Da série “A Arqueologia do Saber“.
Até agora, foi tarefa de Foucault levar seu leitor pelos caminhos que a análise do discurso precisou refutar.
É nesta última seção d’A Arqueologia do Saber que o filósofo francês pondera suas elucubrações, desenvolve um panorama maior para a formação discursiva e finca uma estaca no chão da análise discursiva.
Se Foucault não definiu rigorosamente em todas as seções do capítulo As Regularidades Discursivas o que é um discurso, foi porque a definição deste conceito se construía mediante a crítica às análises vigentes em sua época. Esta é uma característica importante da análise foucaultiana: para manter sua validade, não se fixa no tempo, guarda um conjunto de procedimentos que se modificam conforme o saber estudado.
A definição perfeita da análise do discurso se completa na leitura dos outros dois capítulos do livro. No entanto, o autor libera algumas conclusões prévias, entende as dificuldades para dar forma ao conceito de discurso e confere mais algumas características à sua análise.
A unidade do discurso revisitada
É preciso, desde já, responder a uma questão primordial em relação às análises ulteriores, e terminal em relação às precedentes: na verdade, tem-se o direito de falar de unidades a propósito das formações discursivas que tentei definir? O recorte que se propõe é capaz de individualizar conjuntos? E qual é a natureza da unidade assim descoberta ou construída?[1]
O sistema que se percebe no discurso não é uma superfície visível, nem algo oculto, esperando para ser descoberto e assim revelar uma verdade presa sob as camadas da realidade ideológica. O discurso lida com aquilo que é dito, não com o não dito – ao mesmo tempo, não se preocupa com semântica, mas com a própria possibilidade da emergência de um tipo específico de significação.
O sistema regular da formação discursiva é sempre encontrado a partir da série dispersa de elementos que cada discurso carrega. Este sistema não é o encontro de elementos homogêneos, a descoberta de uma massa única e indiferenciável, pelo contrário, é fruto do esforço em encontrar a regularidade nas diferenças, nos cortes, nas fugas, nas distâncias e nas exclusões.
Lembremos:
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipo de de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva.[2]
O discurso se dá por relações verticais
É por isso que o sistema de formação de um discurso (que compreende a formação discursiva), não é só um conjunto heterogêneo justaposto. Não é só um quadro de enunciados colocados lado a lado, mas, entende-se que as relações construídas na prática discursiva entre os enunciados e as instituições caracterizam tal sistema.
É que os diferentes níveis, assim definidos, não são independentes uns dos outros. Mostramos que as escolhas estratégicas não surgem diretamente de uma visão de mundo ou de uma predominância de interesses que pertenceriam a este ou àquele sujeito falante; mas que sua própria possibilidade é determinada por pontos de divergência no jogo dos conceitos; mostramos também que os conceitos não eram formados diretamente sobre o fundo aproximativo, confuso e vivo das ideias, mas a partir das formas de coexistência entre os enunciados; quanto às modalidades de enunciação, vimos que eram descritas a partir da posição que o sujeito ocupa em relação ao domínio de objetos de que fala. Desta maneira, existe um sistema vertical de dependências: todas as posições do sujeito, todos os tipos de coexistência entre enunciados, todas as estratégias discursivas não são igualmente possíveis, mas somente as que são autorizadas pelos níveis anteriores.[3]
É necessário repetir um ponto: “desta maneira, existe um sistema vertical de dependências: todas as posições do sujeito, todos os tipos de coexistência entre enunciados, todas as estratégias discursivas não são igualmente possíveis, mas somente as que são autorizadas pelos níveis anteriores“[4].
Foucault entende o discurso de maneira hierárquica. Não há livre curso de enunciados com total autonomia dentro de uma época específica, já que é justamente a relação dos discursos entre si e dos enunciados de um mesmo discurso que criam este caminho singular e possibilitam a emergência de certa formação de conceitos, por exemplo, e a exclusão de diversos conceitos não adequados às regras de formação, mas que são logicamente possíveis.
