Da série “A disciplina em Foucault”.
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Índice
- A cidade pestilenta;
- Bentham e o panóptico;
- O panóptico enquanto tecnologia de eficiência;
- A sociedade disciplinar através do panoptismo;
- Considerações finais;
- Referências.
- Anexo: panóptico nas prisões brasileiras?
A cidade pestilenta
Descrever a tecnologia de poder do panóptico e o esquema do panoptismo obriga Michel Foucault a retornar três séculos e entender o procedimento padrão numa cidade em momentos de disseminação da peste[1]:
- A cidade deve ser fechada e a circulação proibida. Aqueles que saírem de casa deverão ser punidos com a morte;
- A cidade é dividida por quarteirões e, cada divisão, deve ter um intendente;
- Cada rua deve ficar sob a autoridade de um síndico que deverá vigiá-la e ser punido com a morte caso se ausente;
- No dia do início da quarentena, todas as pessoas devem se trancar em casa e aquelas que saírem, assim como no primeiro ponto, devem ser punidas com a morte;
- Após cada morador estar em sua devida casa, o síndico fica responsável por trancá-la do lado de fora. Após esta tarefa, entrega todas as chaves ao intendente do quarteirão;
- Cada família deverá já ter feito seu estoque de comida, mas para vinhos e pães, deve-se realizar a entrega através de pequenos canais de madeira que permitirão entregar a ração sem o contato entre humanos. Carnes, peixes e verduras serão entregues através de roldanas e cestas;
- Caso seja absolutamente necessário que um morador saia de casa, este movimento deverá ser feito em turnos, em de cada vez, sem que nenhum morador encontre algum vizinho pelo caminho;
- Somente os síndicos, intendentes e soldados da guarda podem circular. Além deles, os indivíduos que ocupam a posição de “corvo” têm passe-livre, na medida em que são responsáveis por levar os mortos e enterrá-los.
Percebe-se que cada indivíduo está preso ao seu lugar, separado de todos os outros sob o risco de morte por contágio ou punição. Para garantir que a punição esteja sempre na consciência dos moradores da cidade, o trabalho de inspeção é levado a cabo constantemente através de guardas nas portas da cidade, na prefeitura e nos bairros. Isso garante a obediência do povo e a autoridade dos magistrados responsáveis pela organização da quarentena. Além disso, cada síndico e intendente realiza visitas diárias ao local de sua responsabilidade: os síndicos, com objetivo de verificar a situação de cada morador de cada casa; o intendente, com objetivo de verificar se os síndicos estão de fato realizando seu trabalho e se os moradores têm alguma reclamação.
Essa vigilância se apóia num sistema de registro permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos intendentes aos almotacés ou ao prefeito. No começo da “apuração” se estabelece o papel de todos os habitantes presentes na cidade um por um; nela se anotam “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição”; um exemplar para o intendente do quarteirão, um segundo no escritório da prefeitura, um outro para o síndico poder fazer a chamada diária. Tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados. Estes têm o controle dos cuidados médicos; e um médico responsável; nenhum outro médico pode cuidar, nenhum boticário preparar os remédios, nenhum confessor visitar um doente, sem ter recebido dele um bilhete escrito “para impedir que se escondam e se tratem, à revelia dos magistrados, doentes do contágio”.[2]
Até aqui, é possível identificar que toda liame entre os moradores da cidade e a administração pública é feita através de constantes esquemas de vigilância e punição, com níveis de autoridade e comando entre os agentes públicos. As instâncias de poder estão, assim, presentes na relação de cada um com sua morte ou com seu contágio, por meio do registro constante e das ações tomadas pelos responsáveis pela inspeção e controle.
