Por Lucas Gazinhato, em colaboração com o Colunas Tortas.
“Estrada de terra que
Só me leva, só me leva
Nunca mais me traz”
-“Carro de Boi” de Milton Nascimento.
Os fragmentos de um vaso há muito dado para o mundo
Até certo ponto, ninguém reclamou a Dona Jacira pelas dívidas deixadas por Vanessa; muito menos houve a visita de seu ex-namorado/ perseguidor Arnaldo, que havia prometido “acabar com a sua vida e de todo o resto da sua família de filhos da puta”. Ele não havia aparecido, já as dívidas se empilharam ao lado da televisão. Seus sobrinhos ainda estavam dormindo no quarto da filha – dois rapazes altos e magrelos que só saiam de casa para comprar “comida” que abastecia as noitadas de jogos MMORPG. Dona Jacira assistia sem interesse os dois entrando e saindo pela porta sanfonada de plástico, que continha desenhos feito em giz de cera rosa, quando Vanessa tinha doze anos: pequenos cavalos ou unicórnios apagados andando em um gramado representado por um grande borrão de giz verde. Tal porta, agora, abria e fechava, enquanto os sobrinhos tiravam grandes sacos de lixo do quarto (apesar de não trabalharem, eram organizados).
Não teve coragem de entrar no quarto de Vanessa. Os dias agora eram apenas tomar banho cedo (no mesmo horário em que Vanessa saia para dar aula de Geografia) e caminhar pelo que era a casa para ela, revisitando a sala, a cozinha, o banheiro, seu quarto e o quintal dos fundos, diminuído pelos monitores de computador antigos, grandes quadrados brancos amarelados, que precisavam ser vendidos – mas era coisa da Vanessa fazer.
Vanessa, Vanessa, Vanessa… o nome repetia tanto em sua mente, que começou a sentir um enjoo bem cansativo.
Vestia a camiseta desbotada do Motorhead que guardava desde a juventude, calça jeans um pouco justa, surrada, meio cinza (que revezava com outra azul escura há alguns meses) e calçava chinelos amarelos bem gastos. Assim ficava o dia todo, prendendo os cabelos longos e grisalhos por uma piranha cor vinho com alguns dentes quebrados. No máximo, passava protetor solar em dias muito quentes, o que, na prática, era totalmente desnecessário já que as queimaduras de sol nunca iam ser feitas, pois, entocada dentro de casa do modo que estava, o único efeito realmente era ficar com um tom esbranquiçado e grudento em sua pele negra.
A rotina se quebrava quando sentia necessidade de passar um pano na sala, atividade que se expandia no máximo até a cozinha. Pegava o rodo remendado por fita crepe no meio e afundava no balde cheio de água sanitária e um pouco de detergente. Depois, se afundava no sofá, ligando a televisão no canal de documentários, totalmente sem conexão entre eles, abordando desde as tonalidades de tinta usada pelos pintores renascentistas, até como a teoria da lei de Gerson afetou a identidade do brasileiro nas últimas décadas. Porém, nem tentava traçar alguma conexão daquelas que só se têm com sentido próprio, apenas os via para acompanhar o vazio. Ali dormia a tarde toda, sendo acordada pelo toque do telefone, de vez em quando, sendo quase sempre seu irmão caçula Dionísio querendo falar com os filhos, para perguntar se o dinheiro da semana havia caído no banco. Acordava já no escuro, com a luz amarela dos postes sendo filtrada distorcidamente pela janela da sala. Levantava-se e ia para o quarto, ligava rapidamente a luz para se despir e entrar embaixo de seu cobertor, na cama de solteiro que sempre teve, desde que morava ali, fechando a porta com duas voltas na chave.
Assim foram passando, para Jacira, as primeiras semanas em que Vanessa não estava mais lá. O almoço e o jantar eram só arroz e feijão com banana, que eram consumidos até os dias azedarem os dois, quando era necessário fazer mais. Depois de um tempo, seus sobrinhos começaram a preparar algumas refeições, talvez pela culpa de estar em sua casa sem fazer nada de útil. Na maioria das vezes, era sempre macarrão com salsicha e lasanha pronta, meio gelada, refeições que faziam apenas para ela, pois se alimentavam de porcarias, das quais ela já viveu muito tempo também consumindo. A louça era lavada nas horas em que estava mergulhada no sofá, desligada.
Numa dessas noites em que estava deitada no escuro de seu quarto, alguns minutos depois de ter fechado os olhos para dormir, logo estava encarando o breu com uma repentina e incomum perda de sono. Mexeu o braço direito, deslizando pelo lençol, quando, a extremidade de um de seus dedos passou por algo pontudo, que a faz reprimir o braço, assustada. “Que diabo é isso?” , esticou a mão para alcançar o interruptor e seu braço foi arranhando por algo. Assustada, a luz repentinamente se ligou e havia por toda sua volta pequenas erupções cinzentas como formigueiros, só que com vários buracos pequenos e fundos. Na cama eles haviam rasgado o colchão e passavam pelo lençol que, havia dias, tinha um leve cheiro de suor. Não conseguia se mexer, por mais que forçava sua cabeça desesperadamente a isso. Nas paredes pintadas de um azul aguado, essas coisas eram maiores e pareciam respirar, ofegantes. Logo um odor horrível de mofo fez suas narinas arderem; sentiu cada centímetro do seu pulmão tampando, até algo começar a lhe subir a garganta, escorrendo pelos lados de sua boca. Via o mesmo cinza daquelas estranhas coisas descendo pelo cobertor, borbulhando, até fazer os mesmos buracos fundos.
