Introdução
Nesta semana, Baby do Brasil foi filmada em um culto na balada D-Edge, na Barra Funda em São Paulo, quando pedia para que vítimas de abuso sexual perdoassem seus agressores. A fala da ex-cantora dos Novos Baianos:
Perdoa tudo o que tiver no seu coração nesse lugar, perdoa. Se teve abuso sexual, perdoa. Se foi na família, perdoa. Se é briga de família, mãe, filho, pai, perdoa”.
Aqui, o vídeo da pregação:
“Se teve Abu50 s3xual? Perdoa!
Se foi da família? Perdoa!”DO BRASIL, Baby (2025) 🤢 pic.twitter.com/GYW9oNrVCW
— COBAT (@artcobat) March 11, 2025
Logo em seguida, ao ser entrevistado, o dono da balada que acolheu o culto em que Baby foi personagem principal devido sua fala declarou que o sentido da palavra perdão seria outro:
“Acho que ela foi infeliz. Não tinha nada que falar o que ela falou. Eu conheço a Baby, sou amigo dela. Não que a Baby ache que a pessoa não tem que pagar por isso, que não tem que denunciar. A pessoa tem que denunciar […] O que eu acho que ela quis dizer é para a pessoa não guardar um trauma nela, para ela perdoar, aliviar esse trauma. Mas não que a justiça não tem que ser feita”, explicou Ratier [dono da balada] ao g1.
A palavra perdão, segundo o dicionário Michaelis e no interior do contexto do enunciado de Baby do Brasil, seria “remissão de uma culpa, dívida ou pena”. O perdão, assim, é uma relação entre dois sujeitos: aquele que perdoa e aquele que é perdoado.
Nesta relação, o perdoado é retirado de um espaço de culpa, dívida ou pena. É inserido, portanto, num espaço neutro, destituído de qualquer consequência do ato que gera uma culpa, uma dívida ou uma pena. A declaração de Ratier promove uma mudança em que o perdão não teria ligação com aparente com o outro, com o sujeito que o recebe, mas seria intimamente ligado àquele que o fornece.
Trata-se, assim, de uma perspectiva do perdão encerrada no sujeito que perdoa. Mas é necessário perguntar: se é encerrada no sujeito que perdoa, então não é um perdão. Se não é um perdão, então é uma superação. Se é uma superação, porque é nomeada enquanto perdão? É necessário, de alguma forma, a presença do outro neste processo de superação? O outro deve existir para que seja perdoado, ou o perdão é o tipo de processo que se realiza internamente?
É importante que essas perguntas sejam feitas porque, caso a presença do outro seja necessária, a consequência do ensimesmamento do perdão no sujeito que perdoa é a liberação do agressor das consequências de sua agressão. Ou seja, a mudança de foco do perdão pode funcionar como uma armadilha: em vez de olharmos para a relação que pode ou não haver perdão, olhamos somente para os sujeitos isolados, que podem ou não fornecer o perdão, encerramento no próprio sujeito um suposto processo de perdão e, acima de tudo, a responsabilidade de perdoar.
A ajuda inofensiva: HELP
O Projeto HELP se classifica como “um projeto laico que tem apoio do FJU (Força Jovem Universal), que têm a finalidade de ajudar jovens que sofrem com depressão, ansiedade, automutilação, desejo de suicídio, complexos, traumas, bullying dentre outros”. É laico e, ao mesmo tempo, tem apoio de um grupo ligado à Igreja Universal do Reino de Deus.
A página do instagram do projeto tem mais de 350 mil seguidores:
No blog deste projeto, é possível identificar algumas postagens sobre a necessidade do perdão.
Primeiramente, o post “Como perdoar meu agressor?“, que eu reproduzo na íntegra:
Perdoar o agressor pode ser um processo desafiador, mas também libertador. É importante lembrar que perdoar não significa esquecer o que aconteceu ou justificar a violência sofrida. O perdão muitas vezes é mais sobre libertar-se do peso do ódio e da raiva, do que sobre absolver o agressor.
Ao perdoar, você não está dizendo que o que aconteceu foi certo, mas sim que está escolhendo seguir em frente e não permitir que a negatividade do passado afete seu presente e seu futuro. É um ato de autocompaixão e autocuidado, que pode trazer paz interior e alívio.
Caso sinta dificuldade em perdoar, é válido buscar ajuda para auxiliá-lo nesse processo.
Vale ressaltar que trabalhar as emoções envolvidas, não irá te ajudar. O que resolve as emoçoes é o uso da razão e o perdão está diretamente ligado a isso. Você não irá sentir vontade de perdoar, mas você pode decidir ! Nada e nem niguém toca nesse poder que cada ser humano tem.