Diferentemente dos cuidados aos leprosos, que são colocados em colônias, afastados, retirados da cidade, rejeitados e exilados, que são desconsiderados em sua individualidade, mas sim excluídos como grandes corpos homogêneos de doentes, os pestilentos são inseridos num tipo de tática de vigilância que individualiza, articula cada microrrelação de poder na medida em que se divide em diversos níveis de autoridade vigilante. O efeito também não é só repressivo: o poder que causa o grande fechamento, também é o poder que articula um bom treinamento, afinal, corpos dóceis são corpos aptos ao adestramento.
Enquanto a lepra é marcada pelo estigma da exclusão, a peste é analisada e repartida. O exílio do leproso e a prisão do pestilento não fazem parte de uma mesma estratégia política:
Um é o de uma comunidade pura, o outro, o de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer o poder sobre os homens, de controlar suas relações, de desmanchar suas perigosas misturas. A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais – é a utopia da cidade perfeitamente governada.[3]
É na peste que o poder disciplinar pode ser exercido com sua forma ideal. É com a cidade pestilenta que os governantes sonhavam para fazer funcionar suas disciplinas perfeitas. A peste é a imagem de fundo dos esquemas disciplinares, é seu local máximo de observação.
Bentham e o panóptico
Se a cidade pestilenta é o local perfeito para aplicação de processos disciplinares, é no panóptico de Jeremy Bentham que a disciplina tem sua arquitetura materializada. Ele pode ser definido como uma construção que:
- Tem presente em seu centro uma torre de vigia;
- Em suas periferias, um anel com cubículos divididos;
- A torre é vazada por janelas que se abrem na face interna do anel de celas;
- Toda cela tem uma abertura em sua face interna, perfeita para a observação a partir da torre, e uma abertura para fora, de maneira que a luz do sol possa iluminar qualquer atividade em seu interior.
O vigia, localizado na torre central, é privilegiado em sua visão e responsável pelo controle daqueles que ficam no interior das celas. Estes, por sua vez, podem ser loucos, doentes, condenados, operários ou até mesmo escolares. O esquema arquitetural panóptico não é direcionado somente a um tipo de vigilância, mas sim a toda vigilância que atravesse o poder disciplinar, que precise da otimização de olhar que somente as técnicas disciplinares podem permitir. Dentro de cada cela, um sujeito sozinho, isolado, individualizado, perfeitamente visto e controlado.
O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.[4]
A arquitetura do panóptico tem em si um efeito extremamente importante: “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”[5]. Ou seja, mesmo com ação descontínua (o vigilante não precisa estar sempre na torre de vigia), o efeito é contínuo (os vigiados sentem sempre a presença do olhar do vigia) e a obediência é, assim, econômica e eficiente. O detento, portanto, não precisa de fato ser vigiado, mas precisa sentir que está sendo vigiado a todo instante, mesmo sem ter a certeza disso (na medida em que o vigia se localiza protegido do olhar do vigiado na torre central). A relação de poder sustentada pelo panóptico acontece sem a presença necessária do agente que a exerce.
O dispositivo, com esse mecanismo de olhar permanente e anônimo, automatiza e desindividualiza o poder. Sua eficiência depende menos das pessoas que agem para seu funcionamento e mais de sua construção, da distribuição dos corpos e dos olhares. Este dispositivo produz, assim, uma relação que mantém todos os indivíduos sob seu domínio presos e sempre alertas. Não é mais necessário, como era no modelo de poder monárquico, um sem-número de rituais que demonstram a autoridade de quem exerce o poder, a própria maquinaria presente no panóptico já garante o desequilíbrio na relação de poder.