Dos sonhos efêmeros e cheios de texturas estranhas que tivera nos últimos meses, esse foi o único que lhe remeteu a algumas imagens concretas, e perturbadoras. Acendeu a luz do quarto, com um pouco de receio de a mão ser atingida por alguma coisa, e o quarto estava da mesma maneira como estivera ignorado há algum tempo – as paredes com algumas partes sem reboco, assim como as manchas de umidade causadas pela infiltração em dias de chuva. A única coisa que havia de diferente eram algumas teias de aranhas nos cantos e perto do grande armário branco que ocupava toda a parede ao seu lado esquerdo, único móvel do cômodo, além da cama e de um pequeno criado mudo que estava ali só de enfeite. Mesmo assim, levantou-se da cama, saiu do quarto sem fazer barulho, pegou a vassoura para tirar as teias da parede e varreu o chão rapidamente, antes de voltar a dormir.
Quando acordou, no outro dia, percebeu que havia passado quatro semanas e dois dias dessa maneira monótona. Sentou na ponta da cama e chorou, coisa que não houvera feito ainda. Mas um pensamento lhe veio à cabeça e a fez chorar mais ainda: o motivo do choro era por Vanessa ou pelas semanas que desperdiçou desse jeito? O pior era que não conseguia separar isso, na confusão mental que estava, tornando seu pranto mais desesperador.
Naquela manhã, depois que parou de chorar, se vestiu com a mesma camisa desbota, a calça jeans meio cinza e seus chinelos, mas não se afundou no sofá ou mesmo passou pano na sala. Foi em direção à porta sanfonada branca cheia de desenhos de Vanessa e a encarou por um tempo, batendo logo em seguida – apenas um efeito automático, pois já foi entrando. Não parecia mais o quarto de sua filha, a cama de esquadro branco que se descascava revelando o aço oxidado ainda estava lá, as paredes pintadas de um amarelo bem claro quase sem nenhum risco, também. Mas era só isso! Seus sobrinhos haviam mudado totalmente o quarto. O armário idêntico ao seu (foram confeccionados juntos) agora estava com vários cabides nas fechaduras, cheios de camisas e calças; a mesinha de madeira escura do computador, em frente à janela, agora era cheia de caixinhas de suco e pacote de bolachas fechados, organizados como uma dispensa, que eram rodeados por estatuetas, a maioria de garotas de olhos grandes e biquinis. Os meninos estavam sentados no chão de carpete marrom, encostados na cama, do outro lado, em frente à mesinha do computador, encurvados com a cabeça baixa, mexendo cada um em um notebook. O da direita olhou para Jacira. Seu rosto magro e com a barba por fazer pareceu ter visto um fantasma, quando seus olhos se arregalaram por um momento:
– Oi tia! – disse, fazendo o outro olhar para ele e em seguida olhar para trás, tirando o fone dos ouvidos com um puxão, sorrindo em vez de se assustar brevemente, como seu irmão fizera. O que havia falado se levantou todo desajeitado e pulou o outro – na verdade deve ter sido um reflexo pois ele era maior do que ela havia notado. Deu-lhe um abraço, meio que tentando encaixar os baixos (braços) magros em sua volta, na verdade estava quase se abraçando em vez de abraçar Jacira. Ela sentiu uma leve sensação de melancolia.
– Oi meu querido… – disse ela tentado apertar mais o abraço, só forçando a costela do menino, enquanto um cheiro de suor subia debaixo da axila úmida. Não sabia qual dos dois gêmeos era ele, Roberto ou Selton; agora precisava de provas para caracterizar cada um.
-Oi Tia!! – disse o outro, apenas acenando, sem se levantar do chão, com o sorriso ainda no rosto.
Jacira deu um tapinha nas costas do sobrinho, como um aviso de que o afeto estava bom. Não lembrava se havia conversado com eles desde que estavam em sua casa.
– Como vocês estão meus lindos? – perguntou abrindo um sorriso, pois pela expressão feita pelo que a veio abraçar, devia ser possível ver algo muito ruim de dentro exposto.
– Tamos bem – disse o que lhe deu o abraço. Para piorar sua memória anestesiada, usavam a mesma camisa preta, nova, com um grande bicho verde mostrando os dentes, escrito “Warcraft 3: Reing of chaos” em baixo, com letras engarrafadas amarelas. Lembrava disso, era um jogo ou algo parecido da época de sua adolescência que o pai deles jogava sem parar no computador já bem pequeno. Foram pegos tão desavisados com a sua visita que estavam de cuecas, mostrando as pernas magras e peludas.
– Tudo bem – continuou ela sorrindo – Vou deixar vocês aí, fiquem à vontade e logo faço o almoço pra gente. Vocês gostam de sopa de feijão? – era a melhor coisa que sabia fazer na cozinha, o que nunca foi o seu maior forte.
-Sim! – disse o que havia levantado, voltando ao lugar em que estava. O outro apenas acenou, voltando ao sorriso inicial.
– Tudo bem! – bateu o dedo duas vezes no batente da porta – Vou fazer pra gente!.
Os dois agora já voltaram para o notebook, ignorando um pouco o que havia dito no final.
O almoço naquele dia não tão frio para se tomar sopa seria para se atualizar de algumas coisas que aconteceram no período; se alguém havia passado na casa, pois não se levantou para atender as palmas das pessoas que chamaram e eles dois não haviam lhe dito nada pelo que se lembrava, talvez coisa de Dionisio dizendo a eles para deixá-la quieta, consigo mesma.
