Dois homens, um adulto de 43 anos e um idoso com seus 76, compõem Periscópio, de Kiko Goifman, longa de 2013 que só passou para o circuito comercial a partir desta quinta-feira (27). Não se sabe o motivo da demora, mas nos primeiros minutos da obra já é possível entender que não será fácil sua digestão.
Élvio (João Miguel), o personagem mais jovem, parece ser um enfermeiro/cuidador de Eric (Jean-Claude Bernardet), possível médico que perdeu grande parte da visão – a vida de nenhum dos dois é explicada ao longo da história. Ambos vivem em um apartamento mofado e são mutuamente dependentes, mas essa ligação não os impede de discutirem, perderem a paciência e iniciarem uma relação destrutiva.
Ambos são irônicos e raivosos um com o outro, eles não se gostam e não fazem questão de atenuar o ódio: dão vazão total para suas raivas, até que Élvio, em um desabafo para Eric, lhe diz que há um “monstro” nascendo dentro dele. Élvio não aguentava ter que servir a um velho arrogante (chamado ironicamente de “lorde” por ele) e pretendia matar Eric.
“Élvio, você é minha morte?” – “Não, Eric, VOCÊ é minha morte”.
Eis que um periscópio brota no chão da sala e a relação de ambos muda completamente. Começam a se dar bem, a festejar e vida, a viver uma boa relação. O periscópio, chamado de “coisa” (e troço) é quase como um ente com vida. É um interlocutor. Ao mesmo tempo que reflete os dois, ele também conversa com os personagens.
A crítica às redes sociais
Em matéria de Guilherme Genestreti na Folha, Goifman relatou que Periscópio trata da “ampliação dos dispositivos do olhar […] Os personagens creem que ganham vida quando observados. É o que vivemos hoje com as redes sociais”.
É por isso que a vida de ambos passa a ser feliz e lúdica após a emergência do periscópio. O olhar do outro retira os personagens da relação entre eles, da vida já cansada e odiosa, e os coloca em relação com mais um elemento. Desta forma, novas relações são firmadas e novas regras de socialização são instituídas. Um sistema é aquilo que modifica o todo quando um elemento é alterado: o microssistema formado por Élvio e Eric é alterado com a entrada do outro, da coisa.
O periscópio é um ser que assiste a vida de Eric e Élvio, por isso, eles não podem viver mal. Não se pode passar vergonha na frente das visitas.
A divisão topográfica do apartamento que dá espaço ao filme é clara: a sala de estar é o local da felicidade, enquanto os quartos representam os locais da dúvida e da angústia. É nos quartos que Élvio conspira contra o periscópio, é lá que Eric se pergunta se o periscópio anda pela casa enquanto dormem.
Slavoj Zizek, ao comentar sobre os reality shows, indica que em nenhum deles é possível ver o comportamento natural das pessoas, já que a presença da câmera já as transforma em atores. Em matéria do Zero Hora, Beth Saad explica que “quando a pessoa vai para a rede, transforma-se em um personagem, com conotação positiva. O Facebook tem ferramentas que estimulam a revelar o estado atual, então o usuário acaba delirando. Como os amigos só põem coisas bonitas, a pessoa vai botar também, para ser bem avaliada e curtida. Faz parte da natureza humana essa necessidade de reconhecimento, mas cria-se um ambiente que não é real”.
Ao ver diversos perfis de pessoas de sucesso, felizes e realizadas, a única opção é também entrar neste caminho. A inveja passa a ser uma moeda corrente da rede social, explica Saad.
Michel Foucault e o panóptico
É claro que, em Periscópio, não há o outro para comparação. Não há com quem comparar a própria vida, então, a analogia com as redes sociais proposta por Goifman perde um pouco seu sentido; no entanto, ainda pode-se manter a relação do olhar que modifica o vigiado.
Em Vigiar e Punir, Michel Foucault diz que o panóptico, estrutura arquitetônica pensada por Jeremy Bentham no século XVIII, é o modelo de tecnologia do poder das sociedades disciplinares. Ele individualiza e impõe vigilância contínua aos vigiados, ao mesmo tempo em que esconde o vigilante: como ele está escondido, não é possível saber ao certo se há ou não um vigilante de prontidão, desta forma, os vigiados se comportam adequadamente o tempo todo. O poder se inscreve nos sujeitos.
Eu acredito que, para além da analogia com as redes sociais, o filme se relaciona mais com o panóptico. Segundo Bauman, em Globalização: Consequências Humanas, o Facebook é classificado dentro do modelo de tecnologia do poder sinóptico. O sinóptico, ao contrário do panóptico, não individualiza a partir do isolamento físico, não coage, ele seduz. É o próprio sujeito que dá as informações preteridas na tecnologia sinóptica.
No entanto, Élvio nem Eric dão informações para controle ao periscópio. O periscópio se inscreve neles de maneira que, mesmo sem saber se ele [a coisa] está feliz ou triste, se está assistindo ou não, ambos se comportam como pessoas felizes e satisfeitas. O poder está inscrito em ambos. Eles estão isolados fisicamente do restante do mundo, estão presos no mundo do apartamento mofado. São objetos do olhar do outro.
Desta forma, não é o modelo das redes sociais que faz do filme uma crítica, mas sim o modelo dos programas de reality show visto de dentro. Isso é importante, pois quando visto de dentro, os participantes são indivíduos que precisam se mostrar para ganhar um prêmio: são coagidos a obedecer as normas do local para garantir a premiação. Quando visto do lado de fora, os espectadores são seduzidos para dar dinheiro e ibope (informações de localização do público, frequência de participação, portanto).
Periscópio é – esta é minha hipótese – um rascunho do comportamento sob o olhar alheio.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.