Pouca importa, consequentemente, quem exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do diretor, sua família, os que o cercam, seus amigos, suas visitas, até seus criados. Do mesmo modo que é indiferente o motivo que o anima: a curiosidade de um indiscreto, a malícia de uma criança, o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana, ou a maldade daqueles que têm prazer em espionar e punir […] O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder.[6]
Tal arquitetura é uma máquina de vigilância e exposição, mas também de controle e bom adestramento:
O Panóptico é um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo […] Permite estabelecer as diferenças: nos doentes, observar os sintomas de cada um, sem que a proximidade dos leitos, a circulação dos miasmas, os efeitos do contágio misturem os quadros clínicos; nas crianças, anotar os desempenhos (sem que haja limitação ou cópia), perceber as aptidões, apreciar os caracteres, estabelecer classificações rigorosas e, em relação a uma evolução normal, distinguir o que é ‘preguiça e teimosia’ do que é ‘imbecilidade incurável’; nos operários, anotar as aptidões de cada um, comparar o tempo que levam para fazer um serviço, e, se são pagos por dia, calcular seu salário em vista disso.[7]
O panóptico gera um aumento da eficiência do poder e, ao mesmo tempo, um laboratório que acarreta o aumento do saber sobre os homens. Este saber se desenvolve colado nas práticas do poder, em cada mecanismo, em cada vistoria, em cada vigilância.
O panóptico enquanto tecnologia de eficiência
Acima de qualquer vantagem no controle dos indivíduos, o panóptico é uma tecnologia de poder que gera eficiência. Faz parte do uso das disciplinas a maximização da eficiência, que é tanto de controle, como de adestramento. O poder exercido pelas disciplinas na tecnologia do panóptico não só gera economias em recursos humanos, já que não é necessário a presença contínua de agentes especializados para um controle que de fato é anônimo, nem é necessário ter inúmeros agentes, na medida em que a arquitetura do panóptico permite a total vigilância de uma construção central, dentro de um anel de celas, pois ali, nas celas, alunos, operários, prisioneiros e doentes podem ser todos controlados com o mínimo de gasto econômico e espiritual; a tecnologia do panóptico gera economia no acúmulo de saber a respeito daqueles que são vigiados[8].
Em cada aplicação, o panóptico permite aperfeiçoar o exercício do poder. Isso somente com uma construção física geometricamente planejada:
O esquema panóptico é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos.[9]
O panóptico consegue “estabelecer uma proporção direta entre o ‘mais-poder’ e a ‘mais-produção'”[10]. Ele aperfeiçoa um conjunto de relações de poder que permitem reformar a moral, cuidar da saúde, aumentar a produção na indústria, instruir com facilidade, diminuir gastos públicos, tudo através de um esquema arquitetural que não se fecha, mas permite a passagem do exterior para o interior, permite a entrada constante de qualquer inspetor, de qualquer curioso ou de qualquer estudioso que queira registrar os resultados de sua experiência.
Diferentemente do poder exercido pelo rei, que necessita de rituais para simbolizar o excesso e a extensão, o poder do panóptico é silencioso; ao contrário do poder do rei, exercido homogeneamente por todo o corpo social, o poder exercido através do panóptico é individualizante, recorta, separa, distribui e melhora a sujeição. As disciplinas não precisam de excessos, pelo contrário, geram economia.
Duas imagens, portanto, da disciplina. Num extremo, a disciplina-bloco, a instituição fechada, estabelecida à margem, e toda voltada para funções negativas: fazer parar o mal, romper as comunicações, suspender o tempo. No outro extremo, com o panoptismo, temos a disciplina-mecanismo: um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir. O movimento que vai de um projeto ao outro, de um esquema da disciplina de exceção ao de uma vigilância generalizada, repousa sobre uma transformação histórica: a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar.[11]
A extensão das instituições disciplinares, que avança para a saúde, passa pela educação, atravessa a indústria e se espalha pelo sistema carcerário, depende de três processos mais profundos:
- A inversão funcional das disciplinas: se as disciplinas, antes das tecnologias modernas de controle e vigilância, eram abrigadas a reprimir, com o advento da modernidade, “se lhes atribui (pois se tornaram capazes disso) o papel positivo de aumentar a utilidade possível dos indivíduos”[12]. As disciplinas – e o panóptico é um exemplo disso – não só reprimem, mas também marcam os sujeitos para que incorporem uma conduta alinhada aos desígnios do poder. Elas fabricam indivíduos úteis e, por serem capazes de agir desta maneira, adentram os muros religiosos, implantam-se em setores produtivos da sociedade, fixam-se em funções essenciais na produção, na transmissão de conhecimento, na difusão de saberes práticos e se organizam no aparelho de guerra.