Dionisio veio-lhe à cabeça mais um pouco, enquanto fitou os dois meninos, tendo apenas o som das teclas batendo nos computadores. Lembrava-se de seu irmão como alguém recluso e um pouco bravo mesmo na infância, e o que conviveu com ele na adolescência e começo de vida adulta não havia sido exceção. Mas depois que os gêmeos nasceram , poucos anos após ter se casado com Marta, ele havia mudado. Toda a vez que o via tinha um semblante calmo e alegre em seu rosto redondo e bochechudo, lembrança da infância, o que Jacira demorou muito para se acostumar, pois suas brigas e discussões de irmãos, aquelas logo esquecidas, sempre lhe marcaram a memória. E quando sua caçula Claudia nasceu, pareceu que ficou totalmente vendido à alegria. Pensando naquele momento, talvez o irmão tenha dividido sua timidez e raiva sem motivo em pedaços muito pequenos, fazendo com que toda aquela braveza que lembrava o pequeno Dionisio fosse passada aos eventos alegres da vida, diluindo-a pela felicidade, transferidas para os filhos em quantidades tão insignificantes que não foram perigosas ou hereditárias, e caso se manifestasse em alguns deles três, seria por conta de suas próprias decisões.
Mas e ela? Nunca teve esse problema das situações que alteraram seu humor; sempre conseguiu deixar de lado e não se importar. Empurrava tudo com a barriga, de uma maneira muito sua, até o problema fugir da sua preocupação, sempre rápido, e continuava com a vida, talvez por isso tinha “a cabeça vazia e avoada” como o pai lhe dizia.
Só que Vanessa estava morta… sim ela havia morrido. Será que um fragmento grande que foi sua vida inteira estava agora voltando em forma de todas as coisas que havia diluído de triste e ruim?
Jacira teve que pedir para um dos sobrinhos comprar um saco de feijão e um pouco de hortelã, ainda havia meio pacote de macarrão parafuso e as cebolas da fruteira quase vazia ainda podiam ser usadas, mas mesmo assim duas não deram nem uma cebola normal, devido ao tanto de camadas que teve de descascar. A quantidade quase não irritou seus olhos, já incomodados pelas lágrimas de mais cedo. Também precisou tirar a mesa da cozinha do lado de fora. Era um modelo verde claro, feito com pernas que se dobravam para dentro, e estava no quintal dos fundos, em cima dos monitores amarelados dos anos noventa. Pensou ter sido colocada ali por um dos meninos, mas se lembrou que havia sido ela mesma, no dia do enterro de Vanessa.
Há quatro semanas e dois dias, retirou a mesa para que pudesse abrigar mais gente em casa, pois colocou dois colchões que pegou emprestados de Laércio, vizinho do outro lado da rua, na cozinha, para acomodar Dionisio e seu irmão mais velho Tuca. No sofá dormiu um de seus sobrinhos que, futuramente, ocuparia o quarto de Vanessa, pois a cama da filha ficou para a esposa de Tuca, Vitória, e seus dois filhos pequenos, Laura e Lírio. Quis dividir sua cama também, mas ninguém aceitou, talvez em consideração ao seu luto ou algo do tipo. Talvez alguém devesse ter aceitado, pois foi naquela noite que teve a impressão de que todo o sofá ou cama com o qual seu corpo fizesse contato, parecia se afundar completamente e passou a madrugada toda acordada, mas sem conseguir se mexer. O pânico lembrava o mesmo que sentiu no sonho, mas isso foi diminuindo, conforme os dias antes dele, sendo apenas um desânimo pesado.
Voltando à sopa, armou a mesa verde e pegou três pratos de vidro cor de caramelo do armário azul, sob a pia. Passou uma água nos pratos e deixou secar um pouco, enquanto pegava uma toalha de mesa, que havia guardado dentro de uma caixa de plástico embaixo da pia do banheiro, logo ao lado da cozinha e do quarto de Vanessa. Ela a havia deixado ali para colocar em outro lugar, mas o esquecimentos foi mais alto nessa questão. Abriu as travas vermelhas da caixa transparente e um aroma de amaciante subiu, como se aquela caixa fosse de outra casa, uma que não estava de luto. Escolheu uma toalha de mesa xadrez; não era a mais nova das que estavam lá, só que a cor laranja junto ao verde dos quadrados grandes lhe chamou a atenção. Pondo a mesa com os pratos e colheres ao lado, voltou-se para a sopa. Após o feijão e o macarrão ter sido cozidos dentro da panela de pressão, colocou os temperos, pois Roberto (ou será Selton?) havia demorado um pouco para trazer a hortelã e enquanto procurava pelo pote de talheres, achou meio saco de feijão no fundo do armário embaixo da pia.
Chamou os meninos, que vieram apressados, já sentando nos banquinhos de plástico que estavam antes empilhados ao lado do sofá da sala. Um deles, o que fora lhe buscar as coisas (este será Roberto, não quero mais pensar nisso!) apenas havia colocado uma calça jeans um pouco maior que ele, e bem amassada com sapatos de borracha cinza. Selton havia vestido shorts floridos e saiu do quarto como se tivesse a alguns anos preso ali, coçando o cabelo curto que parecia grisalho pelo monte de fios de algodão da fronha.
Enquanto comiam a sopa, acompanhada com quatro bolachas água e sal para cada um, já que não havia um único pão sem mofo nos vários sacos do armário, tentou se atualizar das coisas, ou pelos relembrar do que passou batido naquelas semanas: quase tudo.
