é encontrado em muitas canções de Gilberto Gil para entrar em uma discussão: diante de uma afirmação já aparentemente dada, o eu-lírico se coloca não como um contestador imediato, um contrariador instantâneo da ideia, mas como um sujeito que compreende a complexidade do tema para então argumentar ou expor uma percepção própria sobre o fato narrado. Aqui, essa postura aparece de forma explícita, quando o sujeito diz não acreditar nem que o tempo possa “comprovar” nem “negar” o fim da história.
Exemplo parecido desta postura, talvez, seja a letra de “Ok ok ok”, canção do disco de mesmo nome lançado neste ano (“o primeiro da minha velhice”), em que o eu-lírico admite de início saber seu lugar como alguém relevante para emitir uma opinião já exigida por muitas pessoas (sobre a crise político-institucional brasileira?) – uma afirmação pública cuja antecedência é o papel de Gil como artista historicamente envolvido em um “projeto político”. No entanto, o eu-lírico o coloca em suspenso até o final, quando, em outra admissão, diz não ter dado a opinião demandada – e explica o motivo: “Palavras dizem sim, os fatos dizem não”.
Em “Ele falava nisso todo dia”, do disco “Gilberto Gil”, de 1968, há outro exemplo parecido: o eu-lírico começa contando, em terceira pessoa, a história de um sujeito abstrato que contava todos os dias sobre sua preocupação em garantir a segurança financeira da família (“A incerteza, a pobreza, a má sorte / Quem sabe lá o que aconteceria?/ A mulher, a filhinha, a família desamparada / Retrata a carreira frustrada de um homem de bem”). O narrador não assume nenhum juízo de valor sobre o relato e, conforme a canção avança, revela que o temor do sujeito era morrer prematuramente sem deixar dinheiro à esposa (“Se a mulher chora o corpo do marido/ O seguro de vida, o pecúlio/ Darão a certeza do dever cumprido”) e que ele, surpreendentemente, era um homem jovem (“Era um rapaz de vinte e cinco anos”). O fim, a irônica morte do personagem atropelado em frente a uma companhia de seguros, é seguida de uma exclamação – em que, ao mesmo tempo que o eu-lírico admite compreender a perturbação do homem cuja história é contada, lamenta por ela ter se tornado mais do que apenas uma preocupação comum da vida burguesa: “Oh, que futuro! Oh, rapaz de vinte e cinco anos”. A letra, assim, é composta de um relato que parece imparcial até seu último momento, quando se conhece a posição do narrador sobre o que foi contado.
Em “Fim da história”, diferentemente desses exemplos, há claramente uma ideia afirmada antes da canção: a de que, segundo Fukuyama, a história havia acabado com o triunfo da democracia liberal ocidental, capaz de resolver todas as contradições humanas. Ela está posta desde o título e, a partir da segunda estrofe, passa a ser respondida por um narrador agora dentro da discussão. A estrofe seguinte já aponta para o contraponto de Gil ao argumento do filósofo e economista nipo-estadunidense:
“Basta ver que um povo
Derruba um czar
Derruba de novo
Quem pôs no lugar”
O trecho, como continuação do anterior, indica definitivamente a posição contrária do eu-lírico à proposição do artigo: o tempo não comprova que a história “possa se acabar”, como a própria Rússia, a qual Fukuyama tinha dedicado toda sua carreira acadêmica, havia demonstrado durante o século XX. Por 400 anos, o czarismo – ao qual Gil se refere na canção – , foi o “sistema político” e a “ideologia” dos russos, e poderia ter declarado ser o fim da história em algum momento. Até que, em março de 1917, Nicolau II, czar da dinastia Romanov, filho de Alexandre III (que havia governado a Rússia durante cinco décadas do século XIX) foi preso por revolucionários bolcheviques mesmo depois de abdicar dos direitos hereditários dos seus filhos e entregar, com essa decisão, o poder aos soviéticos. Nicolau II seria fuzilado um ano depois na cidade de São Petersburgo, quando o líder bolchevique Vladimir Lênin já havia sido alçado à liderança do projeto que fundaria a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Segundo o escritor polonês Isaac Deutscher, a queda do czar foi antecedida por uma grave crise política, econômica e social que deu seus primeiros sinais no final do século XVIII, ainda com o czar Alexandre II. O czarismo, levando em conta o argumento de Fukuyama, deixou de dar conta das suas contradições internas.
