Índice
Introdução
O Processo Civilizador (volume 1) é um livro grande e recheado de exemplos e análises e mais exemplos e mais análises. Eu não acredito que conseguiria fazer uma resenha muito linear ou, até mesmo, seguir os passos do próprio autor e começar a citar seus milhares de exemplos com páginas de livros sobre boas maneiras que Elias utiliza pra provar sua argumentação, mas tentarei dar um pitaco básico.
O ponto de partida do livro é entender as diferenças dos conceitos de civilização e cultura. Os dois não são universais e não são atemporais. Ambos os conceitos lidam com as realizações da sociedade, com a sua organização política, com sua estrutura econômica, com suas tecnologias e etc, mas há dois movimentos notáveis e contrários: cultura se refere a um plano intelectual, abstrato, enquanto civilização está ligada a um plano mais prático e concreto. Cultura, também, se refere à especificidade (a cultura de um povo ou de uma sociedade é uma cultura única e específica), já civilização se refere a um princípio de universalização, civilização é aquilo que todas as sociedades alcançariam num dado momento, é um movimento da “Humanidade”. Civilização é algo em comum a todas as sociedade – é o potencial dessas sociedades.
Estes conceitos, por mais difícil que seja imaginar, tiveram um momento de nascimento que localizou socialmente seus usos. Basicamente, essa sociogênese dos conceitos começa com a análise de Elias da burguesia alemã.
Civilização e Cultura
A época analisada é a da aristocracia de corte. Neste período, a burguesia alemã detinha força política, não conseguia cargos relevantes na administração do Estado e também não tinha acesso à sociedade de corte.
A sociedade de corte era composta por aqueles que participavam das rotinas da corte, assim como participam de seus eventos e se submetiam às suas regras. O que Elias análise com um enfoque poderoso são os “modos”. A etiqueta da corte. Os comportamentos e as relações que sua vigência têm.
A aristocracia alemã rejeitava a sua própria língua. A língua refinada era o francês e as cortes utilizam esta língua. Há um aspecto duplo: evitar as classes dominadas e estabelecer um princípio de distinção. A burguesia alemã, por sua vez, tentava aprender o idioma francês, na esperança de ter algum reconhecimento e conseguir alcançar posições mais privilegiadas na estrutura social. Entretanto, com todas as limitações que recaiam sobre esta classe, a única brecha encontrada foi a intelectual.
A burguesia alemã rejeitava a aristocracia de corte, rejeitava seus comportamentos “refinados”, mas sempre superficiais, não conseguia posições importantes na organização do Estado e não tinha nenhum poder político, entretanto, as universidades eram sua saída. Elias percebe que uma intelligentsia é formada na Alemanha tendo como núcleo os escritores, artistas, filósofos, poetas e etc que saíram das fileiras burguesas. A rejeição à aristocracia de corte começa a se firmar institucionalmente com a formação de um corpo de intelectuais que reforçavam todo o campo cultural e intelectual do país e a termo cultura se firma como um termo que valoriza aquilo que é único. O termo cobre as estruturas econômicas, políticas, as invenções, as tecnologias, mas está sempre em uma esfera intelectual, em um profundidade de conhecimento e em um princípio de distinção. A “cultura” é o termo que a classe burguesa alemã usa para legitimar sua diferença imiscível com a aristocracia. É um termo de autoafirmação.
Enquanto civilizado era o sujeito superficial, burro, mas controlado, culto era o sujeito do conhecimento, o detentor do saber.
Por sua vez, civilização tem um processo longo dentro das classes dominantes francesas.
A mudança do termo é demarcada por Elias em transformações históricas que podem ser vistas nas passagens dos termos distintivos das classes dominantes de cortês, polido até civilizado. Estas transformações são demarcadas por novos padrões de refinamento e controle dos instintos. Não preciso dizer que Elias observa esta transformação como algo mais ou menos homogêneo por toda a Europa. Não necessariamente em todas as cortes, mas, pelo menos, no ideal que estas cortes trazem para o que deveria se tornar uma sociedade de corte.
Em um dado momento, um dado termo começa a ser espalhado para o restante da sociedade, após ser um símbolo de distinção das classes dominantes. Quando isso acontece, é hora de encontrar um novo símbolo de distinção. Para Elias, o fato dos comportamentos de consumo (como a etiqueta à mesa) ter sido notável se deve pela aristocracia de corte ser uma das classes dominantes mais ligadas ao consumo e menos ligada à produção. Com base nisso, como o processo civilizador teria como objeto os meios de produção? Isso só ocorreria com a tomada de poder plena da burguesia.
A aristocracia utiliza o termo de civilização exatamente para se afastar das classes dominadas, para se diferenciar destas classes. O termo não é neutro, mas exibe um passo além dentro do “caminho”, ou da história, da humanidade.