– Ah, veio um moço aí semana passada, acho que na terça, falando que veio pegar uns monitores, mas como a senhora tava meio quietona, a gente falou pra ele voltar nesta semana – disse Roberto enquanto colocava um punhado de sopa no pedaço de biscoito que havia sobrado.
Isso iria atrasar a conta de água e as compras do mês, pensou Jacira, que agora teria que dar um jeito, mas qual?
Após trabalhar por duas décadas como recepcionista em lugares variados que abraçavam sua experiência na área, parou de trabalhar depois que Vanessa começou a lecionar como eventual em uma escola pública, em seu segundo bimestre de faculdade. Foi uma ideia da filha, mas não hesitou em aceitá-la. Fazia uns bicos, pegando umas entregas de salgados que a padaria de perto recebia de encomenda. Até então, não havia moldado um risóli em toda a sua vida, mas foi pegando o jeito com o tempo. Fazia isso para auxiliar a filha de uma maneira da qual não iniciasse uma briga, já que Vanessa depois de formada dava aula além do horário limite, mas mesmo assim não queria que a mãe voltasse a trabalhar. Manhã, tarde e noite de quinta-feira. Isso não era um capricho seu, já que quase ninguém mais se importava com a educação: o Estado, a TV… Vanessa se importava, tanto que Jacira tinha certeza da contribuição disso para a sua parada cardíaca e os dias na UTI.
– E também teve um dia de madrugada que a gente ouviu uma gritaria estranha tia… – disse Selton com os olhos focados no celular, o que a fez pensar no seu que estava desligado todos esses dias, e só de pensar no número de notificações, mensagens, atualizações, veio-lhe a vontade de ligar o aparelho.
Sim!- adicionou Roberto – Parecia um pinguço chorando sei lá, ele tava parado aí em frente, ainda tava chacoalhando o portão pelo que parecia – disse essa última parte entregando um pouco a falta de coragem que teve para ir verificar, com os olhos parecendo grandes demais para o rosto fino.
– Ah, deve ser algum doido dando um role – disse Jacira já raspando o restante de sopa com a colher, Roberto soltou um riso bem baixo pelo modo como a tia havia dito. – Alguém chamado Francis apareceu por aí, ou ligou? – perguntou levantando e recolhendo os pratos, Roberto havia comido tudo; Selton deixou uma camada bem fina de sopa.
– Nãão…lembra Selton? – Roberto cutucou o irmão no braço, que olhou feio para ele passando a mão onde o irmão havia espetado com o dedo magro– Nossa idiota!, não!…. Desculpa tia.
– Tudo bem – Jacira disse querendo soar um pouco simpática.
Talvez devesse ir visitar Francis, quem sabe poderia haver encomendas de salgados e isso geraria um auxilio pra semana. Podia haver alguma coisa referente ao seguro de vida de Vanessa também, mas checaria isso depois. Agora iria até a padaria, para conversar com Francis e já poderia até começar hoje a trabalhar nas encomendas. Colocou a louça suja na pia, Selton se ofereceu (intimado discretamente por Roberto, ela percebeu) para lavar as coisas do almoço.
Então foi para o seu quarto, agachou se em frente da cama, para pegar seu único par de tênis no meio de vários sapatos de plataforma pequena que usava na época que trabalhava. O tênis era um modelo de cano curto, amarelo, com o cadarço preto que Vanessa lhe dera já fazia uns três anos, mas que o usou muito pouco. Calçou-o sem meias, enquanto ia em direção ao banheiro. Tirou a piranha vinho com os dentes quebrados e prendeu seus cabelos com um elástico velho e cheio de nós que estava na borda da pia, que tinha sua porcelana verde musgo rachada bem funda em volta do ralo.
Olhando para o espelho, não parecia estar tão “danificada” quanto imaginava. As bolsas de seus olhos não estavam nem um pouco fundas, as maçãs do rosto continuavam altas, e seus lábios finos eram de um rosa claro, que nunca havia percebido ser tão calmo. Sua aparência era tão melhor do que pensava que, por alguns minutos, pensou ter visto Vanessa no reflexo.
“Serão os fragmentos voltando? A alma de Vanessa sugando minha tristeza?”
Jogou água no rosto e, já escovando os dentes, esse pensamento logo se escondeu em sua cabeça.
Escondeu-se, não fugiu.
Francis era o elo que Jacira tinha com sua adolescência, da qual nem ela se lembrava direito. Tinha apenas certeza da idade em que o conheceu: aos quinze anos. Ele ainda estava aprendendo a tocar guitarra, quando foram apresentados por um atual desconhecido de sua memória. Tinham amizade daquelas de apenas se cumprimentarem pelos corredores dos bares em que ele tocava com suas várias bandas, até quando, anos depois, Jacira se mudou para sua casa e Francis já trabalhava na padaria Beliscos, fazendo as contas e cuidando do caixa, ainda quando era de seu pai, Seu Lucas. Naquela época, aquele rapaz alto, magrelo e bem pálido já havia aparecido em algumas reportagens e resenhas especializadas sobre Metalcore e Thrash Metal nas redes sociais sobre sua qualidade musical absurda, perante os músicos que o acompanhavam. Sua banda de maior sucesso foi a Burning Jokes, que Jacira chegou a ver algumas vezes ao vivo, já grávida de Vanessa. Lembrou-se dos longos cabelos negros chacoalhando a cabeça com uma velocidade absurda, enquanto fazia solos de guitarra tão rápidos quanto.
