Da série Friedrich Nietzsche.
A criação do procedimento genealógico, no pensamento nietzscheano, foi uma forma de conseguir unir a filosofia e a história sem cair em teleologias ou em um puro arquivamento de dados históricos.
Nas tentativas de Nietzsche, tudo começou com a criação da distinção entre História, Filosofia da história e Filosofia histórica.
Da genealogia em Nietzsche
Essa distinção, citada acima, pode ser resumida da seguinte maneira, de acordo com as críticas de Nietzsche a cada uma dessas perspectivas:
• A crítica da “História” é de sua concretização como uma disciplina científica. Para Nietzsche, quando se exige que a História seja “verdadeira” e que se encaixe nos padrões do método científico, se retira toda a ligação com a vida que ela formou em seu caminho e a primeira consequência disso é “que uma tal prática da história é inevitavelmente paralisante: nada permitindo mais selecionar entre os fatos verdadeiros aqueles que importam reter, o passado se torna o apeiron [infinito, ilimitado] sob o qual o presente se encontra imerso”, argumenta Bertrand Binoche[1], professor da Universidade de Paris I.
A segunda consequência é o nivelamento de todos os fatos históricos. Afinal, se todos os fatos verdadeiros são de igual importância, então qual seria a razão de preferir um a outro? “Admitindo que um deles se ocupe com Demócrito, está sempre em meus lábios a pergunta: mas por que justo Demócrito? Por que não Heráclito? Ou Filon? Ou Bacon? Ou Descartes? – e assim por diante, à vontade”, diz Nietzsche, citado por Binoche[2]. “A história verdadeira é a história que acredita recusar todo juízo de valor, sem ver que acredita na verdade”, continua o autor alemão.
• Já a “Filosofia da história” é crítica por sua características de dar sentido à história retrospectivamente. São as grandes teleologias, como a hegeliana que, por fim, encontra na história uma “forma acabada da teodiceia”, explica Binoche: “toda tentativa de ordenar a história a um sentido equivale, em consequência, a produzir uma ‘teologia embuçada’ ou ainda o que a quarta Extemporânea denuncia como uma ‘teodiceia cristã embuçada’. É exato que a filosofia da história justifica Deus, mas é precisamente por essa razão que é preciso colocá-la porta afora”. Por conta disso, o professor afirma que a filosofia da história é:
- Extravagante por sua pretensão: como é possível seriamente se crer no ápice da história universal?
- Inconsequente: consciente do ridículo de sua tese, Hegel não ousa declarar o que, contudo, dela deduz-se necessariamente: “Aliás, ele teria mesmo de dizer que todas as coisas que viriam depois dele só devem ser avaliadas, propriamente, como a coda musical de um rondó da história universal ou, ainda mais propriamente, como supérfluas. Isso ele não disse (…)”;
- Servil, na medida em que transforma o homem moderno num “adorador do processo”, num “idólatra do real” que curva a espinha diante dos fatos e se inclina diante de todo processo, já que a História é seu verdadeiro sujeito.
Esses três pontos se diferem substancialmente da genealogia em Nietzsche, como será visto no decorrer do presente artigo.
A segunda crítica é em sua democratização da história: ao formular leis para a história, se perde aquilo que vale a pena investigar, os grandes homens, indivíduos dignos que não fazem parte do povo, mas são pontos acima de qualquer linha média, “com efeito, a filosofia da história pretende formular leis da história; tais leis, porém, são concebíveis apenas se o historiador trabalha sobre massas, que fazem aparecer regularidades estatísticas”, explica Binochi. Trabalhar sobre massas é uma maneira de negar a vida e submeter o homem ao rebanho.
• A “Filosofia histórica” se concretiza como uma união sem subordinação da história com a filosofia. É aquilo que viria a ser chamado de genealogia, mais tarde. A filosofia histórica se opõe à filosofia metafísica, que é aquela que coloca os sentidos das coisas como se sempre tivessem existido, como o “belo”, “justo” e etc. Segundo esta filosofia, as coisas citadas são a-históricas e só é necessário descobrir seu verdadeiro significado.
