O líquido é mais do que frágil. Para Zygmunt Bauman, a relação líquida não é uma escolha firmada por lados conscientes da dificuldade em firmar qualquer tipo de laço.
A relação líquida emerge sobre um conjunto de instituições, regras, lutas e sistemas simbólicos, políticos e econômicos definidos em uma estrutura social particular, presente na modernidade líquida.
Se o sujeito é constituído pelas coerções diversas em diversas relações a que está preso, se ele é formado de maneira que determinadas regras, determinados modos de pensar, agir e sentir são inscritos em sua formação mais fundamental enquanto sujeito, então as relações são líquidas e as pessoas firmam relações com essa liquidez, porque vivem em uma sociedade líquida e são nela constituídas.
De forma sintética, para o autor, seriam quatro marcos a se destacar neste processo de configuração do contexto líquido-moderno: a separação entre o poder e a política visível na supervalorização do indivíduo em detrimento ao Estado; enfraquecimento da ideia de comunidade; o fracasso do planejamento a longo prazo e a queda de instituições norteadoras e responsabilização individual pelo fracasso ou sucesso da vida pessoal. Essa transição do sólido para o líquido pressupõe acontecimentos que se materializaram na modernidade e se radicalizaram no momento contemporâneo.[1]
Então a liquidez, longe de ser uma escolha “errada”, é a base para todas as escolhas, é o fundamento prático das ações. As relações de poder que atravessam toda a sociedade pelos indivíduos não só definem a norma na esfera sexual, na esfera do trabalho, como também definem a norma para as relações em geral. São com as microcoerções cotidianas sofridas em todos os lugares e em todas as formas como os indivíduos socializam que, lentamente e intensamente, se inscrevem nos sujeitos e delineiam aquilo que não podem fazer, mas também delineiam aquilo que devem fazer. Não só reprimem, mas constroem disposições.
Estar em uma relação onde a incerteza comanda cada passo a ser dado não é escolher pela incerteza e não é o mesmo que desconfiar por querer desconfiar, mas é ser constituído de maneira que a incerteza é um apriori histórico que permite possibilidades limitadas de agir, sentir e pensar.
Ressalta ainda o autor, que o modo de vida produzido pela sociedade líquido moderna desvencilha-se dos tradicionais mecanismos de ordem social, de uma maneira sem precedente. O contemporâneo passa a ser marcado pelo fim dos padrões, da estabilidade, da segurança e das certezas. Sucumbe-se ao tempo da indefinição, do medo e da insegurança.[2]
Os discursos e as relações de poder constituem o sujeito, constroem aquilo que ele é, que ele pode ser e que ele não poderá nunca nem tentar ser, desta maneira, são nos discursos e nas relações de poder que são justificadas e fortalecidas, e que os justificam e fortalecem, que podemos encontrar o fundamento da incerteza, da insegurança e da fragilidade.
A liquidez não vem de uma escolha, mas da esfera do trabalho em que os direitos trabalhistas são diminuídos em favor da possibilidade de se negociar contratos diretamente entre empregado e empregador, em que o emprego “para aposentar” deixa de existir em favor de um suposto aprendizado permanente em diversos cargos de diversas empresas durante toda a carreira.
Embora atualmente exista uma grande confluência de informações, além do imediatismo e a liquefação das relações –conforme foi salientado por Bauman –, o indivíduo nesse processo de (des)construção identitário e personalíssimo, reflete um entrelaçamento entre sujeito e objeto, haja vista que se tudo é fluído e o próprio indivíduo é consumidor e mercadoria dentro da sociedade, todos os aspectos da existência humana podem se tornar objeto de consumo.[3]
Ela também vem das novas regras de relacionamento, em que a busca pela satisfação imediata está acima de qualquer projeto de vida ou de qualquer respeito e reconhecimento da alteridade, e também está na cultura do lixo, na cultura do consumo, da descartabilidade, nas novas relações firmadas com antigos símbolos de loucura (como a avareza, que agora é aceitável) e de racionalidade (como a parcimônia, que não é nem mais reconhecida).
Sem padrões de referência ou códigos sociais e culturais para construir suas vidas, os indivíduos são dispersos em caminhos aleatórios, individualmente construídos independentemente de sua classe ou de sua cidadania[4].
Referências
[1] Silva, R. B., Mendes, J. P. S., & Alves, R. dos S. L. (2015). O conceito de líquido em Zygmunt Bauman: Contemporaneidade e produção de subjetividade. Athenea igital. evista e ensamiento investigación ocial, 15(2), 249–264. https://doi.org/10.5565/rev/athenea.1511
[2] Silva, R. B., Mendes, J. P. S., & Alves, R. dos S. L. (2015). O conceito de líquido em Zygmunt Bauman: Contemporaneidade e produção de subjetividade.
[3] Santos, M. C. P. dos, & Souza, A. L. B. de. (2023). O PROCESSO DE LIQUEFAÇÃO IDENTITÁRIA À LUZ DE ZYGMUNT BAUMAN. Virtuajus, 8(14), 379-389. https://doi.org/10.5752/P.1678-3425.2023v8n14p379-389.
[4] FRAGOSO, Tiago. Modernidade líquida e liberdade consumidora: o pensamento crítico de Zygmunt Bauman. Revista Perspectivas Sociais Pelotas, Ano 1, N. 1, p. 109-124, março/2011.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
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