Mas Francis conheceu Laura e acabou abandonando a guitarra, para cuidar dos negócios da padaria e, com isso, construir um futuro que achava que a vida de músico não traria. Só que, poucos anos depois, seu pai faleceu e não conseguiu segurar sozinho as despesas do comércio, ainda que três de seus quatro irmãos venderam suas partes da padaria que fora a herança deixado por Seu Lucas para o outro sócio da Padaria, Marcio. Talvez seus irmãos confiaram em suas habilidades como administrador de um comércio como seus amigos e companheiros musicais acreditavam em seu dom com a guitarra. Marcio acabou vendendo a padaria, e pela (in)experiência que Francis tinha no comércio, fora deixado no cargo que sempre exerceu pelos novos donos, só que os calos nas pontas dos dedos também servem agora para massa de pão.
Dentro da cozinha cor de creme da Beliscos, as paredes tinahm leves manchas de bolor. Dois fornos de alumínio velhos deixavam o lugar bastante quente, Francis batia a massa em cima de uma grande peça de granito, sustentada por duas colunas de concreto compensadas com vários objetos para evitar que a coluna daquele homem enorme se destruísse: eram livros e revistas colocados organizadamente em cima do concreto, até pedaços de madeira e borracha enfiados de qualquer jeito embaixo do granito. E Francis parecia ser uma grande estátua de gesso da qual a tinta descascava em várias partes, devido a farinha espalhada. Tudo em seu rosto era caído: a carne embaixo dos olhos; as bochechas, que tinham seu início escondido pela grande barba grisalha que batia quase até o peito, presa por um grande elástico vermelho. A barba estava toda enfiada para dentro da camisa regata branca, atrás do avental um pouco pequeno para ele. Usava também uma bandana feita com algum pano velho.
– Então Ja, no momento não tem nada de encomenda de salgado, não, viu?…– Francis coçou o nariz com o peito das mãos, que iniciavam tatuagens que iam até o inicio dos braços flácidos . Jacira conseguia ouvir a música tocando dos fones pretos sujos de farinha que ele havia tirado quando entrou na cozinha; algum som com a bateria rápida e que chiava demais – Se você quiser posso te arrumar alguma coisa aqui, sei lá, você ficar no caixa ou fazendo massa.
– Nossa, obrigada, Francis – Jacira estava sentada em uma pilha de bandejas de alumínio, logo à frente dele – acho que vou precisar mesmo. Não peguei o dinheiro dos monitores essa semana, e com tudo isso aí que aconteceu, acabei nem tendo cabeça pra procurar alguma coisa pra compensar, não tô com coragem ainda de mexer com advogado e banco sobre a Vanessinha- Isso, depois de poucos milésimos de segundo, soou tão vazio em sua cabeça.
Francis a olhou como se procurasse algo confortante para falar, mas não achou, apenas fez um bico que subiu um pouco as bochechas caídas.
– È Ja, nem quero imaginar como é perder um filho, só o tumor que o Dieguinho teve que operar quando era pequeno já acabou comigo, e faz tanto tempo, ele nem tinha entrado na escola – Balançou a cabeça como se fizesse aquilo do passado continuar lá no fundo.
“Você teve medo dos fragmentos voltarem” Pensou Jacira. Essa sua teoria que começou com Dionisio estava começando a dar enjoo nela, pois era muito constante, e parecia que todos em sua volta eram feitos de blocos, e pareciam se explodir em vários pedaços.
“Pedaços não, Fragmen… Estilhaços.”
-Olha nem eu que perdi uma sei te dizer como é – Jacira disse dando uma risada forçada.
– Me desculpa eu não quis – Francis dessa vez não tinha palavras. Abaixou a cabeça e a balançou em negativa, agora esticando a massa de pão no granito.
– Eu sei, besta! – Agora sim Jacira deu um sorriso sincero – Então, Francis, eu vou fazer assim… tenho que tomar coragem pra ver as coisas do seguro de vida e do banco, aí, dependendo de como ficar, eu venho falar com você, beleza? – Levantou-se da pilha de bandejas, se apoiando nela, pois o chão era extremamente escorregadio, pela farinha e sujeira acumulada.
– Tá bem, te mando uma mensagem, pode não ser na próxima semana, que eu já tinha combinado com a Matilda pra ficar aqui – Francis limpava as mãos no avental. Jacira passou por ela para entrar na cozinha, rosto redondo, cabelos louros, a mulher estava quase enfiada dentro da tela do celular como Selton.
Os dois se abraçaram, Francis encolheu a barriga para não suja-la de farinha.
Quando estava saindo pela porta, quase escondida pelos sacos de farinha, Francis a lembrou:
– E o Arnaldo, não tá te enchendo não, né? Esses dias atrás tava aqui na padaria e encheu a cara enquanto eu tava lá na frente. Ficou resmungando e chorando aquelas coisas dele, falando que eles terminaram por sua causa. E saiu todo esquisito.
– Por minha causa não!- Jacira disse olhando para Francis, atrás dos sacos de farinha – Por causa dele, aquele escroto. Ele ajudou muito pra estressar a coitada, você sabe.
“Parecia um pinguço chorando sei lá, ele tava parado ai em frente, ainda tava chacoalhando o portão pelo que parecia” Lembrou de Roberto falando.
Jacira subia a rua de sua casa, aquele asfalto gasto e que parecia estar “rasgado” pela aparência dos buracos. O dia já ia dando espaço à noite, naquelas ocasiões em que a passagem de um para a outra se torna peculiar e esquisita (dessa vez era um rosa bem aguado). Era horário de saída da escola e havia um número grande de crianças descendo a rua; todas usando a calça azul escura e a camisa branca, apenas diferente pelas manchas da merenda em posições aleatórias na camisa. Entre as conversas empolgadas das crianças, ouvia-se a água suja descendo pelo meio fio – um ruído quebradiço bem suave.