“Das grandes nações europeias, a Rússia foi a única que pouco participara do progresso pacífico da era precedente. Seu avanço econômico, embora indubitável, era insignificante em comparação com a acumulação da riqueza na Europa ocidental. Fora, de qualquer modo, insuficiente para implantar no país hábitos de negociação pacífica e de concessões e fomentar a crença num progresso gradual, do qual todas as classes se beneficiariam. O parlamentarismo e todas as instituições de conciliação e arbitramento social que habitualmente surgem à sua volta, não deitara raízes no solo russo. A luta de classes, em sua forma mais violenta e indisfarçada, travava-se de um extremo ao outro do império e o czarismo não deixara aos trabalhadores e camponeses nem mesmo a ilusão de que lhes permitiria influenciar os destinos do país” (DEUTSCHER, 1968, p. 232)
No entanto, naqueles anos em que Fukuyama e Gil estavam debatendo por meio de artigos e canções, a URSS vivia seu próprio “fim da história”: a chegada de Mikhail Gorbachev ao posto de secretário-geral do Partido Comunista, em 1985, como o filósofo nipo-estadunidense explicava no seu artigo, representava de fato uma mudança vigorosa na direção política do país, reconhecida até mesmo pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, em um artigo publicado em junho de 1990 no jornal “New York Times”. Da mesma forma como havia sido com Nicolau II no começo do século, a crise econômica que a URSS vivia à época tinha sido suficientemente capaz de gerar manifestações populares vigorosas no território russo e nos países satélites, como aconteceu durante a crise na Polônia em 1980. Mantendo-se fiel ao artigo, o comunismo também deixava de ser capaz de resolver suas próprias tensões.
Enquanto Fukuyama argumenta, na figura de um intelectual, a partir de um ponto de vista interno à democracia liberal ocidental supostamente vitoriosa, assumindo “the end point of mankind’s ideological evolution and the universalization of Western liberal democracy as the final form of human government” (Fukuyama, 1989, p. 1), Gil sugere que a manutenção de um “sistema político” e de uma “ideologia”, nos termos do filósofo nipo-estadunidense, é um ato que depende de quem dá materialidade ao pacto social, do “povo”, que “derruba um czar” e “derruba de novo/ Quem pôs no lugar” quando esse sistema ou essa ideologia não consegue lidar com suas questões internas. Parece ser, antes de tudo um alerta do compositor baiano: o de que decretar o fim da história nesses termos relativiza o poder que novos e velhos conflitos possuem em desestabilizar qualquer modelo político – mesmo os mais longínquos.
O liberalismo, dessa perspectiva, jamais significaria o fim da história, porque sua continuação no tempo depende, assim como qualquer outra ideologia, de um pilar central: de uma aceitação dos governados que, além de ser a estrutura da democracia, precisa se manter estável no tempo diante das tensões que lhe são inevitáveis. Gil parece sugerir, assim, que o liberalismo, ao contrário do proposto por Fukuyama, depende de estabilidade como qualquer outro sistema político ou ideologia. Quando não são capazes de lidar com suas contradições, percebem que vários outros sistemas políticos e ideologias, como foi o comunismo em relação ao czarismo ou o capitalismo ao comunismo, usando ambos os autores, são como forças que concorrem pelo direito de governar, de reinar, de controlar – e de se proclamar como o “fim da história”. O liberalismo, enfim, seria apenas um vencedor momentâneo.