- A ramificação dos mecanismos disciplinares: “enquanto por um lado os estabelecimentos de disciplina se multiplicam, seus mecanismos têm uma certa tendência a se desinstitucionalizar, a sair das fortalezas fechadas onde funcionavam e a circular em estado ‘livre'”[13]. As disciplinas não são mais blocos compactos de aplicação em massa, elas se dividem, se decompõem em processos flexíveis de controle que podem ser rearranjados, adaptados.
- A estatização dos mecanismos de disciplina: na Inglaterra, grupos privados de inspiração religiosas foram responsáveis por executar funções de disciplina social. Já na França, as sociedades de patronato e auxílio tomaram si parte dessas responsabilidades, mas a maior parcela da disciplina foi rapidamente colocada nas mãos da polícia. A polícia, serviço estatal de disciplinamento, tinha como função procurar criminosos e controlar a ordem social, mas também de alimentar a máquina administrativa estatal com relatórios de ações e eficiência. “O poder policial deve-se exercer ‘sobre tudo’: não é entretanto a totalidade do Estado nem do reino como corpo visível e invisível do monarca; é a massa dos acontecimentos, das ações, dos comportamentos, das opiniões, – ‘tudo que acontece’; o objeto da polícia são essas ‘coisas de todo instante’, essas ‘coisas à-toa’ de que falava Catarina II em sua Grande Instrução”[14]
Em meio às disciplinas, a polícia cumpre um papel interessante: ela é a construtora de uma rede intermediária entre as instituições disciplinares fechadas, como as oficinas, o exército e as escolas. O papel da polícia é justamente preencher os espaços que essas instituições não podem alcançar, disciplinar os espaços não disciplinares, marca as subjetividades com eficiência e gera condutas alinhadas ao desígnio do poder. A polícia “garante com sua força armada: disciplina intersticial e metadisciplina”[15]. Ela faz o povo se acostumar com a ordem, marca a ordem nos sujeitos.
É justamente este o ponto central da disciplina: ela não está presente em um único lugar, nem é possível de ser identificada com um aparelho ou instituição.
Ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia” do poder, uma tecnologia. E pode ficar a cargo seja de instituições “especializadas” (as penitenciárias, ou as casas de correção do século XIX) seja de instituições que dela se servem como instrumento essencial para um fim determinado (as casas de educação, os hospitais), seja de instâncias preexistentes que nela encontram uma maneira de reforçar ou de reorganizar seus mecanismos internos de poder […] seja de aparelhos que fizeram da disciplina seu princípio de funcionamento interior (disciplinarização do aparelho administrativo a partir da época napoleônica), seja enfim de aparelhos estatais que têm por função não exclusiva mas principalmente fazer reinar a disciplina na escala de uma sociedade (a polícia).[16]
Assim, é possível falar sobre o nascimento de uma sociedade disciplinar que parte do movimento das instituições disciplinares fechadas até a rede disciplinar que encobre toda a sociedade, até o mecanismo generalizável do panoptismo. A modalidade disciplinar não excluiu nenhuma outra, ela entrou e se integrou a elas, as expandiu, as melhorou. “Ela assegura uma distribuição infinitesimal das relações de poder”[17].
A sociedade disciplinar através do panoptismo
A antiguidade, diz Foucault, foi uma civilização do espetáculo, baseada nos grandes encontros, nos grandes rituais, na demonstração pública do poder, no entretenimento público através de teatros, festas, etc. A arquitetura antiga permitia que uma multidão de sujeitos observasse um pequeno número de objetos. A idade moderna subverteu esta arquitetura e também este modelo de civilização, na medida em que ela proporciona a um pequeno número a visão instantânea de uma grande multidão. É necessário pensar no controle da torre de vigia, personagem central no panóptico, que sozinho consegue ter a visão de todos os vigiados.