Pensava em Arnaldo, seu ex genro. O que ele anda fazendo? Pelo que sabia, estava desempregado desde quando ainda estava com Vanessa. Quando o conheceu, sentiu bastante afeto por ele, um rapaz magrelo, branco e de olhos grandes, sempre deixando um bigodinho bem fino. Não se lembra de tê-lo visto sem o boné, que em um primeiro momento achou que fosse encomendado, pelo tamanho de sua cabeça. Considerável parte do afeto que sentia era por ele ser neto do finado Seu Orlando, morto há muitos anos em uma confusão no bairro, quando um policial lhe acertou uma bala de borracha à queima-roupa no olho. Sempre recebeu Arnaldo bem em sua casa, nos primeiros anos de namoro. Pouco conversava com ele, mas parecia-lhe ser uma pessoa gentil; levava e buscava Vanessa de moto da faculdade, todos os dias. Até que em uma ocasião, Vanessa chegou chorando em casa, devido à primeira vez que terminaram. Disse que achou no celular dele umas conversas estranhas de Arnaldo com uma moça e tiveram uma discussão feia, mas após uma semana acabaram voltando. A partir daí Jacira não o via mais do mesmo jeito. Vanessa lhe disse que havia entendido errado a conversa com a moça, que era uma prima segunda Arnaldo, mas para Jacira não era nada disso, fazendo sua relação com a filha ficar instável, ainda com a ida e volta do casal.
Chegando próximo a sua casa que ficava na metade da subida, viu sua vizinha, Dona Augusta, na frente do portão verde, esperando o neto. Estava junto com a vizinha do outro lado da rua, Dona Ana. Pareciam conversar com a mesma velocidade da água corrente do meio fio.
Quando Dona Augusta a viu, veio em sua direção frenética batendo os chinelos e chacoalhando a cabeleira grisalha. Vestia uma camisola longa bege com um blusão preto por cima.
– Ô Jacira, deixa eu te falar – a levou pra onde estava Dona Ana. A mão gelada segurava o pulso, puxando-a como se fosse uma carreta.
Ficou ao lado de Dona Ana, uma senhora morena, baixa e magrinha, que usava uma bandana florida na cabeça, para esconder a calvície causada pela quimioterapia.
– Sabe o Silvinha? – Ela não deu entrada para Jacira responder, tornando a pergunta retórica – O filho da Enésia sabe, então ele começou a andar com companhia errada aí e tá no tráfico, menina, vendendo droga ali na esquina do mercado – Falava com uma voz rouca, puxando os R’s além de balançar a cabeça sem parar, um tique muito irritante, Jacira achava. Lembrava-se de Silvinha, menino magro, de um loiro quase albino, que sempre estava com as bochechas rosadas como se tivesse corrido ou visto algo que o deixasse tímido.
– Sim, coitado do menino, a Vanessa deu aula pra ele ano passado. – Lembrou de Vanessa, durante algum jantar, falar que era um menino aplicado e gentil, mas não tinha apoio em casa, e ela temia acabar tendo que ir para o crime, a fim de conseguir as coisas que almejava. A filha, durante os anos como professora, fez Jacira repensar algumas coisas a respeito da palavra criminalidade.
Dona Augusta ficou em silêncio por um momento, talvez pela palavra “coitado”, mas ignorou e continuou soltando uma enxurrada de nomes – Pois então, o Jader que passa pegando papelão e é casado com a Maria Auxiliadora, comentou que o filho dele mais novo tá também nas droga, e falou que domingo passado foi buscar ele lá na boca de fumo, e viu o Arnaldo saindo de lá na pressa e como o Jader conhecia o Seu Orlando, que Deus o tenha, foi até perguntar pro Silvinha, preocupado se ele tava usando tóxico – Dona Ana apenas balançava a cabeça, em sinal positivo, olhando para Jacira, acompanhando o tique de sua amiga, até ver um menino jogando uma lata de refrigerante no meio fio. Então foi lá e pegou a latinha, chacoalhando para tirar o resto do liquido e a água suja, para depois vender para o ferro velho.
– Aí, ele falou que o Arnaldo foi lá procurar uma arma pra comprar dos traficante. E sabendo que ele vive te xingando por aí, quando tá de fogo, toma cuidado mulher, porque pra ele querer fazer alguma besteira com a cabeça cheia de cachaça é rapidinho. Se eu fosse você ia na policia e dava queixa.
A história passada por tantas pessoas não assustou muito Jacira, pois sua desconfiança de Dona Augusta vinha desde a época em que lhe disse com toda a certeza do mundo que já tinha visto um Lobisomem, quando morava em Chiador, sua cidade natal em Minas Gerais. Mas mesmo assim isso lhe causou um arrepio.
Já em seu quarto, após jantar dois pedaços de pizza de palmito que os sobrinhos haviam pedido, Jacira guardou o par de sapatos amarelos embaixo da cama e, sentada novamente na ponta da cama, pensou na história da arma e Arnaldo bêbado.
Quando Vanessa estava na UTI, Arnaldo chegou um dia totalmente embriagado na recepção do hospital público, com os olhos vermelhos de tanto chorar, gritava que a culpa de tudo aquilo era de Jacira, pois segundo ele “fazia a filha de escrava!, vivia com frescura de crise nervosa, essa velha do caralho!!!” até que foi retirado de lá pela guarda civil.