Nesse sentido, Fukuyama assume uma perspectiva interna ao ideal liberal ocidental, incapaz de ver a concorrência, mas apenas um triunfo aparentemente atemporal, enquanto Gil parece o observar de fora, de onde é impossível enxergar uma história que termine. A resposta de Gil é exatamente essa: a história não acaba porque ela, como o tempo, é um eterno contínuo formado por forças em concorrência que, neste processo, impedem um fim absoluto.
“É como se o livro dos tempos pudesse
Ser lido trás pra frente, frente pra trás
Vem a História, escreve um capítulo
Cujo título pode ser ‘Nunca Mais’
Vem o tempo e elege outra história, que escreve
Outra parte, que se chama ‘Nunca É Demais’
‘Nunca Mais’, ‘Nunca É Demais’, ‘Nunca Mais’
‘Nunca É Demais’, e assim por diante, tanto faz
Indiferente se o livro é lido
De trás pra frente ou lido de frente pra trás”
Esse lugar de “fora” que Gil parece ocupar se ancora no conceito filosófico de “eterno retorno” que, se concebido como ideia pela filosofia grega, foi elaborado posteriormente como tal nos livros de Friedrich Nietzsche. O “eterno retorno”, para o filósofo, é o pensamento mais elevado, profundo e abissal, pois “conduz à visão da eterna repetição sem sentido ou fim de tudo” (Neves, 2013, p. 283). Em “A Gaia Ciência”, Nietzsche descreve o conceito da seguinte forma:
“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência […]. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir!” (Nietzsche, 2001, p. 56)
Marton (2016) oferece uma interpretação do eterno retorno nietzschiano pelo campo da ética, onde seu papel é transvalorar todos os valores, já que o regresso constante acabaria por arruinar o indivíduo que não suporta a vida, mas permitiria o surgimento de novos valores por meio de homens que, ao contrário, amam viver. Enquanto para o primeiro o eterno retorno seria um fardo, para o segundo seria uma oportunidade.
Neves (2013), porém, faz uma leitura cosmológica do conceito, como “aquilo que eternamente tem de retornar, sempre, na mesma ordem e sequência” (Neves, 2013, p. 285), porque as forças materiais (“força” nos conceitos da Física, como a “atração” ou a “repulsão”) são finitas e determinadas, mas repetem seus arranjos sempre num tempo infinito. As forças, além do mais, concorrem entre si, têm “vontade de potência”, uma condição que antecede o próprio fato de serem forças, porque um acontecimento (a união de matérias, por exemplo) sempre existe pelo propósito principal de se ser mais potente do que já se é. “O mundo como forças em luta, em disputa, buscando mais potência – essa é a cosmologia nietzschiana. Forças que, na totalidade, não aumentam ou diminuem, forças que se efetivam numa eternidade imanente, um mundo que ‘eternamente tem de retornar'” (Neves, 2013, p. 288).
As duas leituras permitem compreender que uma vida que é vivida para a expansão da potência é uma experiência em que as forças do mundo são encaradas em sua indeterminação e imprevisibilidade. O desafio ético do demônio transcrito por Nietzsche não aborda a aceitação de uma situação concreta da realidade, mas de uma postura do indivíduo perante o mundo: aceitar o retorno pode ser um fardo ou uma oportunidade. Assim, se uma vida se abre à indeterminação e à completa diferença de todas as coisas do mundo, o eterno retorno é sempre, na verdade, um eterno retorno do que é diferente, pois nada volta de forma igual. É o eterno retorno da diferença, não do mesmo. Na interpretação ética, a vida vivida por um indivíduo ressentido é o eterno retorno do mesmo, enquanto a vida vivida para a expansão da potência representa a aceitação do fluxo das forças transformadoras do mundo, um eterno retorno da diferença. Ela representa uma vida sem uma perspectiva determinística das coisas – uma compreensão de que tudo é diferente e aleatório. Considerado essa interpretação, Fukuyama imagina um eterno retorno do mesmo, enquanto Gil aceita o eterno retorno da diferença.