A lógica não define a prática, mas é a relação entre os enunciados, entre as séries enunciativas, entre as relações não discursivas que possibilita – na prática – a emergência de um dado conceito, de uma modalidade enunciativa, de uma dada estratégia ou de um objeto específico.
Para entender esta conclusão de Foucault, é necessário imaginar um copo com água e óleo. Ambos são diferentes, separados, mas estão no mesmo copo, em uma relação interminável e frenética. A água só está do lado de baixo porque o óleo está do lado de cima e vice-versa. Eles dependem um do outro.
Disso também se conclui que a relação não se dá somente de cima para baixo, mas também de baixo para cima. É uma estrutura verticalizada que faz cada nível depender dos outros, que obriga a sua configuração ter forma a partir do todo.
“Não foi a escolha teórica [dos fisiocratas] que regulou a formação do conceito [de produto líquido]; mas ela o produziu por intermédio das regras específicas de formação dos conceitos e pelo jogo das relações que mantém com este nível”, afirma Foucault[5].
O sistema de formação não é imóvel
Este é o momento em que Foucault resolve acabar com qualquer possibilidade de interpretação errada de sua filosofia. Não é possível entendê-lo como um epistemólogo comum, ele não procura nenhuma estrutura universal ou absoluta, nenhuma forma estática (como os estruturalistas), parada no tempo.
O sistema de formação não é uma estrutura que surge na consciência das pessoas ou em suas representações da realidade. Não é uma visão de mundo. Ao mesmo tempo, não é uma formação no nível da estrutura econômica ou das relações sociais que se impõe sobre o discurso. A formação discursiva é diferente.
Estes sistemas – já insistimos nisso – residem no próprio discurso […] Por um sistema de formação é preciso, pois, compreender um feixe complexo de relações que funcionam como regras: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva para que se refira a tal ou tal objeto, para que empregue tal ou tal enunciação, para que utilize tal ou tal conceito, para que organiza tal ou tal estratégia.[6]
A formação discursiva está nos interstícios dos enunciados, em suas dobras, em suas ligações, no nascimento e na morte de cada um. Ela não é, portanto, uma estrutura universal (como Levi-Strauss procurava em suas pesquisas), mas sim uma estrutura flexível e temporal.
Uma formação discursiva não desempenha, pois, o papel de uma figura que para o tempo e o congela por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria de processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações, mutações e processos.[7]
E suas modificações não são aleatórias: as práticas discursivas são modificadas pelos campos em que ela se forma, pelas instituições sociais, ao mesmo tempo em que as modifica, afinal, não se pode dizer que o campo hospitalar tenha permanecido o mesmo depois da emergência do discurso clínico, que o relacionou ao laboratório e deu novo status ao médico, através da função de sua observação.
O pré-discursivo
Os sistemas de formação, é necessário entender, não são um horizonte final dos discursos, como os “textos (ou as falas) tais como apresentam com seu vocabulário, sintaxe, estrutura lógica ou organização retórica”[8].
A análise do discurso está aquém do nível das construções acabadas, dirá Foucault, pois o que interessa é aquilo que não se vê na prática, pois está invisível nos interstícios dos enunciados. Ela funciona como em um nível pré-sistemático, pois não faz parte do próprio sistema de formação, mas das regras que o compõem; em um nível pré-discursivo, desde que se tome cuidado com este termo.
O pré-discursivo da análise do discurso ainda pertence ao discurso, ainda está em um nível do discurso, ainda faz parte daquilo que o discurso é; não é uma forma de pensamento e nem uma representação, está sempre aquém.
É nesse nível pré-discursivo que as regras do discurso são definidas e a prática discursiva as atualiza em sua emergência singular.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Observações e consequências IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.85.
[2] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.47.
[3] FOUCAULT, Michel. Observações e consequências… p.86.
[4] FOUCAULT, Michel. Observações e consequências… p.86.
[5] FOUCAULT, Michel. Observações e consequências… p.87.
[6] FOUCAULT, Michel. Observações e consequências… p.88.
[7] FOUCAULT, Michel. Observações e consequências… p.88-89.
[8] FOUCAULT, Michel. Observações e consequências… p.89-90.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.