Por que sentamos em fileiras? Por Michel Foucault – DROPS #10

FOUCAULT, Michel. As malhas do poder. Barbárie, nr. 5, pp. 34-42, verão de 1982.

Temos o hábito — e aí mais uma vez conforme o espírito de um marxismo um tanto primário – de dizer que a grande invenção, todo mundo sabe disso, foi a máquina a vapor, ou então, são invenções desse tipo. É verdade, isso foi muito importante mas houve toda uma séria de outras invenções tecnológicas, tão importantes quanto esta e que foram em última instância condição de funcionamento das outras. Assim foi com a tecnologia política; houve toda uma invenção ao nível das formas de poder ao longo dos séculos XVII e XVIII. Portanto é necessário fazer não somente a história das técnicas industriais mas também das técnicas políticas, e eu creio que podemos agrupar em dois grandes capítulos as invenções de tecnologia política, as quais devemos creditar sobretudo aos séculos XVII e XVIII. Eu as agruparia em dois capítulos porque me parece que elas se desenvolveram em duas direções diferentes: de um lado há esta tecnologia que eu chamaria de disciplina. Disciplina é, no fundo, o mecanismo de poder pelo qual chegamos a controlar no corpo social até os elementos mais tênues pelos quais chegamos a atingir os próprio átomos sociais, isto é, os indivíduos. Técnicos de individualização do poder. Como vigiar alguém, como controlar sua conduta, seu comportamento, suas aptidões, como intensificar seu rendimento, como multiplicar suas capacidades, como colocá-lo no ponto em que ele será mas útil, isto é o que é, a meu ver, a disciplina.


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Eu lhes citei nesse instante o exemplo da disciplina no exército. É um exemplo importante porque ele foi verdadeiramente o ponto onde a grande descoberta da disciplina se faz e se desenvolveu quase em primeiro lugar. Portanto, ligada a esta outra invenção de ordem técnica industrial que foi a invenção do fuzil de tiro relativamente rápido. A partir desse momento, no fundo, podemos dizer o seguinte: que o soldado deixava de ser intercambiável, deixava de ser pura e simples carne de canhão e um simples indivíduo capaz de golpear. Para ser um bom soldado era necessário saber atirar, portanto, era necessário ter passado por um processo de aprendizagem. Era necessário que o soldado soubesse igualmente se deslocar, que ele soubesse coordenar seus gestos com os dos outros soldados, em suma, o soldado tornava-se qualquer coisa de habilidoso. Portanto, precioso. E quanto mais ele era precioso mais era necessário conservá-lo, quanto mais necessário conservá-lo mais necessário se tornava ensinar-lhe técnicas capazes de lhe salvar a vida na batalha e quanto mais se lhe ensinava técnicas, quanto mais longa era a aprendizagem, mais ele era precioso, etc. E bruscamente você tem uma espécie de embalo dessas técnicas militares de adestramento que culminaram no famoso exército prussiano de Frederico II, que passava o essencial do seu tempo fazendo exercícios. O exército prussiano, o modelo de disciplina prussiada. É precisamente a perfeição, a intensidade máxima dessa disciplina corporal do soldado que foi até certo ponto o modelo das outras disciplinas.

Em outro ponto pelo qual vemos aparecer esta nova tecnologia disciplinar é a educação. Foi primeiro nos colégios e depois nas escolas primárias que vemos aparecer esses métodos disciplinares onde os indivíduos são individualizados dentro da multiplicidade. O colégio reúne dezenas, centenas e às vezes milhares de colegiais, de escolares, e se trata então de exercer sobre eles um poder que será justamente muito menos oneroso que o poder do preceptor, que não pode existir senão entre o aluno e o mestre. Ali temos um mestre para dezenas de discípulos é necessário entretanto, apesar dessa multiplicidade de alunos, que se obtenha uma individualização do poder, um controle permanente, uma vigilância em todos os instantes. Donde o aparecimento deste personagem que todos aqueles que estudarem em colégios conhecem bem, que é o vigilante, que na pirâmide corresponde ao sub-oficial do exército;
aparecimento igualmente da notação quantitativa, aparecimento dos exames, aparecimento dos concursos, etc, possibilidade, por conseqüência, de classificar os indivíduos de tal maneira que cada um esteja exatamente no seu lugar, sob os olhos do mestre ou ainda na qualificação e no julgamento que fazemos sobre cada um deles.

Vejam por exemplo como vocês estão sentados em filas diante de mim. É uma posição que talvez lhes pareça natural mas é bom lembrar no entanto que ela é relativamente recente na história da civilização e que é possível ainda no começo do século XIX encontrar escolas onde os alunos se apresentam em grupos de pé em torno de um professor que lhes dá aula. E isso implica, evidentemente, que o professor não possa vigiá-los realmente e individualmente: há o grupo dos alunos e depois o professor. Atualmente vocês são colocados assim em filas, o olhar do professor pode individualizar cada um, pode chamá-los para saber se estão presentes, o que fazem, se devaneiam, se bocejam, etc. Há tudo isso, todas essa futilidades, em realidade são futilidades porém futilidades muito importantes porque finalmente, ao nível de toda uma série de exercícios de poder, é bem nessas pequenas técnicas que estes novos mecanismos puderam se investir, puderam funcionar. O que se passou no exército e nos colégios pode ser visto igualmente nas oficinas ao longo do século XIX. É o que eu chamarei de tecnologia individualizante do poder, e tecnologia que visa no fundo os indivíduos até nos seus corpos, no seu comportamento; a grosso modo uma espécie de anatomia política, de anatomo-política, uma política que visa os indivíduos até anatomizá-los.

Bem, eis aí uma família de tecnologias de poder que apareceu nos séculos XVII e XVIII e, depois temos uma outra família de tecnologias de poder que apareceu um pouco mais tarde, na segunda metade do século XVIII, e que foi desenvolvida – é preciso dizer que a primeira, para vergonha da França, foi sobretudo desenvolvida na França e na Alemanha — sobretudo na Inglaterra, tecnologias essas que não visam o indivíduos como indivíduos mas que visam ao contrário, a população. Em outras palavras, o século XVIII descobriu essa coisa capital: que o poder não se exerce simplesmente sobre sujeitos — o que era a tese fundamental de monarquia, segundo a qual há o soberano e depois os sujeitos. Descobre-se que aquilo sobre o que se exerce o poder é a população, e população quer dizer o que? Não quer dizer simplesmente um grupo humano numeroso, quer dizer um grupo de seres vivos que são atravessados, comandados, regidos, por processos de leis biológicas. Uma população tem uma natalidade, uma mortalidade, uma população tem uma curva etária, uma pirâmide etária, tem uma morbidade, tem um estado de saúde, uma população pode perecer ou pode ao contrário se desenvolver.

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