Numa sociedade em que os elementos principais não são mais a comunidade e a vida pública, mas os indivíduos privados por um lado, e o Estado por outro, as relações só podem ser reguladas numa forma exatamente inversa ao espetáculo.[18]
A sociedade disciplinar moderna, baseada na visão do todo detalhadamente, na visão individual de cada elemento da multidão, no controle minucioso, é ligada a um número de processos históricos econômicos, jurídico-políticos, científicos, etc, que podem ser detalhados nos seguintes aspectos:
- “De uma maneira global, pode-se dizer que as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas”[19]. As disciplinas definem, em relação às multiplicidades, uma tática de poder dividida em três frentes: tornar o exercício do poder menos custoso economicamente e politicamente; maximizar os efeitos do poder os estendendo a todo corpo social, sem deixar lacunas; ligar o crescimento do poder e sua eficiência aos rendimentos de cada aparelho em seu interior. Isso nasce de uma conjuntura histórica específica: o crescimento demográfico do século XVII; aumento da população flutuante; aumento de grupos que precisam ser controlados; aumento do aparelho de produção no desenvolvimento do capitalismo moderno. As disciplinas movem a lógica de violência e exclusão utilizada pelo mecanismo de poder monárquico pela lógica baseada na suavidade, no anonimato, na produção e no lucro. Com o objetivo de aumentar a eficiência e, portanto, a rentabilidade, ela fixa cada indivíduo em uma série de movimento regularizados, pré-determinados, mantidos em controle através de constante inspeção.
- “A modalidade panóptica do poder – ao nível elementar, técnico, humildemente físico em que se situa – não está na dependência imediata nem no prolongamento direto das grandes estruturas jurídico-políticas de uma sociedade”[20]. No entanto, a dominância política da burguesia no decorrer do século XVIII e a instituição do regime político de democracia representativa sempre foi diretamente dependente do uso das disciplinas para a formação de um conjunto de microrrelações que garantissem a ordem social. “As ‘Luzes’ que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas”[21]. Disciplinas que criam uma rede de contradireito, que se localiza na vida cotidiana num nível muitas vezes imperceptível de atuação e que, para além do do direito estabelecido, impõe assimetrias insuperáveis através de microrrelações e microimposições cotidianas. As disciplinas foram a contrapartida do direito no momento histórico de dominação política da classe burguesa, carente de um mecanismo de repartição do poder que lhe desse vantagem, que lhe fosse mais interessante e controlável, que pudesse funcionar essencialmente à construção de sua dominação particular, portanto, que fosse diferente dos mecanismo já utilizados através do poder monárquico.
- “Tomados um por um, a maior parte desses processos tem uma longa história atrás de si. Mas o ponto da novidade, no século XVIII, é que, compondo-se e regularizando-se, eles atingem o nível a partir do qual formação de saber e majoração de poder se reforçam regularmente segundo um processo circular”[22]. O desenvolvimento da tecnologia panóptica do poder acontece na mesma época de diversas outras, como as tecnologias agronômicas, industriais e econômicas. Nasce em conjunto com elas, mas são menos reconhecidas, pertencem a um outro tipo de criação. O equivalente histórico dos processos disciplinares, diz Foucault, são as técnicas inquisitoriais, não as invenções técnicas e tecnológicas da química e física do século XVIII, ou das aplicações da mecânica na construção de máquinas à vapor. Os processos disciplinares entraram de maneira difícil nos liames da sociedade moderna, se estabeleceram através de uma distribuição exemplar de pequenas e minuciosas técnicas de controle, inspeção, vigilância, documentação, mapeamento, etc.