Em “Tempo rei”, do disco “Raça humana”. de 1984, Gil já havia entrado (muito mais poeticamente) em uma discussão semelhante sobre o tempo como um contínuo interminável que traz consigo sempre uma vontade de potência, e cujo eu-lírico se coloca diante dele, da mesma forma que na resposta de “Fim da história”, como um sujeito impotente, a quem só resta aceitar os desígnios.
“Não me iludo
Tudo permanecerá
Do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando
Todos os sentidos…”
[…]
“Tempo Rei!
Oh Tempo Rei!
Oh Tempo Rei!
Transformai
As velhas formas do viver
Ensinai-me
Oh Pai!
O que eu, ainda não sei”
Assim, voltando a “Fim da história”, a concepção de Fukuyama é inconcebível para Gil porque, enquanto aquele fala em uma história que é capaz de triunfar, este entende o tempo apenas como estabilidades passageiras, independentemente da duração que possuam. O ideal da democracia liberal ocidental pode até ter sobrevivido como sistema político e como ideologia desde a Batalha de Jena, em 1806, na delimitação de Hegel, mas só uma leitura a partir de dentro dela permitiria apontá-la como a vencedora final da história do mundo. De fora, como uma força em concorrência com outras ou como condição para o surgimento de novos valores, no conceito de “eterno retorno” de Nietzsche, assim como o czarismo, que havia existido por quatro séculos, nada resiste ao poder transformador da própria história. É por isso que:
“Quantos muros ergam
Como o de Berlim
Por mais que perdurem
Sempre terão fim”
A leitura cosmológica do conceito de Nietzsche ainda se expressa mais uma vez na letra de Gil quando, já clara sua argumentação para a impossibilidade do fim da história, ele se aproxima do filósofo prussiano expandindo a lei do “eterno retorno” mesmo para sistemas não necessariamente humanos. Neves revela que a “vontade de potência” aparecia, em “Assim Falou Zaratustra”, como uma condição apenas do mundo orgânico, nas obras seguintes de Nietzsche aparecia também como característica de objetos inanimados (Neves, 2013, p. 287). Então, “assim por diante…”
“…Nunca vai parar
Seja neste mundo
Ou em qualquer lugar”
O contraponto brasileiro
Mesmo sendo nordestino, eixo pensante do tropicalismo e de ter composto mais de 500 canções durante sua carreira artística, Gilberto Gil se refere a Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro pernambucano famoso pelo apelido “Lampião”, apenas em um fonograma: justamente o xaxado d’”O fim da história”. Antes, a única referência direta do movimento aparecia no poema Capitão Lampião, escrito por Torquato Neto e Caetano Veloso em 1968. Glauber Rocha o usou como referência secundária em dois dos seus principais filmes, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969), mas, apesar de Caetano dizer em seu livro que o cineasta baiano foi uma das fontes das quais o tropicalismo bebeu em seus primórdios, Glauber nunca se considerou um “membro” do movimento.
Se o projeto tropicalista tinha como base a apresentação do Brasil como uma realidade alternativa e uma resposta à civilização ocidental que se pretendia universal, pelo seu território, pela localização geográfica, pelo idioma, pela mestiçagem e pela condição histórica, Gil se vale de alguma forma dessa perspectiva para alçar o personagem (tanto em termos populares como sua representação cultural posterior) como contraponto ao argumento de Fukuyama.