O processo
O interessante no estudo de Elias é que, tomando como objeto os variados tipos de comportamentos das sociedades de corte, tomando como objeto de análise os livros e manuais de comportamentos, de bons modos, ele percebe que, de um perspectiva histórica, de um ponto de vista a longo prazo, há um movimento de controle cada vez maior dos instintos. Esse é o processo civilizador. Um processo onde as estruturas emocionais incorporam controles instituais cada vez maiores e se modificam de acordo com as transformações que acontecem na própria sociedade.
É uma análise sociogenética e psicogenética daquilo que ele chama de processo civilizador, o processo de afastamento cada vez maior da “naturalidade”, ou, uma caminhada ao controle dos impulsos infindável.
Neste processo, por exemplo, Elias localiza historicamente a estrutura psicológica descrita por Freud. Ego, Id e Superego fazem parte de uma estrutura que só poderia realmente ter nascido em tempo de alto controle e repressão. Esta é uma interpretação da estrutura psíquica que faz sentido e que explica os indivíduos da sociedade por ser uma estrutura que tem lugar cativo para as contradições cada vez maiores de impulso, de gozo e de refinamento, de repressão, de controle.
A estrutura social e a estrutura de personalidade, ou estrutura psíquica, são resultados de uma inter-relação interminável entre elas próprias. Elias demonstra como determinadas práticas comuns em um dado momento da história se transformavam em práticas horrendas em outro e em práticas indescritíveis em nossa época.
Em exemplo curioso são as chamadas “funções corporais”. Uma das regras em um livro de etiqueta era “falar com alguém que está defecando é sinal de falta de educação. Ande pela pessoa como se ela não estivesse no local”. Entenda, se há uma regra para isso, então é muito lógico de que essa não era uma prática incomum. Entretanto, em nossa sociedade moderna [ou pós-moderna] nem mesmo se fala sobre este tipo de coisa.
Em relação às crianças, à sua educação, temos uma surpresa enorme ao perceber que os hábitos das crianças foram se tornando mais rígidos com o aumento das demandas por controle corporal e, em dados momentos, regras escritas para adultos já estavam tão enraizadas nos hábitos diários que eram até mesmo impostas às crianças.
A criança precisa, até hoje, incorporar um processo civilizador de séculos em alguns anos. Um processo que custou milhares de transformações e revoluções precisa ser absorvido em um curto período de tempo. Isso não significa que crianças de outras épocas não precisavam incorporar nenhuma regra, mas o aumento das exigências de controle e repressão foi tão acentuado no período estudado que este acúmulo de regras já podia ser visto nas diferenças no tratamento das crianças, agora submetidas a regras que antes não eram nem imaginadas. Ao mesmo tempo, adultos já não “precisavam” destas regras, pois elas já eram “naturais”, já estavam incorporadas como parte integrante do sujeito.
Isso deixa também claro que as explicações médicas, racionalizadas e ultracientíficas sobre nossos atuais hábitos não são explicações irredutíveis. São, na verdade, explicações que acontecem depois da escolha dos hábitos vigentes, ou melhor, são explicações localizadas historicamente que legitimam um dado hábito completamente arbitrário. Um hábito que estabelece relações de dominação e hierarquiza a sociedade.
Anexo: do controle social ao autocontrole
Na citação abaixo, Elias explica, de maneira sucinta, seu olhar sobre a transformação social de longo prazo que fundamento um entendimento acerca do processo civilizador.
ELIAS, N. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 193-194.
O que tem a organização da sociedade sob a forma de “Estados”, o que têm a monopolização e a centralização de impostos e da força física num basto território, a ver com a “civilização”?
O estudioso do processo civilizador enfrenta um enorme emaranhado de problemas. Para mencionar alguns dos mais importantes, temos, em primeiro lugar, a questão mais geral. Vimos – e as citações no primeiro volume serviram para ilustrar este ponto com exemplos específicos – que o processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica. Mas, evidentemente, pessoas isoladas no passado não planejaram essa mudança, essa “civilização”, pretendendo efetivá-la gradualmente através de medidas conscientes, “racionais”, deliberadas. Claro que “civilização” não é, nem o é a racionalização, um produto da “ratio” humana ou o resultado de um planejamento calculado a longo prazo. Como seria concebível que a “racionalização” gradual pudesse fundamentar-se num comportamento e planejamento “racionais” que a ela preexistissem desde vários séculos? Podemos realmente imaginar que o processo civilizador tenha sido posto em movimento por pessoas dotadas de uma tal perspectiva a longo prazo, de um tal controle específico de todos os afetos de curto prazo, já que essa perspectiva a longo prazo e esse autodomínio pressupõem um longo processo civilizador?