A filosofia histórica encontrou, primeiramente, na história dos sentimentos morais uma maneira de pensar o vir a ser sem divinizá-lo, sem coloca-lo em um pedestal – de procurar na história dos conceitos morais uma outra história mais interessante, que é a dos próprios sentimentos que os próprios julgamentos morais transformam. Segundo Binochi[3], “não se trata mais, portanto, do problema do valor da história, mas dos valores na história, estes transformando o próprio homem enquanto agregado de instintos”.
No início de sua trajetória, a genealogia em Nietzsche (ainda não nomeada como tal) se apoia no utilitarismo inglês para realizar tal façanha:
Nietzsche lança mão de um esquema perfeitamente identificável: na origem, a utilidade dita o valor, depois o hábito recobre a causa, deixando subsistir o efeito, ao qual é preciso, por conseguinte, estabelecer, retrospectivamente, uma nova causa, completamente fictícia; é por isso que a história dos sentimentos não pode ser identificada com a dos conceitos que os designam posteriormente. Olhando de perto, a origem não desaparece, ela permanece, mas dissimulada pela segunda origem que se lhe sobrepõe a posteriori: ‘Tais ações, em que foi esquecido o motivo fundamental, o da utilidade, denominam-se então morais: não porque seriam realizadas por aqueles outros motivos, mas porque não são feitas em nome da utilidade consciente’[4]
Mas sua perspectiva muda radicalmente em Genealogia da moral, quando a utilidade já não é tão importante, mas a potência toma conta da explicação,
Para a genealogia da moral, em que, a propósito do castigo, encontra-se exposta a historicidade genealógica propriamente dita, segundo a qual toda coisa sempre se encontra já interpretada por uma vontade de potência que lhe confere seu valor e seu sentido até que outra vontade de potência se aposse dela e a recubra com um novo valor e um novo sentido, para além de qualquer ‘evolução’ e em total contingência.[5]
Quando se reduz “bem” ou “mal” à utilidade se mantém uma característica universal de seus valores. A metafísica permanece, apesar de sub-reptícia. Sem contar que pretender pela utilidade é também traçar uma história linear do desenvolvimento humano, como se tivesse uma direção já dada. Ainda por cima, a utilidade é sempre – naquela perspectiva – uma utilidade para o rebanho, para a massa.
O novo procedimento precisava de um nome, que conseguisse expressar a noção da morte de Deus, portanto, da morte da “sucessão contingente de hegemonias provisórias” durante a história. Genealogia caiu como uma luva.
Em resumo, para uma genealogia nitzscheana ser feita, é necessário perceber que não se trata de encontrar aquilo que é útil à comunidade ou aquilo que é “teleologicamente favorável à espécie”, explica Binochi. Se trata de entender que a utilidade está a serviço da vontade de potência e que, sendo assim, o “útil genealógico” é aquilo que permite que a potência se estenda indefinidamente, que os modos de existência que se impõem aos indivíduos são como são porque é somente desta forma que é possível avaliar o mundo e a si próprio, em função daquilo que pode estender a potência.
Referências
[1] BINOCHE, Bertrand. Do valor da história à história dos valores. Cad. Nietzsche, São Paulo, v. 1, n. 34, p. 35-62, jun. 2014. [citado 2017-09-02]. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-82422014000100003&lng=es&nrm=iso>. ISSN 2316-8242. http://dx.doi.org/10.1590/S2316-82422014000100003.
[2] BINOCHE, Bertrand. Do valor da história à história dos valores…
[3] BINOCHE, Bertrand. Do valor da história à história dos valores…
[4] BINOCHE, Bertrand. Do valor da história à história dos valores…
[5] BINOCHE, Bertrand. Do valor da história à história dos valores…
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Boa noite! Amo os artigos de vocês, são surpreendentes. Bela explicação sobre aas perspectivas de poder e a incumbência do genealogista em Nietzsche. O utilitarismo inglês causa nele uma repulsa demonstrada. O único que o acolheu como ele o assim propõe fora Goethe. Parabéns pela postagem! 😀
Obrigado!
Muito bom,Nietzsche é um autor bem difícil
Nietzsche é revolucionário. Seu pensamento nos leva a outra dimensão da vida. Viva Nietzsche
Boa, Rodolfo!