O que significa uma pesquisa ser participante? – Carlos Brandão

Trata-se de uma participação que não se resume ao fornecimento de dados à pesquisa, mantendo a estrutura de pesquisa em que o pesquisador é o protagonista e autor, enquanto os participantes são sujeitos e, ao mesmo tempo, objetos no interior da produção do conhecimento. Nesta mudança participativa, a própria autoria se vê compartilhada, o protagonismo se vê compartilhado e o resultado é fruto da própria ação coletiva sem liderança privilegiada do pesquisador.

A pesquisa participante tem profundas ligações com os movimentos populares. Dos anos 1970 até o presente, a pesquisa participante, seja com base em Paulo Freire ou Fals Borda, se coloca como instrumento de ação nos trabalhos de educação popular, seus agentes se inserem como participantes ou assessores de movimentos sociais.

A ligação com movimentos sociais dirige a pesquisa para um rumo distanciado da academia na medida em que próximo dos próprios locais de atuação dos próprios movimentos sociais ou locais em que há necessidade de uma ação social. A participação se torna, assim, um elemento de relocalizar a própria importância da ciência dentro da sociedade e seu impacto imediato.

A pesquisa de origens epistemológicas ou metodológicas da pesquisa participante na América Latina logra um olhar mais abrangete e completo quando leva em conta a mergência das inúmeras unidades sociais e movimentos populares de vocação transformadora e emancipatória, quando eles instauram algumas novas alternativas de investigação empírica, consequentemente, de outras compreensão científica e ideológica da vida e da realidade social, assim como dos fundamentos e do papel da própria ciência na sociedade (BRANDÃO, 2006, p. 23).

Assim, as metodologias participativas em conjunto com uma epistemologia humanista tende a transformar o que se entende como uma prática da ciência: em vez de objetiva, pautada no afastamento do pesquisador e na observação contínua do objeto; subjetiva, pautada na proximidade do pesquisador e na relação entre sujeitos. Esta relação entre sujeitos representa a superação da relação dicotômica entre sujeito e objeto da pesquisa:

Essa modalidade de pesquisa apresenta dois atributos básicos: relação de reciprocidade entre sujeito e objeto e relação dialética entre teoria e prática. Isso significa que o conhecimento da realidade só se dá no estabelecimento de uma relação entre pesquisador, técnicos, grupos, em que já não se pode mais falar na separação produzida pela dicotomia entre sujeito e objeto da investigação e entre teoria e prática (SILVA, 2006, p. 125).

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Esta relação entre sujeitos compreende, assim, um compartilhamento de responsabilidades e de criação: todos os cossujeitos de pesquisa participam desde o início da delimitação do fenômeno, do problema e da solução. Assim, a pesquisa participante se coloca como uma forma de ação participante em duas dimensões:

  • “A primeira: agentes sociais populares são considerados mais do que apenas beneficiários passivos dos efeitos diretos e indiretos da pesquisa e da promoção social dela decorrente ou a ela associada. Homens e mulheres de comunidades populares são vistos como sujeitos cuja presença ativa e crítica atribui sentido à pesquisa participante” (BRANDÃO, 2006, p. 23), desta forma, em vez de firmar uma relação de unilateral, em que a participação é acessória, em que a participação contribui como forma de ajuda ou fonte de dados, a relação firmada é de mão dupla. “Ou seja, uma pesquisa é “participante” não porque atores sociais populares participam como coadjuvantes dela, mas porque ela se projeta e realiza desdobramentos através da participação ativa e crescente de tais atores” (BRANDÃO, 2006, pp. 23-24).
  • “Segunda: em outra direção, a própria investigação social deve estar integrada em trajetórias de organização popular e, assim, ela deve participar de amplos processos de ação social de uma crescente e irreversível vocação popular. Uma articulação de ações de que a pesquisa participante é um entre outros instrumentos” (BRANDÃO, 2006, p. 24), A participação e a ação de educação popular devem ser entendidos como práticas geradoras de um caminho sem volta: a construção e reconstrução de si que culmina na emancipação e na potencialidade de transformação social. “Um instrumento científico, político e pedagógico de produção partilhada, de conhecimento social e, também, um múltiplo e importante momento da própria ação popular. Esta alternativa de investigação social é “participante” porque ela própria se inscreve no fluxo das ações sociais populares. Estamos em uma estrada de mão dupla: de um lado a participação popular no processo da investigação. De outro, a participação da pesquisa no decorrer das ações populares” (BRANDÃO, 2006, p. 24), ou seja, a participação é dos participantes e também da própria pesquisa: os participantes participam da pesquisa e a pesquisa participa do próprio processo de transformação social enquanto ação social popular.