Jacira sabia de onde vinha essa raiva!. Quando Vanessa tinha dezessete ou dezoito anos, Jacira teve um esgotamento nervoso, e foi parar no hospital, ficando um dia em observação. O médico, tentando explicar para Vanessa o motivo que sua mãe teve o esgotamento, disse que às vezes era causado pelo estresse das atividades do dia a dia, e citou o trabalho como exemplo: naquela época, Jacira trabalhava em dois empregos. O motivo não foi os empregos, pois eles não eram puxados, até achava aquele um dos períodos mais tranquilos da sua época de recepcionista. O problema fora que ficou sabendo que uma antiga amiga, Clarisse, tinha falecido havia pouco tempo e a noticia só chegou semanas após o enterro. Mesmo no dia seguinte, já em casa, explicou o que aconteceu para a filha, mas aquela explicação do médico ficou na cabeça de Vanessa.
Depois disso, fez a mãe sair de um dos empregos e já no ano seguinte conseguiu uma bolsa para a faculdade e logo iniciou a lecionar. Vanessa deve ter contado essa história para Arnaldo, que a guardou lá no fundo de sua memória, vindo à tona depois que Vanessa teve o ataque cardíaco, pois no período, após outras das várias discussões que tiveram, os dois estavam se reconciliando novamente. Mas para Jacira, Vanessa era daquele modo, pensando naquele momento, talvez seu esgotamento nervoso tenha sido um daqueles empurrões que a vida causa e com isso a filha começou sua rotina. Só que para ela, a partir das idas e vindas dos dois, Arnaldo se tornou o maior motivo de seu flagelo e, com certeza, gerava medo em Vanessa, e sempre desconfiou que houvesse ocasiões em que ele a agrediu. Quem sabe o que ele dizia para tentar retornar? Que tipo de ameaça aquele desgraçado fazia?
Deitou-se na cama e não sentiu um peso tão grande em seu corpo, como nos dias anteriores, pois não foi afundada para dentro do colchão. O dia havia sido longo, mas gratificante, teve um pouco de medo em acordar e ver que ficou novamente presa numa rotina anestesiada que durou semanas. Talvez aquele sonho, do qual já mal se recordava, fosse um sinal de como ficaria: imóvel até ser tomada pela consistência cinza.
Então já fez planos para o outro dia; iria atrás de resolver os assuntos do seguro de vida da filha, já que isso, com certeza, ocupar-lhe-ia o dia inteiro; mas e o próximo dia?
Isso pensaria na noite de amanhã, deitada do mesmo jeito, após o dia passar rapidamente.
“Sabe, talvez os fragmentos de Vanessa estejam atormentando Arnaldo também.”
“De novo esse papo Jacira?”
Acordou cedo, quatro e meia, normalmente, sem montes cinzas de fungos na cama, o que a deixou mais tranquila, o peso não havia voltado. Tomou banho e se arrumou, usou uma camisa salmão, sua calça jeans azul escura e um sapato preto de salto baixo. Enquanto tomava um copo de leito com chocolate, pensava em qual ônibus pegar para ir à Associação de Professores, onde se informaria melhor sobre o seguro de vida.
Em frente ao espelho, após escovar os dentes e pentear os cabelos que decidiu deixar soltos, encarou-o. Vanessa não surgiu dessa vez, apenas ela, com o rosto um pouco inchado de sono.
Antes de sair, pegou uma blusa de algodão aberta, cor de vinho, pois sentiu um friozinho, quando passara pela sala. Olhou para o quarto de Vanesa e a luz estava apagada; Selton e Roberto deviam ter acabado de ir dormir. Bateu na porta de plástico duas e vezes e disse “bom dia meninos!”, mas não ouviu resposta. Ligou seu celular, ignorando todas as notificações e mensagens, que fizeram o aparelho vibrar durante quase um minuto. Pegou um fone amarelo que achou ao lado da televisão e colocou seu misto de músicas no player do celular.
Saindo de casa, a encarou por um instante; o portão de ferro baixo precisava de outra mão de tinta verde, a janela grande da sala que dava para a rua continha alguns vidros rachados, assim como a parede cor de creme precisava de um reboque novo. Essas reformas já podiam ser planos para os próximos dias; junto com os sobrinhos, podia dar uma melhorada em tudo.
Começou a subir a rua de casa, pois o ponto era a apenas alguns metros, e pode ver algumas pessoas já esperando o início de movimentação dos ônibus. Desviando da calçada irregular e com alguns pedaços de grama que escapavam pelo cimento, ouviu um barulho parecido com uma palma, mas não vinha da música que estava ouvindo, um Emocore da época da juventude, que não se lembrava do nome do artista. Viu que as pessoas do ponto começaram a correr, e sentiu uma dor no ombro esquerdo. Quando colocou a mão, o sangue quente vazava por um orifício que só descobriu quando a dor se intensificou, fazendo sua forma aparecer. Olhou sobre o ombro e viu alguém atrás dela. Virou-se rapidamente e acabando caindo de bunda no chão. Havia um moço gordo, vestindo um blusão azul, com a touca cobrindo o rosto; estava parado com um revólver na mão. Ela não teve raciocínio no momento para distinguir se era na direita ou na esquerda que a arma estava. Na hora em que caiu, o fone desprendeu do celular, então ouviu um homem que vinha vindo atrás do rapaz gritando. Sua visão estava um pouco embaçada pelas lágrimas atrasadas, que chegavam agora como resultado dessa situação repentina.
