Sujeito em análise do discurso, por Jean-Jacques Courtine – DROPS #26

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCAR, 2009, p. 87-89.

Se o sujeito do enunciado não pode ser concebido como idêntico ao autor da formulação é porque o sujeito do enunciado “é uma função vazia podendo ser preenchida por indivíduos até certo ponto indiferentes, ao formularem o enunciado” (Foucault, Arqueologia do Saber). Observemos, para começar, que as noções utilizadas aqui, conforme destacamos anteriormente, dividem-se em dois planos ou níveis: se o enunciado tem um sujeito, a formulação é aquela de um “indivíduo”, ou de um “autor”.


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O sujeito em análise do discurso

“Descrever uma formulação enquanto enunciado, não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (…), mas em determinar qual a posição que todo indivíduo pode e deve ocupar para ser seu sujeito” (Foucault, Arqueologia do Saber). Essa função vazia consiste, assim, em uma posição de sujeito. Um exemplo vem ilustrar essa noção na Arqueologia: num tratado matemático, no prefácio em que comunica suas intenções, o autor ocupa uma determinada posição (aparece na qualidade de autor, dirige-se ao leitor, agradece tal indivíduo…), em seguida, outra posição no corpo do tratado, “posição neutra, indiferente ao tempo, ao espaço, às circunstâncias, idêntica em qualquer sistema linguístico” (Foucault, Arqueologia do Saber).

Posição de sujeito e desdobramento da forma-sujeito

O que Foucault enuncia pode-se expressar na problemática da forma-sujeito, trabalhada por Pêcheux (1975) e depois por Henry (1977). Essa “função vazia” que a Arqueologia descreve, indiferente aos sujeitos enunciadores que vêm preenchê-la, é o lugar do sujeito universal próprio a uma determinada FD, a instância de onde se pode enunciar “todos sabem ou veem que” para todo sujeito enunciador vindo situar-se num lugar determinado, inscrito nessa FD, por ocasião de uma formulação. Assim, é o ponto onde ancora a estabilidade referencial dos elementos de um saber. Esse lugar, então, só é vazio na aparência: ele é preenchido de fato pelo sujeito do saber próprio a uma dada FD e existe na identificação pela qual os sujeitos enunciadores vêm encontrar nela os elementos de saber (enunciados) pré-construídos de que eles se apropriam como objetos de seu discurso, assim como as articulações entre esses elementos de saber que asseguram uma coerência intradiscursiva e suas declarações.

É nesse sentido que se poderia dizer, com Foucault, que o sujeito está em “descontinuidade consigo mesmo” (Foucault, Arqueologia do Saber): em toda formulação o sujeito enunciador “encontra” o sujeito do saber, sem o seu conhecimento, sob forma de pré-construído e de articulação de enunciados, e as modalidades desse encontro variam ao longo da formulação; assim se pode reinterpretar o exemplo do tratado matemático informando que o sujeito enunciador apaga no prefácio sua relação com o sujeito do saber para desaparecer por detrás o sujeito do saber no corpo do tratado. Estamos aqui no domínio da forma-sujeito, ou mais precisamente, do desdobramento da forma sujeito que P. Henry introduz:

Dever-se-ia conceber um processo de desdobramento do sujeito da enunciação, sendo um dos sujeitos identificado com o locutor e se encarregando supostamente dos conteúdos fornecidos. e o outro, duplo do primeiro, não se identificando mais com o locutor e assumindo por essa razão o estatuto de sujeito dito “universal”. Compreender-se-ia, então, que os conteúdos relacionados a esse segundo sujeito (pré-construídos) parecem investir-se desta espécie de evidência que é o atributo do sujeito dito “universal”, sujeito da ciência, ou do que se estabelece como tal.

Concebemos, portanto, uma posição de sujeito como uma relação determinada que se estabelece em uma formulação entre um sujeito enunciador e o sujeito do saber de uma dada FD. Essa relação é uma relação de identificação cujas modalidades variam, produzindo diferentes efeitos-sujeito no discurso. A descrição das diferentes posições de sujeito no interior de uma FD e dos efeitos que estão ligados a ela é o domínio de descrição da forma-sujeito.

O antissubjetivismo de Foucault o leva aqui, concebendo uma posição de sujeito como simples interpermutabilidade dos locutores, a negligenciar os processos de identificação pelos quais um sujeito falante é constituído em sujeito ideológico de seu discurso; nós já distinguimos esse ponto da problemática da Arqueologia, no fato de que esta última elide, na verdade, o mecanismo do assujeitamento. O trabalho de Foucault aproxima-se, a propósito do sujeito, da relação da língua com a ideologia, mas limita-se a isso para terminar em uma via paralela.

 – Jean-Jacques Courtine.

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