Os jesuítas e o epistemicídio negro no Brasil – Sueli Carneiro

A Companhia de Jesus aplicou no Brasil um humanismo restrito aos sujeitos legitimados enquanto humanos, detentores de alma. Um humanismo restrito àqueles que não eram negros. Uma bondade cristã limitada às determinações históricas e afundada no racismo próprio das nações colonizadoras.

Epistemicídio é a destruição das formas de conhecimento que um povo desenvolve através de sua cultura. No Brasil, o epistemicídio negro aconteceu de uma maneira diferente. Não foi através da conquista, que promoveu um epistemicídio e genocídio indígena, mas na negação de seu status de sujeito.

O epistemicídio, como conceituado por Boaventura de Sousa Santos,

es el proceso político-cultural a través del cual se mata o destruye el conocimiento producido por grupos sociales subordinados, como vía para mantener o profundizar esa subordinación. Históricamente, el genocidio ha estado con frecuencia asociado al epistemicidio. Por ejemplo, en la expansión europea el epistemicidio (destrucción del conocimiento indígena) fue necesario para “justificar” el genocidio del que fueron víctimas los indígenas (SANTOS, 1998, p. 208).

No contexto da dominação étnico/racial, Sueli Carneiro entende o epistemicídio como aquilo que

se constituiu e se constitui num dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos dominados e, consequentemente, de seus membros enquanto sujeitos de conhecimento (CARNEIRO, 2005, p.96).

Quando praticado no Brasil, no contexto de escravização, em vez de genocidar uma suposta população negra nativa, o mote epistemicída foi a exclusão do negro enquanto sujeito praticado por meio da “supressão do conhecimento nos processos de controle, censura e condenação da disseminação de idéias empreendido pela Igreja Católica durante o vasto período da história do Brasil com desdobramentos específicos sobre a população negra” (CARNEIRO, 2005, p. 102).

Isso porque a libertação do negros ocorreu enquanto subproduto político e econômico, mas não como parte de uma mudança epistêmica na concepção de sujeito, nem como uma nova forma de conceber o sujeito político. Após a abolição, os corpos negros eram a manifestação de uma contradição: apesar de libertos, eram indesejáveis enquanto cidadãos. Apesar de sujeitos livres, não eram sujeitos legítimos da liberdade. Para se tornarem legítimos da liberdade, foi necessário a aplicação de procedimentos de contenção, exclusão, assimilação na relação dos negros com os processos educacionais” (CARNEIRO, 2005, p. 102). A cor negra na pele precisava ser adaptada a um mundo branco, sendo assim, precisava ser desmoralizada em sua negritude para que, assim, a própria característica negra pudesse ser conformada e construída pelos saberes brancos.

O princípio do epistemicídio negro a partir da Igreja Católica acontece com a Companhia de Jesus e o jesuitismo que, em combate à Reforma Protestante, estabeleceu uma forma de conduta baseada no rigor da vida militar e da vida religiosa.

Os jesuítas, apesar de terem uma abordagem humanista e compreenderem os nativos como sujeitos livres, eram complacentes com a escravização negra: de um modo paternalista, foi confiada a eles a proteção à liberdade dos indígenas por meio de leis canônicas e civis. Já os negros que vinham da África não eram livres, portanto, não havia necessidade de confiar a proteção de sua liberdade aos agentes religiosos. Como a escravatura era uma instituição vigente no continente africano, este era o suposto fato histórico que confirmava uma suposta natureza escrava dos corpos de pele negra.

A Igreja Católica tolerava a escravatura e as leis civis eram responsável por regulamentá-la, ou seja, a escravatura não era um fenômeno anormal, um erro ou um subproduto. Era normalizado pelas leis, confirmado historicamente e justificado ontologicamente. As leis da época favoreciam, pois regulamentavam, a exploração da escravatura pelos países colonizadores que, sem exceção, se utilizavam deste expediente. Nem mesmo as crianças negras escapavam desta prisão ontológica, histórica e também política:

Uma bula papal encerra a possível questão se a criança negra deveria ir à escola ao afirmar que os negros não têm alma. Tendo em vista os votos indissolúveis estabelecidos entre a Companhia de Jesus e o Papa, sobretudo no que tange a um voto extraordinário de obediência, a educação de crianças negras foi item que ficou fora de questão. A ausência de alma, no lugar do que posteriormente seria o lugar da razão, no contexto da laicização do Estado moderno, será o primeiro argumento para afirmar à não-educabilidade dos negros. Será, então, pelo estabelecimento das idéias e discursos fundadores acerca da educabilidade dos afrodescendentes, que se articulará o epistemicídio ao dispositivo de racialidade (CARNEIRO, 2005, p. 104).

A ausência da alma era a resolução religiosa que vaticinava a escravatura. Tese esta que foi deslizada epistemologicamente por uma suposta inferioridade intelectual negra no auge do racismo científico. A ausência da alma, como a citação sugere, era relativo à ausência da razão no mundo laicizado. Não ter alma é o mesmo que não ser gente, que se igualar aos animais. Negros não devem ser educados porque não têm alma (ou, posteriormente, razão), o que não significa que não possuem a capacidade de aprender. Não ter alma, reafirmo, é relativo a não pertencer ao mesmo conjunto que ontologicamente o branco está inserido.

Este princípio religioso de dominação epistêmica sobre os negros se localiza no próprio início da formação brasileira enquanto nação, mesmo ainda sob o domínio português. A história brasileira foi marcada, portanto, por uma base escravocrata.

O projeto de dominação que se explicita de maneira extrema sobre os afrodescendentes é filho natural do projeto de dominação do Brasil, um sistema complexo de estruturação de diferentes níveis de poder e privilégios (CARNEIRO, 2005, p. 104).

O início da exclusão de corpos negros do status de sujeitos do conhecimento ou de conhecimento se localiza no próprio início do Brasil enquanto território com determinada atividade econômica, determinada esfera política e religiosa.

É importante ressaltar como o saber que era ministrado pelos jesuítas foi qualificado como portador de um conteúdo profundamente humanista por vários autores, como consenso. A bula papal que decretou que o negro não tinha alma é o que vai permitir a constituição de um tipo sui generis de humanismo, o humanismo que se constitui sem negro: porque não tem alma, não é humano, sua ausência não impede esse tipo de “humanismo.” (CARNEIRO, 2005, p. 105).

Um humanismo restrito aos sujeitos legitimados enquanto humanos, detentores de alma. Um humanismo restrito àqueles que não eram negros. Uma bondade cristã limitada às determinações históricas e afundada no racismo próprio das nações colonizadoras.

Referências

CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo – USP. Tese de Doutorado, 2005.

SANTOS, B. S. La globalización del derecho. Los nuevos caminos de la reulación y la emancipación. 1ª Ed. Universidad Nacional de Colombia – Faculdad de Derecho, Ciencias Políticas y Sociales, Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos – ILSA, 1998.

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