Índice
Introdução
Ao refletir sobre a estrutura originária da política, Giorgio Agamben passa pelo entendimento do homo sacer como elemento básico que revela o aspecto de abandono do sujeito perante a soberania. Abandono básico que insere a vida nua como objeto de possibilidade primária para a inserção do sujeito na política.
O sujeito político, segundo Agamben, emerge numa dupla exclusão: é inserido na estrutura política através da matabilidade e da insacrificabilidade. Daí a importância da figura jurídica do direito romano arcaico chamada homo sacer, aquele que pode ser morto por qualquer pessoa sem que se configure homicídio, mas não pode ser sacrificado em ritos tradicionais.
Trata-se de uma pessoa que, através dos ritos jurídicos, é “simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina”[1]. É exposto à mais pura violência e abandono, além de ser excluído de todo o campo de trânsito no mundo dos homens e no mundo divino. Frente a ele, todos os outros sujeitos são soberanos. Neste artigo, pretendo relacionar o direito de vida e morte do pai sobre seus filhos varões e o poder soberano, conforme elaborado por Agamben em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua.
O poder do pai
Segundo Agamben, o primeiro aparecimento do direito de vida e morte está na fórmula do direito romano arcaico vitae necisque potestas, que designa o poder do pater sobre os filhos homens[2]. O pai, assim, tem o poder de vida e de morte, de matar seus filhos ou deixá-los viver.
Trata-se de um tipo de poder que não emerge como sanção a um crime nem como modelo geral de poder do pater enquanto chefe da domus, a casa tradicional dos romanos abastados. Não se trata de um tipo de poder que deriva de um ato antecedente ou de um poder geral estabelecido. É um tipo de poder que se difere daquele exercido pelo pai ou marido quando flagram filha ou esposa em adultério, pois é específico da relação entre pai e filho[3]. Também se difere do tipo de poder do dominus com seus servos, pois o filho ainda assim, mesmo sob este tipo de poder, é cidadão, é livre e não se compara a um servo perante seu pai. A fórmula vitae necisque potestas se refere ao nascimento de um homem livre que, simplesmente por existir enquanto homem livre, tem sua vida e morte sob o poder do pater “e parece assim definir o próprio modelo do poder político em geral. Não a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida sacra) é o elemento político originário“[4].
Um poder que não depende de um status prévio e nem de um crime ocorrido: um tipo de poder que está presente no próprio nascimento do sujeito e que, de certa forma, constitui a existência do membro político nascido. A existência do filho varão, mas também a própria existência do sujeito político.
Os romanos sentiam, de fato, uma afinidade tão essencial entre a vitae necisque potestas do pai e o imperium do magistrado, que o registro do ius patrium e o do poder soberano acabam por ser para eles estreitamente entrelaçados.[5]
Há nessa relação uma genealogia do poder soberano: o imperium do magistrado, ou seja, sua soberania, é o poder de vida e morte do pai estendido a todos os cidadãos. “Não se poderia dizer de modo mais claro que o fundamento primeiro do poder político é uma vida absolutamente matável, que se politiza através de sua própria matabilidade”[6], assinala Agamben.
O filho varão era, desta forma, sacer perante seu pai, que exercia sobre ele certo tipo de soberania. De tal forma que tal poder gerava uma exceção perante o princípio sancionado das XII tábuas em que um cidadão não poderia ser morto sem o devido processo. Trata-se de um tipo de relação que sanciona o poder ilimitado de matar e que insere o filho numa situação de indignidade perante seu pai.
A propósito da vitae nacisque potestas, Yan Thomas questiona a um certo ponto: “O que é este vínculo incomparável, para o qual o direito romano não consegue encontrar outra expressão além da morte?” A única resposta possível é que o que está em questão neste “vínculo incomparável” é a implicação da vida nua na ordem jurídico-política.[7]
O preço que se paga à participação na vida política é a matabilidade. tudo se passa como se a sujeição ao poder de morte fosse essencial para a entrada na vida política através da dupla exceção: matabilidade e insacrificabilidade. A vida privada e a vida pública na cidade de confundem justamente neste tipo específico de poder em que a vida natural e a vida política são submissas: a vida sacra é do tipo que confunde num mesmo corpo o sujeito dentro da política e fora dela, o sujeito como ser humano despido de direitos e, ao mesmo tempo, constituído por eles.
“Nem bíos político nem zoé natural, a vida sacra é a zona de indistinção na qual, implicando-se e excluindo-se um ao outro, estes se constituem mutuamente”[8], explica Agamben. A possibilidade da morte não classificada como homicídio é o ponto de abandono que gera uma coesão específica e um tipo de governo possível da vida, é o que possibilita o corte entre aqueles que são membros da cidade e aqueles que são excluídos dela. Tarciano Batista entende que
quando falamos de vida, estamos nos referindo a um movimento político que marcou a história do Ocidente como um movimento de exclusão daquelas vidas que não são classificadas como naturalmente boas, que não são mencionadas ou mesmo levadas em consideração pela tradição política ocidental se não nessa tentativa paradoxal de incluir o excluído ou excluir o incluído.[9]
Tarciano continua explicitando que a autoridade soberana, justamente na perspectiva de abandonar a vida dos homens, a recaptura sob a forma jurídica legítima. Excluído da vida não servil, incluído na política. Ao ser incluído na política, é excluído da vida nua, mas justamente por ser incluído na política está à mercê da possibilidade da vida nua (por meio, no exemplo do direito romano arcaico, do processo legal que leva o sujeito ser homo sacer ou, no direito ocidental moderno, que permite a pena de morte praticada pelo Estado).
O sujeito atravessa da zoé, a mera vida, para a vida qualificada, a bíos, mas ao realizar tal passagem, está sempre ameaçado de retornar à zoé, à vida nua.
Considerações finais
Desta forma, entende-se que a vida humana “se politiza somente através do abandono a um poder incondicionado da morte”[10], ou, de outra forma, a vida humana se faz na possibilidade da exceção. É justamente na possibilidade de se tornar exceção que o vínculo político soberano tem sua imperiosidade, pois é o “poder soberano que desde as suas origens tem como característica essencial a decisão sobre o estado de exceção, ou seja: estar ao mesmo tempo dentro e fora da lei”[11], explica Helder de Souza.
Para Agamben, o vínculo soberano é originário na constituição da política e se assemelha com o poder do pai no antigo direito romano. Ao estabelecer esta ligação originária, assim como o pai, produz uma vida nua, uma existência particular em que o pai, assim como o magistrado no direito romano, agirá como soberano frente ao filho, no primeiro caso, ou aos cidadãos, no segundo caso. Esta vinculação soberana cria um espaço entre a casa e a cidade de pura insegurança e abandono, despindo o sujeito de qualquer dignidade da vida a não ser que esteja inserido, através dessa exclusão, na política.
Referências
[1] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 89-90.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 95.
[3] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 95.
[4] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 96.
[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 96.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 96.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 98.
[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 98.
[9] BATISTA, Tarciano. Agamben: uma reflexão sobre a exclusão que fabrica a vida nua na política ocidental. Revista Instante, Campina Grande-PB, Brasil, v.2, n.1, 2019, p. 68.
[10] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 98.
[11] SOUZA, Helder Félix Pereira de. A perspectiva biopolítica de Agamben: alguns conceitos para se (re)pensar o direito atual. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.9, n.1, 1º quadrimestre de 2014. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica – ISSN 1980-7791, p. 408.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.