Lampião foi morto a tiros pela polícia sergipana em julho de 1938, na cidade de Angicos, ao lado de sua esposa, Maria Gomes de Oliveira, conhecida como “Maria Bonita”, e de outros companheiros, mas desde então sua figura se tornou um marco divisório de opiniões, percepções e abordagens tanto sobre as práticas do cangaço como sobre a desigualdade social brasileira e a pobreza da região Nordeste do país. Mais do que isso, as décadas seguintes à sua morte foram preenchidas de lendas ancoradas na emoção e elaboradas dessa mesma forma pelas representações artísticas. Segundo Grunspan-Jasmin (2006), mesmo quando ainda vivo o cangaceiro já suscitava sentimentos desencontrados. Então:
“Relatar a vida desse personagem é, portanto, antes de tudo, observar como se constrói uma história individual na qual o real, o simbólico e o imaginário se mesclam, em que o próprio Lampião torna-se cúmplice da construção de seu personagem e da sua lenda, com a fragilidade do testemunho oferecendo perspectivas de interpretação de uma riqueza infinita” (Grunspan-Jasmin, 2006, p. 35)
Lampião foi alçado por Gil na canção como resposta a Fukuyama por um acontecimento ligado ao modo como sua figura já era consumida naquela década: em setembro de 1991, a prefeitura de Serra Talhada, no Pernambuco, cidade-natal de Lampião, abriu um plebiscito para saber se a população aprovava a ideia de uma fundação local de erguer uma estátua do cangaceiro na principal praça do município. Era já havia sido posta antes por um vereador, mas ganhou força depois que uma afiliada da TV Globo se instalou na cidade vizinha de Caruaru e demonstrou interesse na “pauta”. Mesmo antes da consulta pública, o assunto se espalhou pelo país – não à toa, a revista Veja publicou uma reportagem em julho daquele ano afirmando que o resultado da votação representava o julgamento final de Lampião. “O plebiscito vai decidir se ele foi um herói e merece uma estátua ou foi apenas um bandido frio e sanguinário”, dizia a chamada do texto.
Segundo Costa (1982), 2.289 eleitores aprovaram a ideia (76%), mas a estátua nunca deixou de ser um projeto. Segundo o historiador e jornalista Paulo César Gomes, do jornal “Farol de Notícias”, de Serra Talhada, a Fundação Casa da Cultura de Serra Talhada, que havia proposto o monumento à prefeitura, não conseguiu encontrar patrocinadores para materializá-lo.
“…havia a ideia, mas não um projeto e um órgão que fosse responsável por construí-lo. Não havia um viés do Poder Executivo. […] Logo após o plebiscito aprovado é que a Fundação foi ir atrás de apoio, patrocínio, de órgãos que pudessem planejar e implementar a estátua. Inicialmente se procurou a Fundação Banco do Brasil, o projeto foi colocado, se pensou em levar para o Clube da Serra, que dá nome à cidade, fazer um pátio cultural lá, mas acabou que, em 1993, com a mudança na presidência da fundação, o projeto foi engavetado definitivamente”
O conflito em torno da estátua de Lampião em Serra Talhada, seja como for, foi o contraponto utilizado por Gil ao argumento do fim da história de Fukuyama, porque ele demonstrava como, no contexto brasileiro, ao contrário da perspectiva do filósofo estadunidense, as tensões permanecem vivas no tempo, apenas em formas distintas. Se em um primeiro momento ela se deu entre as práticas do cangaço, a figura real de Virgulino e seus justiceiros e a violência que servia como motor para suas idéias, ou seja, um “perturbador extremo” (Grunspan-Jasmin, 2006), depois de sua morte o conflito se tornou ideológico, girando sobre a legitimidade de uma estátua ser erguida em sua cidade-natal e as distintas interpretações sobre suas intenções e métodos que, em 1991, seriam “julgados”, como dizia a revista Veja. Gomes revive a tensão daquele período lembrando que “houve um embate entre gerações, porque os contemporâneos de Lampião, que era uma geração fortemente influenciada pelo legado negativo dele, na perspectiva da violência, do banditismo em si, se posicionou contra. […] No entanto, os jovens, que vieram depois, que não tiveram essa influência da passagem do Lampião, encamparam essa luta. Muitos movimentos estudantis, centros acadêmicos e operários levantaram a bandeira do ‘sim’, que acabou sendo a maioria depois”.
