Da série “Saussure e a AD”.
O sistema da língua é um sistema de valores puros, diz Saussure. Como condição de possibilidade para este sistema, é necessário observar dois elementos: as ideias e os sons. Ambos realizam uma ligação que traduz uma ideia fixa em um som e transforma este som em signo, já que, para o autor, o papel da língua
frente ao pensamento não é criar um meio fônico material para a expressão das idéias, mas servir de intermédio entre o pensamento e o som, em condições tais que uma união conduza necessariamente a delimitações recíprocas de unidades.[1]
A língua, continua o linguista, é como uma folha de papel em que na frente há o significante e no verso, o significado. É impossível cortar um sem cortar o outro. A linguística trabalha diretamente com essa combinação de significante e significado, som e ideia. Tal combinação produz uma forma, não uma substância, já que não há positividade no sistema de diferenças entre os significantes ou entre os significados.
Este é um ponto importante: sistema é diferencial, ou seja, se caracteriza por ter elementos definidos negativamente. O princípio de arbitrariedade do signo define que a relação entre significante e significado não é necessária, é radicalmente arbitrária, assim, não há positividade nem na ligação entre significante e significado e nem na presença de um ou outro elemento na língua.
Ao mesmo tempo, na prática da língua não há impressão de arbitrariedade, existe um valor específico que separa, organiza e dispõe os termos da língua. O fato social da língua, por si só, pode criar um sistema linguístico, já que o uso das palavras se faz na coletividade, não na consciência do indivíduo, e a impressão de não arbitrariedade na prática da língua se dá através dos valores estabelecidos para e durante o uso da língua na coletividade.
A idéia de valor, assim determinada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do sistema do qual faz parte; seria acreditar que é possível começar pelos termos e construir o sistema fazendo a soma deles, quando, pelo contrário, cumpre partir da totalidade solidária para obter, por análise, os elementos que encerra.[2]
Uma palavra só tem qualquer valor na medida em que existe rodeada, relacionada e oposta a diversas outras. Em relação ao conceito de valor dentro do sistema da língua, a combinação ideal do sistema que traduz o valor pode ser vista na imagem abaixo:
A língua, assim, é um sistema de termos solidários através de relação estabelecida na presença simultânea dos signos em questão. Um signo só tem valor na presença de outros e o valor é constituído:
por uma coisa dessemelhante, suscetível de ser trocada por outra cujo valor resta determinar;
por coisas semelhantes que se podem comparar com aquela cujo valor está em causa.[3]
É necessário, portanto, para definir o valor de uma nota de cinco reais 1) verificar se é possível trocá-la, por exemplo, por um saco de arroz e 2) verificar se há material semelhante para comparação, por exemplo, notas de valores variados. Só é possível definir o valor de um termo, então, quando o significado puder ser trocado por outro significado e, ao mesmo tempo, quando puder ser comparado entre os termos que se opõem.
Fazendo parte de um sistema, [a palavra] está revestida não só de uma significação como também, e sobretudo, de um valor, e isso é coisa muito diferente.[4]
É interessante compreender que, na visão de Saussure, no interior de uma língua, todos os termos que exprimem ideias semelhantes se limitam reciprocamente. Recear, temer, ter medo são termos com valores próprios na medida em que se opõem. Se recear não existisse, seu conteúdo seria transferido para os outros dois termos. Os valores, desta forma, são diferenciais e se definem negativamente pela sua relação com os outros valores do sistema. “Sua característica mais exata é ser o que os outros não são”[5].
Passado o momento de entender o valor em seu aspecto conceitual, é necessário entendê-lo em seu aspecto material, ou seja, na prática da língua, na fala. Neste ponto, é necessário expandir o argumento acima dito: o que interessa na palavra dita não é o som, aquilo que seria sua substância, mas sim as diferenças fônicas que vão permitir a distinção dos sons, de um palavra e outra. “Arbitrário e diferencial são duas qualidades correlativas”[6].
A língua, assim como qualquer sistema diferencial, não apresenta ligação direta com seu suporte material (no caso, a fala). O valor de cada palavra não depende da expressão sonora suscitada pela intenção de sua comunicação, mas sim da relação diferencial dos elementos da língua. O mesmo vale especificamente para a letra: T não tem essência, seu valor depende da relação com o U, V e etc. O que todos os outros não forem, ele será.
Considerações finais
Compreende-se que significante e significado são ligados arbitrariamente e que o valor de sua ligação (o valor do signo) aparece na relação entre os dois lados do signo somado à relação entre os signos no interior do sistema da língua. O valor de um signo linguístico é determinado pela relação de oposição que ele estabelece com todos os outros signos.
Entretanto, tomando o signo em sua totalidade, a pura negatividade da língua expressa no parágrafo acima deve ser desconsiderada: essa negatividade existe na relação entre significantes ou significados, mas quando se passa a considerar o signo, percebe-se uma positividade em sua ordem.
Um sistema linguístico é uma série de diferenças de sons combinadas com uma série de diferenças de ideias; mas essa confrontação de um certo número de signos acústicos com outras tantas divisões feitas na massa do pensamento engendra um sistema de valores; e é tal sistema que constitui o vínculo efetivo entre os elementos fônicos e psíquicos no interior de cada signo.[7]
Ou seja, a positividade presente na língua quando vista sob a perspectiva do signo se expressa através dos valores que emergem na combinação e uso dos sons e ideias presentes num dado momento, numa dada coletividade.
É esse sistema de valores que cria o dito vínculo entre o som e a ideia. Daí os signos não serem classificados como diferentes, quando postos em oposição. Eles são somente distintos, estão somente em oposição, já que fica impossível trocá-los ou compará-los.
Referências
[1] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blinkstein. 32ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2010, p. 131.
[2] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p. 132.
[3] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p. 134.
[4] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p. 134.
[5] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p. 136.
[6] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p. 137.
[7] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral… p. 139-140.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.