O sujeito do enunciado, por Michel Foucault – DROPS #50

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª edição: Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 104-106.

O sujeito do enunciado, por Michel Foucault

Não é preciso, na verdade, reduzir o sujeito do enunciado aos elementos gramaticais de primeira pessoa que estão presentes no interior da frase: inicialmente, porque o sujeito do enunciado não está dentro do sintagma linguístico; em seguida, porque um enunciado que não comporta primeira pessoa tem, ainda assim, um sujeito; enfim e sobretudo, todos os enunciados que têm uma forma gramatical fixa (quer seja em primeira ou em segunda pessoa) não têm um único e mesmo tipo de relação com o sujeito do enunciado. Compreende-se facilmente que essa relação não é a mesma em um enunciado do tipo “A tarde começa a cair” e “Todo efeito tem uma causa”; quanto a um enunciado do tipo “Deitei-me cedo durante muito tempo”, a relação com o sujeito que enuncia não é a mesma, se o ouvimos articulado no curso de uma conversa, e se o lemos na primeira linha de um livro que se chama À la recherche du temps perda.


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Esse sujeito exterior à frase não seria, simplesmente, o indivíduo real que a articulou ou escreveu? Não há signos sem alguém para proferi-los ou, de qualquer forma, sem alguma coisa como elemento emissor. Para que uma série de signos exista, é preciso – segundo o sistema das causalidades – um “autor” ou uma instância produtora. Mas esse “autor” não é idêntico ao sujeito do enunciado; e a relação de produção que mantém com a formulação não pode ser superposta à relação que une o sujeito enunciante e o que ele enuncia. Não tomemos, pois seria demasiado simples, o caso de um conjunto de signos materialmente moldados ou traçados: sua produção implica um autor; não há, entretanto, nem enunciado nem sujeito do enunciado. Poderíamos lembrar também, para mostrar a dissociação entre o emissor de signos e o sujeito de um enunciado, o caso de um texto lido por uma terceira pessoa, ou do ator representando seu papel. Mas esses são casos extremos. De maneira geral, parece, pelo menos à primeira vista, que o sujeito do enunciado é precisamente aquele que produziu seus diferentes elementos com uma intenção de significação. Entretanto, as coisas não são tão simples. Sabe-se que, em um romance, o autor da formulação é o indivíduo real cujo nome figura na capa do livro (ainda se coloca o problema dos elementos dialogados e das frases que se referem ao pensamento de um personagem; ainda se coloca o problema dos textos publicados sob pseudônimo: e sabemos todas as dificuldades que esses desdobramentos suscitam para os defensores da análise interpretativa quando querem relacionar, de uma só vez, todas essas formulações ao autor do texto, ao que ele queria dizer, ao que pensava, enfim, ao grande discurso mudo, inaparente e uniforme sobre o qual se apóia toda essa pirâmide de níveis diferentes); mas, até fora dessas instâncias de formulação que não são idênticas ao indivíduo-autor, os enunciados do romance não têm o mesmo sujeito, conforme dêem, como se fosse do exterior, os marcos históricos e espaciais da história contada, ou descrevam as coisas como as veria um indivíduo anônimo, invisível e neutro, magicamente misturado às figuras da ficção, ou ainda dêem, como se fosse por decifração interior e imediata, a versão verbal do que, silenciosamente, experimenta um personagem. Esses enunciados, ainda que o autor seja o mesmo, ainda que só os atribua a si, ainda que não invente relais suplementar entre o que ele é e o texto que se lê, não supõem para o sujeito enunciante os mesmos caracteres; não implicam a mesma relação entre o sujeito e o que ele está enunciando.

Talvez se diga que o exemplo, tantas vezes citado, do texto romanesco, não tem valor probante; ou, antes, que questiona a própria essência da literatura e não o status do sujeito dos enunciados em geral. Seria uma particularidade da literatura que o autor dela se ausentasse, se escondesse, se destacasse ou se separasse; e dessa dissociação, não se deveria concluir, universalmente, que o sujeito do enunciado é distinto em tudo – natureza, status, função, identidade – do autor da formulação. Entretanto, essa ruptura não está limitada apenas à literatura. É absolutamente geral na medida em que o sujeito do enunciado é uma função determinada, mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro; na medida em que é uma função vazia, podendo ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o enunciado; e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos. Consideremos o exemplo de um tratado de matemática. Na frase do prefácio em que se explica por que o tratado foi escrito, em que circunstâncias, para responder a que problema não resolvido, ou a que inquietação pedagógica, utilizando que métodos, depois de que tentativas e fracassos, a posição de sujeito enunciativo só pode ser ocupada pelo autor ou autores da formulação: as condições de individualização do sujeito são de fato muito estritas, muito numerosas, e autorizam, nesse caso, apenas um sujeito possível. Em compensação, se no próprio corpo do tratado encontramos uma proposição como “Duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si”, o sujeito do enunciado é a posição absolutamente neutra, indiferente ao tempo, ao espaço, às circunstâncias, idêntica em qualquer sistema linguístico, em qualquer código de escrita ou de simbolização, e que pode ser ocupada por qualquer indivíduo, para afirmar tal proposição. Por outro lado, frases do tipo “Já demonstramos que…” compreendem, para que possam ser enunciadas, condições contextuais precisas que não estavam compreendidas pela formulação precedente: a posição é então fixada no interior de um domínio constituído por um conjunto finito de enunciados; é localizada em uma série de acontecimentos enunciativos que já se devem ter produzido; é estabelecida em um tempo demonstrativo cujos momentos anteriores jamais se perdem e que não têm, pois, necessidade de serem recomeçados e repetidos identicamente, para se apresentarem de novo (basta uma menção para reativá-los em sua validade original); é determinada pela existência prévia de um certo número de operações efetivas que talvez não tenham sido feitas por um único e mesmo indivíduo (o que fala no momento), mas que pertencem, de direito, ao sujeito enunciante e que estão à sua disposição, podendo ser por ele retornadas quando necessário.

Definiremos o sujeito de tal enunciado pelo conjunto desses requisitos e possibilidades; e não o descreveremos como indivíduo que tivesse, realmente, efetuado operações, que vivesse num tempo sem esquecimento nem ruptura, que tivesse interiorizado, no horizonte de sua consciência, todo um conjunto de proposições verdadeiras, e que delas retivesse, no presente vivo de seu pensamento, o reaparecimento virtual (nos indivíduos, isso não passa, quando muito, do aspecto psicológico e “vivido” de sua posição enquanto sujeitos enunciantes).

 – Michel Foucault.

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