Essa divisão começa a ser narrada pelo eu-lírico de “O fim da história” na segunda parte da canção, e segue com um brevíssimo relato sobre a morte de Lampião e seu “ressuscitamento” anos depois, expresso, por exemplo, no plebiscito de Serra Talhada:
“Por isso é que um cangaceiro
Será sempre anjo e capeta, bandido e herói”
“Deu-se notícia do fim do cangaço
E a notícia foi o estardalhaço que foi
Passaram-se os anos, eis que um plebiscito
Ressuscita o mito que não se destrói
Oi, Lampião sim, Lampião não, Lampião talvez
Lampião faz bem, Lampião dói
Sempre o pirão de farinha da História
E a farinha e o moinho do tempo que mói”
Para o projeto tropicalista, Lampião era o personagem perfeito para responder Fukuyama: fruto das contradições sociais, políticas, econômicas e históricas internas do Brasil, situado num contexto geográfico, climático e também social próprio do Nordeste do país, transformado em ator da história e em personagem (ou “mito”, na canção de Gil) por um tipo de reação típico daquela região – já que o cangaço vinha desde o século XVIII com José Gomes, o “Cabeleira” –, Virgulino não significava exatamente uma alternativa política à civilização ocidental, mas era uma figura autenticamente brasileira que contrapunha perspectivas e refutava argumentos elaborados no seio de um Ocidente “desenvolvido” e que se espalhavam unívocos sobre o mundo. Voltando às palavras de Caetano, o “desvio de rota” desse processo encontraria no Brasil um personagem que expressava, ao contrário de Fukuyama, a impossibilidade do fim da história, e isso por causa das contradições do Brasil – e do próprio liberalismo.
A resposta de Gil a Fukuyama ressoa até hoje, já que, como Gomes afirma, a discussão em Serra Talhada sobre a relação entre a cidade e a figura de Lampião permaneceram após 1991:
“Abriu-se uma perspectiva de se explorar comercialmente a figura dele do ponto de vista do turismo, da hotelaria, etc. […] Houve uma ascensão do xaxado, de eventos relacionados ao cangaço na cidade, e hoje já tem hotéis com nome dele, já tem o Museu do Cangaço, tem vários eventos de xaxado, etc. O plebiscito foi uma virada na forma como Serra Talhada lida com Lampião, mas ela precisou que a opinião popular prevalecesse para que isso acontecesse. […] Mesmo depois de tantos anos a gente não saiu desse embate ainda. Ele não se encerrou naquele 7 de setembro de 1991”
Se em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Glauber Rocha toma os últimos dias de Cristino Gomes da Silva Cleto, o “Corisco”, cangaceiro sobrevivente que herdou a liderança do grupo de justiceiros de Lampião – e cuja morte decretou o fim do cangaço –, como um roteiro cinematográfico que atesta esse encerramento, Gil prevê um eterno retorno do cangaço. Para ele,
“Tantos cangaceiros
Como Lampião
Por mais que se matem
Sempre voltarão”
E assim por diante
Nunca vai parar
Inferno de Dante
Céu de Jeová”
Nesse trecho final, é possível considerar duas interpretações: a primeira, de que o compositor baiano apenas reitera que, mesmo mortos há muito tempo, os cangaceiros permanecem no imaginário popular e na memória discursiva como lenda, como “mito”, ou como afirma Filho (2014), como parte de rito cujo objetivo é “impedir” a morte (e o fim da história) de Lampião. Seu ensaio sobre as comemorações do centenário de Virgulino no Ceará no final da década de 1990 indica que, exterminado fisicamente, o justiceiro permanecia como discurso na região.
“as comemorações lampiônicas indicam fortes sintomas do mnemotropismo contemporâneo que vem contornando a memória do cangaço e constituem, entre diversas ações e representações que engendram, singular amostra de como o fenômeno situa-se no tempo presente, provavelmente, inserido no corolário do aforismo “um passado que não quer passar”, máxima bastante utilizada em alusão à experiências de tempo que entendemos como presentistas” (FILHO, 2014, 64)
A segunda, talvez menos factível, pode ser uma indicação do eu-lírico de que o cangaço permanece na história não apenas como ideia, mas como uma prática ainda presente, mesmo sendo renomeada na imprensa desde a década de 1990, sem deixar de guardar semelhanças com o “velho cangaço”. Desse ponto de vista, Lampião foi apenas uma geração, não um fim.