Na verdade, nada na história indica que essa mudança tenha sido realizada “racionalmente”, através de qualquer educação intencional de pessoas isoladas ou de grupos. A coisa aconteceu, de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo específico de ordem. Mostramos como o controle efetuado através de terceiras pessoas é convertido, de vários aspectos, em autocontrole, que as atividades humanas mais animalescas são progressivamente excluídas do palco da vida comunal e investidas de sentimentos de vergonha, que a regulação de toda a vida instintiva e afetiva por um firme autocontrole se torna cada vez mais estável, uniforme e generalizada. Isso tudo certamente não resulta de uma idéia central concebida há séculos por pessoas isoladas, e depois implantada em sucessivas gerações como a finalidade da ação e do estado desejados, até se concretizar por inteiro nos “séculos de progresso”. Ainda assim, embora não fosse planejada e intencional, essa transformação não constitui uma mera sequência de mudanças caóticas e não-estruturadas.
O que aqui se coloca no tocante ao processo civilizador nada mais é do que o problema geral da mudança histórica. Tomada como um todo, essa mudança não foi “racionalmente” planejada, mas tampouco se reduziu ao aparecimento e desaparecimento aleatórios de modelos desordenados. Como teria sido isso possível? Como pode acontecer que surjam no mundo humano formações sociais que nenhum ser isolado planejou e que, ainda assim, são tudo menos formações de nuvens, sem estabilidade ou estrutura?
O estudo precedente, em especial as partes dedicadas aos problemas da dinâmica social, tentou dar uma resposta a essas perguntas. E ela é muito simples: planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modo amistoso ou hostil. Esse tecido básico, resultante de muitos planos e ações isolados, pode dar origem a mudanças e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa interdependência de pessoas surge uma ordem sui generis, uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem. É essa ordem de impulsos e anelos humanos entrelaçados, essa ordem social, que determina o curso da mudança histórica, e que subjaz ao processo civilizador.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Ótima resenha.Valeu!
parabens,otima resenha! me ajudou muito,continue produzindo,quero ler mais coisas por aqui 🙂
Obrigado pelo comentário, Lívia!
me ajudou bastante…..obrigada…..agora estou quereno uma resenha se possivel do iamamoto servico social em tempo de capital fetiche., finaceiro, trabalho e questao social. 3 ed sao paulo:cortez 2008. me ajude p favor.grata pela atencao.
Vou ficar te devendo, Maria.
Oi Vinicius, ótimo texto. Tenho uma dúvida: quando você coloca que a estrutura social e a estrutura da personalidade, ou estrutura psíquica se interelacionam em determinado espaço e tempo, eu posso colocar que isso é o habitus do Norbert Elias? Ou essa ideia é equivocada? Abração e desde já agradeço.
Não sei, Fernando.
O objetivo do Norbert Elias é mostrar que a forma como pensamos nossas ações, nosso “aparelho psíquico” se modifica com o tempo porque o aparelho também se modifica. Mas não saberia dizer se dá pra afirmar categoricamente que isso seria um habitus na análise do Elias.
Ha noção de habitus está presente na sociologia de Elias sim, porém, não é algo em que ele se aprofunda como fez, por exemplo, Bourdieu. Mas de qualquer forma, o sentido não muda muito. Continua sendo fruto dos processos sociais.
*A noção de habitus.
Parabéns. Muito bom. Boa contribuição.
Muito obrigado, Claudio!
Excelente resenha. Obrigado! Elias como Freud entendem como civilização a Europa e suas ex-colônias. Exemplo de etnocentrismo, concorda?
Boa pergunta, Sávio!
SUCINTA E ESCLARECEDORA.
Obrigado!
excelente resenha, parabéns.
Muito obrigado, Altamir!
Com esta resenha, reflito o pq dos meus colegas agrônomos não aceitarem a cultura das populações tradicionais da Amazônia, tais como, cultivo diversificado, os SAFs, sem agroquímicos, e tentam a todo custo, impor novas tecnologias, nem sempre adequadas a realidade destas populações, tais como, o monocultivo, a introdução de agroquímicos, como um processo simplificado, de controle e que chamam realmente de tecnologias do mundo civilizado?
Obrigado pelo comentário, Silas!
O que quer dizer resenha? Tudo que você expôs é a opinião do autor do livro?
Olá, Eduardo!
Tudo exposto está contido no livro.
Mas não se trata de um livro de opinião, tudo bem? É um livro que tangencia história e sociologia.
Realizando a leitura da resenha e de outras fontes, fiquei com a seguinte questão: A ação educativa fez e faz parte do processo civilizador do homem. O Ensino – aprendizagem modela os modos de conduta e comportamento dos homens. Que modo de conduta foi e é apresentados aos gestores de uma escola? Esses modelos apresentados tem preconizado um modelo de homem capacitista, produtivo, normativo? Que modelos desejam construir?
Muito interessantes os pontos apresentados pela resenha construída sobre o autor em estudo. Muitas perguntas são pertinentes para a contemporaneidade.
Boa resenha, instigou a ler o livro