Considerações finais
A introdução da tecnologia de poder panóptica no mundo moderno altera o andamento da justiça penal, que não deve mais olhar para o corpo culpado que atenta contra o corpo do rei (poder monárquico), ou ao sujeito de direito que fere ou é ferido perante um contrato ideal (modelo de sociedade dos contratualistas). O indivíduo disciplinar é o alvo da sociedade disciplinar.
O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do regicida: manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso, cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade. O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado, o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame, um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrá-la no infinito.[23]
Enquanto o suplício completa um processo comandado pela Inquisição, a observação interminável faz parte de um processo já numa sociedade disciplinar. Na sociedade disciplinar, a constante inspeção é regra e a regra é aplicada em todas as instituições disciplinares, por isso:
Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?[24]
Prisões, fábricas, escolas e quartéis são instituições de disciplinamento, de adestramento de fabricação de corpos dóceis, úteis, produtivos para os desígnios do poder. São corpos que serão marcados pelo poder e poderão absorver e praticar todo know-how ensinado pelas escolas, poderão ter a postura correta para um operário e mover a máquina no tempo certo, com economia de energia, poderão agir e pensar da maneira correta para seguir os desígnios do poder com felicidade ou abnegação. A total vigilância, sempre eficiente e constante, é um requisito básico à total disciplina, ao total assujeitamento e à construção de condutas.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999, p.162.
[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.163.
[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.164.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.166.
[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.166.
[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.167.
[7] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.168.
[8] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.170.
[9] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.170.
[10] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.171.
[11] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.173.
[12] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.174.
[13] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.174.
[14] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.176.
[15] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.177.
[16] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.177-178.
[17] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.178.
[18] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.178.
[19] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.179.
[20] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.182.
[21] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.183.
[22] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.184.
Anexo: panóptico nas prisões brasileiras?
Neste anexo, trago a reflexão histórica de Andrei Koerner em seu artigo “O impossível ‘panóptico tropical-escravista’: práticas prisionais, política e sociedade no Brasil do sećulo XIX”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais em 2001, que presquisou a Casa de Correção da Corte que, até o século XIX atuava sob o tempo histórico do panóptico europeu, mas que ainda aglutinava corpos livres e escravizados.
O autor compreende que o projeto do panóptico não poderia funcionar como planejado pelas discussões europeias acerca da ressocialização porque a sociedade brasileira não permitia que o poder fosse aplicado sobre um indivíduo médio abstrato, na medida em que este indivíduo a que o poder é aplicado é, antes de tudo, livre e universalizado.
A sociedade brasileira do século XIX era fortemente marcada pela hierarquia social, de tal maneira que nem o sistema jurídico nem a aplicação das penas tinha o mesmo efeito a depender de que tipo de sujeitos elas se debruçavam. Aos escravizados criminosos, considerados incorrigíveis, a aplicação da pena pouco se aproximava de uma ressocialização, sendo uma extensão do suplício inserido dentro da casa de correção. Além disso, as condições sanitárias da Casa de Correção da Corte ainda determinada que a prisão, mesmo sem pena de morte, era um caminho ao falecimento.
Da mesma forma, o projeto da Casa de Correção da Corte não foi aplicado conforme o panóptico de Bentham por falta de verbas para sua execução, o que é exemplificado pela impossibilidade de uma vigilância plena. O controle não estava, assim, localizado num plano tecnológico: na prática, era feito por meio da hierarquia entre as diferentes populações, entre o carcereiro livre e o preso escravizado.
Em vez de afastamento, a Casa de Correção criava a aproximação física entre administradores e internos, o que facilitava a prática da dupla dominação que envolve a benevolência e a violência.
Ao mesmo tempo, a própria desvalorização do trabalho na sociedade brasileira do século XIX não tornava real uma ressocialização para a produtividade. A prisão era uma extensão do castigo.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.