Conclusão
Para Fukuyama, a história havia acabado em 1990, com a queda da URSS e a vitória da democracia liberal estadunidense como ideia e como sistema político sobre o mundo. Era um argumento neo-hegeliano, já que Hegel havia decretado um fim da história em 1806, depois da Batalha de Jena. Gilberto Gil, por sua vez, alça o conceito de eterno retorno de Nietzsche para expressar a impossibilidade de qualquer tipo de fim, já que a vontade de potência permite sempre o regresso de tudo. O tempo como um contínuo ingovernável, aliás, já tinha aparecido em outras canções suas. O uso de Lampião em “Fim da história” é a forma de Gil, mantendo-se fiel ao projeto tropicalista, indicar a capacidade das contradições brasileiras serem um desafio e uma alternativa, ao mesmo tempo, para o avanço do projeto ocidental sobre o mundo.
No entanto, uma leitura mais cuidadosa de Fukuyama pode indicar que a resposta de Gil não deixa de ser parte do argumento original elaborado no artigo de 1989. Diz ele que “a grande massa do Terceiro Mundo permanece muito mais atolada na história, e vai ser um terreno de conflitos pelos muitos anos que virão. Mas vamos nos concentrar, por enquanto, nos estados maiores e mais desenvolvidos do mundo que, afinal, contam para maior parte da política mundial” (Fukuyama, 1989, p. 14, tradução minha). Assim, considerando que o Brasil, tanto no artigo do filósofo nipo-estadunidense como nas literaturas de várias disciplinas (assim como em canções tropicalistas), era considerado parte do “Terceiro Mundo” em 1990, é possível cogitar que, se um dia reunidos, Gil e Fukuyama teriam mais a concordar sobre o papel do país no projeto ocidental e sobre o fim da história, do que separados pelas várias distâncias entre os dois “Ocidentes” em que vivem até hoje.
Referências
ALAMBERT F. 2012. “A realidade tropical”. São Paulo: Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, n. 54, pp. 139-150
DEUTSCHER, I. 1968. O profeta armado. São Paulo: Civilização Brasileira
FILHO, V. 2014. “Ruminações do cangaço: Indagações sobre um “passado que não quer passar” nordestino”. Ponta de Lança, v. 7, n. 13, pp. 63-79
FUKUYAMA, F. 1989. “The end of history?” The National Interest, pp. 1-18
GRUNSPAN-JASMIN, E. 2016. Lampião, senhor do sertão: vidas e mortes de um cangaceiro. São Paulo: Edusp
MARTON, S. 2016. “O eterno retorno do mesmo, ‘a concepção básica de Zaratustra’”. Cadernos Nietzsche, v. 3, n. 37, pp. 11-46
NEVES, J. 2013. “O eterno retorno hoje”. Cadernos Nietzsche, v. 2, n. 32, pp. 283-296
NIETZSCHE, F. 2001. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras
SILVA. A. 2012. Xaxado: a construção da identidade e da memória social do cangaço. Paper apresentado no III Congresso Internacional de História da UFG, Jataí, 25 a 27 de setembro.
VAROUFAKIS, Y. 2016. O Minotauro global. São Paulo: Autonomia Literária
VELOSO, C. 2017. Verdade tropical. Companhia das Letras: São Paulo
__________ (2003). “Conferência no MAM”. Teresa, v. 4, n. 5, pp. 307-329.
Cite este artigo:
MENDES, Vinicius. O (não) fim da história: Gilberto Gil Vs Francis Fukuyama. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-nao-fim-da-historia-gilberto-gil-vs-francis-fukuyama/>>.
É jornalista e cientista social. Atualmente é mestrando do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Escreve também no blog Arimandia.