SILVA (2006) reitera que o processo participativo se apresenta sob dois aspectos, sendo o primeiro relativo à integração dos setores populares no processo de conhecimento enquanto sujeitos, de tal maneira que se transformam, também, em pesquisadores em conjunto com os cientistas e acadêmicos que surgem como profissionais da pesquisa. O segundo, por sua vez, é diretamente relacionado à produção de conhecimento que serve aos setores populares, sem necessariamente ser produzido por eles. “Isso significa fazer ciência comprometida, por conseguinte, com intencionalidade explícita, ultrapassando a máscara de neutralidade que a ciência positivista tenta imprimir ao conhecimento” (SILVA, 2006, p. 124), afirma a autora.

Sendo assim, há um processo duplo de participação que se manifesta na educação popular e nas consequências desta ação. Enquanto pesquisa, já se faz como ação social participativa na construção coletiva de conhecimento, enquanto ação política, transforma os processos de gestão da vida social:

Ainda, trata-se de uma participação tomada em um duplo sentido, pois sempre se entendeu que, como um meio de realização da educação popular, a pesquisa participa da ação social também como uma prática pessoal e coletiva de valor pedagógico, na medida em que sempre algo novo e essencial se aprende através de experiências práticas de diálogo e de reciprocidade na construção do conhecimento. E, como uma forma de educação com um valor também político, na medida em que entre a esfera de um pequeno grupo até a de uma comunidade, uma esfera corporada de trabalho popular ou mesmo toda uma nação, espera-se que sempre alguma coisa se transforme em termos de humanização das estruturas e dos processos de gestão da vida social (BRANDÃO, 2006, p. 24).

E essa transformação está diretamente relacionada ao conhecimento crítico produzido para transformação da realidade. A própria realidade transformada é o resultado direto do conhecimento crítico enquanto crítico. SILVA (2006, p. 127) compreende que há uma intencionalidade na pesquisa participante, “trata-se do direcionamento do saber produzido para instrumentalização da luta das classes subalternizadas, quer essas classes tenham ou não participado da construção direta desse saber”, esta compreensão envolve o entendimento da prática participante direta e indireta, como é possível de notar na citação. Neste artigo, delimito o que seria a participação, sendo necessário compreender que há uma intencionalidade envolvida no processo de pesquisa participativa inclusive com a presença atuante e protagonista dos cossujeitos da investigação.

A intencionalidade, assim, também está diretamente relacionada ao entendimento de que a participação será sempre direcionada ao contexto geral e específico dos sujeitos populares que participam da pesquisa, sendo direcionado por um conceito específico de libertação ou emancipação.

Assim, a pesquisa é “participante” não apenas porque uma proporção crescente de sujeitos populares participa de seu processo. A pesquisa é “participante” porque, como uma alternativa solidária de criação de conhecimento social, ela se inscreve e participa de processos relevantes de uma ação social transformadora de vocação popular e emancipatória (BRANDÃO, 2006, p. 25).

Trata-se, assim, de uma participação que não se resume ao fornecimento de dados à pesquisa, mantendo a estrutura de pesquisa em que o pesquisador é o protagonista e autor, enquanto os participantes são sujeitos e, ao mesmo tempo, objetos no interior da produção do conhecimento. Nesta mudança participativa, a própria autoria se vê compartilhada, o protagonismo se vê compartilhado e o resultado é fruto da própria ação coletiva sem liderança privilegiada do pesquisador.

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Referências

C. R. Brandão. A pesquisa participante e a participação de pesquisa: um olhar entre tempos e espaços a partir da América Latina IN C. R. Brandão, D. Streck (Orgs.). Pesquisa participante: a partilha do saber. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.

SILVA, M. O. S. Reconstruindo um processo participativo na produção do conhecimento. IN C. R. Brandão, D. Streck (Orgs.). Pesquisa participante: a partilha do saber. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.

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