Lembre-se que o perdão é uma jornada individual, quanto mais rápido você perdoa, mais rápido você pode prosseguir.
E lembre-se, você merece viver em paz consigo mesmo.
Trata-se de um texto que representa uma formulação do enunciado de Reitier: o perdão enquanto salvação, enquanto aquilo que parece se encerrar no sujeito. Cabe dizer que, neste texto, o perdão é aquilo que inclusive pede ajuda profissional, ou seja, não é aceitável simplesmente não perdoar: o perdão deve vir mesmo que sob ajuda profissional.
Por fim, trabalhar as emoções que envolvem a ausência ou presença da vontade de perdoar não é suficiente, pois é necessário que perdão seja um ato racional, mesmo que contrarie a emoção vivida.
Numa outra postagem, “O perdão não surge do coração, ele nasce da razão e da decisão. Decida perdoar“, é notório a voz ativa no fim do título. Trata-se de um chamado ao perdão. Reproduzo na íntegra:
Sem perdão, vivemos em um ciclo de violência, machucando e sendo machucados, e não há batalha mais inútil do que se apegar às próprias razões para nutrir ressentimentos.
Tome a decisão de quebrar o ciclo e jogue todas esses sentimentos fora.
Aprenda a ter um coração generoso, capaz de amar e compreender o outro como alguém que
cometerá erros e irá desapontar você. Tenha a consciência que niguém é perfeito.
Não se deixe levar pelas circunstâncias; seu coração continuará clamando por mágoa,perpetuando esse sentimento ao longo da vida. Decida ouvir a sua razão e certamente compreenderá os motivos para perdoar.
O perdão não surge do coração, ele nasce da razão e da decisão. DECIDA PERDOAR.
Aqui, em conjunto com a ordem que preconiza o perdão, há a amenização do ato a ser perdoado por ter sido feito por uma pessoa que “cometerá erros e irá desapontar você”. Perdoar é uma característica daquele que tem “coração generoso, capaz de amar e compreender…”.
Novamente, o perdão é encerrado no próprio sujeito que deve perdoar. Sim, o perdão é um dever daquele que pretende provar ter um coração generoso capaz de amar. E, pelo menos indiretamente, aparece a figura do outro a ser perdoado. Ou seja, a figura do outro a ser perdoado existe! O perdão não se encerra internamente, mas é necessário a figura deste outro que deverá ser perdoado.
Por fim, na postagem “Perdoar é a chave“, percebemos a responsabilidade individual sobre o próprio destino vinculada ao ato de perdoar. Reproduzo, também, na íntegra:
Por que precisamos de uma chave?
Sempre que queremos abrir a porta que nos leva a um determinado ambiente. Quando se trata de superação, imagine uma porta que conduz a um lugar de paz, força, felicidade, visão de futuro, realização e descobertas positivas.
Qual seria a chave para abrir essa porta que nos leva a tudo isso? Uma pergunta interessante, não acha?
Algumas pessoas estão presas em um passado de dor, sofrimento, perdas e humilhação, o que as faz guardar ressentimentos e as mantém em um ambiente frio, escuro e doloroso.
No entanto, queremos dizer que a chave para sair desse lugar está em suas mãos, e essa chave se chama perdão.
A “porta da superação” está à sua frente, acredite, só é preciso coragem para usar essa chave e permitir-se perdoar.
Não é fácil, é doloroso, desafiador e em muitos casos, tão doloroso quanto um parto, mas é extremamente necessário para seguir em frente em direção a um futuro promissor.
Acredite, a chave funciona e está em suas mãos. É sua, use-a, e descubra o que está do outro lado da “porta da superação”.
Vai valer a pena, acredite. Você se tornará uma pessoa muito melhor, sem as mágoas e ressentimentos que carrega. Nós já passamos por isso e sabemos o quanto tudo mudou quando decidimos perdoar.
Difícil , mas você consegue !
Perdoar é a chave 🔑
Conte com o Help, estamos aqui para ajudar sem julgamentos. Se precisar de ajuda, conte conosco.
Entendo que enunciado é uma fórmula geral de construção de significado enquanto formulação são as variações concretas que essa fórmula geral pode distribuir integralmente ou parcialmente no intradiscurso. As formulações fazem parte do que Foucault denomina como espaço colateral de um enunciado, ou seja, margens em que o enunciado está diretamente relacionado e que, mesmo não sendo repetições do enunciado, são construções que dependem dele para sua existência. Digo isso apoiado em Jean-Jacques Courtine.
Desta forma, acredito ser interesse definir o enunciado que está na base das formulações dos três textos acima como: “Perdoe para sua própria salvação. Perdoe para provar sua bondade. Perdoe pois só você pode perdoar”.