-… ralho Rafa, era só pra dar um susto na velha!! – Reconheceu a voz de Arnaldo, que tomou a arma da mão do rapaz- Porra!, e agora, pega ela aí que eu vou trazer o carro!.
Começou a se arrastar para trás, o medo lhe atacou de uma maneira que nunca havia sentido, não por ser mais intenso, mas era de um vazio estranho, como se já tivesse tudo acabado. A dor no ombro começou a ser muito forte, assim como uma vertigem não causada pela dor, e sim pelo fato de ter levado um tiro.
O rapaz a pegou por debaixo das axilas com esforço e depois a abraçou, olhando para trás e fazendo a papada flatulenta escapar de dentro da touca da blusa. Jacira conseguia sentir a respiração ofegante dele, o cheiro de álcool estava bastante forte. Era Rafael, amigo de Arnaldo, assimilando o “Rafa” apenas agora.
– Vem logo!- gritou para o carro que vinha cantando pneu atrás dele e que parou com uma freada seca. Rafael a segurou com apenas um braço, enquanto abria a porta de trás, depois a colocou no banco de trás, entrando em seguida. Jacira não conseguia reagir, a cabeça era um amontoado de palavras que remetiam à morte e ao medo, se misturando em um redemoinho que paralisava suas ações.
O carro fez o contorno e desceu a rua freneticamente.
– Faz pressão no ferimento, vai! – Arnaldo gritou do banco do motorista. Jacira estava deitada de bruços, com a cara encostada no banco cinza, sentindo o cheiro do assento, um odor de bunda suja, vindo pelo tanto de pessoas que sentaram ali. Rafael tirou sua blusa vinho, e a colocou em cima do ferimento, fazendo uma força da qual pensou sentir a blusa entrar dentro de seu ombro.
– Caralho mano – Rafael falava chorando – O que que a gente vai fazer?!
– Não sei, não sei! – Arnaldo gritou – Hospital não da, essa porra conhece a gente!
Jacira começou a pensar um pouco mais organizada, apesar do medo, havia se acostumado com a dor. Enquanto os dois gritavam o que iriam fazer com ela, começou a mexer a mão direita que estava encostada no chão atrás do banco do motorista, caçando alguma coisa… Qualquer objeto que pudesse segurar. O medo não era mais tão vazio, mas havia um desespero que a fazia inquieta.
Sentiu alguns pacotes e latas vazias, até tatear algo pontudo e frio, desceu até a base e segurou com toda a força que lhe restava. Contou no redemoinho agora fraco de palavras, um, dois…
Jogou o braço com toda a força na lhe acertando o objeto no rosto de Rafael, que deu um grito, fazendo Arnaldo olhar para trás.
– Que foi…
Sentiu um impacto muito forte a jogar pra dentro do vão entre os bancos, onde havia pegado o objeto. Caiu em cima do braço direito, sentiu uma chuva de cacos de vidro lhe salpicando o rosto, que o protegeu com a mão esquerda, toda encharcada e enrugada pelo sangue.
Havia apagado por uns segundos, quando abriu os olhos, viu um par de pernas saindo pela parte de cima do banco, e uma nuvem de fumaça adentrando o teto estofado. Forçou as pernas ao mesmo tempo que a mão esquerda, conseguindo se sentar no banco.
As pernas eram de Rafael, que estava atravessado pelo vidro da frente. Abriu a porta da esquerda, pois a fumaça estava começando a lhe sufocar. Caiu do chão quando saiu do carro, fazendo esforço para se levantar, apoiando na lateral do carro. Vindo para o meio da rua, percebeu que estava próxima à padaria Beliscos, alguns metros atrás dela.
Arnaldo estava a sua frente, caído de bruços, em volta de uma poça de sangue no asfalto. Seu carro havia batido em um poste, quando se assustou com o grito de Rafael. Este estava com a cabeça enfada até a metade para fora, a carne viva estava quase fundida com o restante do vidro quebradiço e encharcado de sangue. Havia um objeto enfiado nele. Viu o ferro de solda que ela lhe cravara, fazendo-o gritar de desespero. O sangue descia pelo capô totalmente destruído, pingando no chão junto com o óleo do carro.
Jacira havia, no mínimo, deslocado o braço direito; sentia um dor parecida com a câimbra se intensificando. Não havia ninguém em sua volta, mas percebeu que algumas luzes começaram a iluminar as casas ao redor do acidente.
Sentou-se na calçada, em frente ao acidente. O dia estava chegando! Mirou Arnaldo, sua blusa branca totalmente encharcada de sangue, o boné preto de aba reta ainda em sua cabeça grande. Ainda se mexia em espasmo, a boca aberta e os olhos grandes e arregalados, olhando para ela.
Zonza pela perda de sangue, também o encarava e o peso das semanas recentes voltou. Talvez a ligação com o vazio de se perder algo rondava novamente.
Os dois estavam naquela situação pelo tempo que se relacionaram com Vanessa. Cada um via o outro por meio de seus olhos que já não estavam presentes no mundo, que partiram pelo estresse de seu trabalho junto a alguma outra coisa de suas relações com ela, sendo o motivo de tudo isso, a dualidade de um mesmo reflexo, como a semelhança entre Selton e Roberto. Lembrou novamente da ideia dos fragmentos, talvez cada pedaço vivido com Vanessa por cada um se diluiu a esse evento.
E agora era Jacira ou Arnaldo, ou talvez ambos que iriam embora também.
A quem será que seus fragmentos cobrariam o tempo vivido?
Mauá, 2015.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.