O perdão é um fardo da vítima que, inclusive, a coloca no lugar de protagonista de uma nova dinâmica: agora, a vítima deve provar seu valor. O mesmo seria possível de se entender a partir da fala de Baby do Brasil, quando o perdão é uma responsabilidade da vítima para sua própria salvação e, indiretamente, para a harmonia da instituição familiar.
Inclusive, esta é uma harmonia desejada através do perdão.
Constelação familiar e o perdão como dispositivo de harmonia familiar
Em 2021, o UOL publicou uma matéria sobre Raquel, uma mulher de 23 anos que foi agredido por seu companheiro e, na vara da família de sua cidade, foi submetida a uma sessão de constelação familiar em que lhe foi imposta a necessidade de perdoar seu agressor.
“Foram conduzindo a situação, e eu sem entender o que estava acontecendo. Disseram que a gente precisava resolver tudo pelo bem do nosso filho. Concordei. Mas aí me mandaram perdoar meu agressor e até pedir perdão a ele para que as coisas fluíssem melhor”, conta. “Achei que fosse ser acolhida, mas aconteceu o contrário. Fiquei como a ressentida. Se antes disso ele tinha medo de que eu o denunciasse, depois dessa situação, o medo passou. Ele sente que pode continuar me ofendendo, que é o que tem feito nas redes sociais.”
Em matéria de 2023, novamente a constelação familiar aparece como técnica de culpabilização da vítima. Neste caso, Pamela denunciou seu marido por abusar de sua filha.
Eu não sabia o que era aquilo, foi uma determinação judicial, ninguém me disse que eu podia não ir. O cara que conduzia disse que achava um desafio trabalhar com constelação de mães que acusam pais de abuso, que elas deveriam ser presas por deixar as crianças vulneráveis.
Por fim, lhe foi indicado pedir perdão de joelhos ao seu marido.
No site do Instituto Visão Sistêmica, há uma descrição do perdão na constelação familiar. Segundo Almir Nahas:
Na minha experiência como terapeuta, trabalhando há anos com Constelações, vivenciei muitos cenários em que o perdão, de fato,. É o cominho para a libertação, que permite voltar a fluir com leveza. Mas, para funcionar, para que o perdão conduza os envolvidos pelo caminho da paz, precisa ser vivido com humildade. O perdão humilde coloca vítimas e algozes lado a lado, iguais, ambos libertos. Não reinvindica, não exige, não acusa e não se impõe. O perdão humilde chega de mansinho e dissolve a mágoa, a raiva, a necessidade de vingança. Se errar é indiscutivelmente humano, o perdão, se humilde, é realmente divino, pois traz uma paz que não chega apenas para a vítima, mas abraça a todos os envolvidos.
Muitos profissionais que utilizam constelação familiar afirmam que este ato do perdão não deve ser conduzido desta maneira, culpabilizando a vítima ou ignorando crimes cometidos pelo agressor, no entanto, é necessário explicitar que tal prática terapêutica, apesar de ser aceita no Sistema Único de Saúde, é largamente criticada por ser reprodutora de padrões conservadores de família e por forçar uma integração familiar muitas vezes só possível quando há submissão dos filhos ou da esposa. Além, evidentemente, por ter uma base epistemológica distante das discussões psicológicas contemporâneas (e por ter sido criada por um ex-combatente nazista).
Nela, a fórmula do perdão que contemporiza a violência no interior da família em prol da harmonia familiar é retomada em seus casos práticos no Brasil. E esta harmonia só pode acontece através do perdão.
Há uma manutenção da regra vista nos casos anteriores, pois o perdão ainda é um fator de resolução, ainda é um elemento que emerge quando o problema se vê superado. Para além disso, ele aparece como responsabilidade da vítima, que precisa se dispor a perdoar para que salve sua família e a si própria enquanto parte da família.
Decida perdoar!
O perdão está no miolo do cristianismo, é parte integrante de uma vida em que a vingança é esquecida em nome do reconhecido da falha humana. Ao mesmo tempo, é castrador da potencialidade de uma revolta, de uma indignação e da possibilidade da resolução de um problema social por vidas políticas. No limite, o perdão cristão encerra a situação entre os participantes e suas essência errantes.
Evidentemente, há situações concretas em que o perdão é muito bem aceito, mas este texto não se refere a estas situações. Ele é uma crítica ao perdão como ferramenta de reinclusão da vítima numa dinâmica de violência que ela está em processo de se retirar.
Um reinclusão que acontece sob o signo da responsabilidade individual pela própria salvação e pela salvação da família.
“Perdoe para sua própria salvação. Perdoe para provar sua bondade. Perdoe pois só você pode perdoar” e, somado a isso, “perdoe para manter a harmonia entre aqueles que lhe cercam, pois você é a responsável por isso”.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.