Da série “O anticristo“.
Pequeno comentário prévio e crítico
Nestes capítulos, o autor irá analisa a psicologia do sacerdote, visando entender como funcionam alguns de seus mecanismos de dominação sobre os cristãos. Fica extremamente evidente a influência sobre os pensamentos de Foucault e Gilles Deleuze; boa parte da exposição didática deste artigo não teria sido feita sem utilizarmos um pouco da filosofia desses autores. Sociedade disciplinar, biopolítica, sociedade de controle – é quase impossível não enxergar formas gestacionais desses conceitos ao ler os capítulos seguintes. Contudo, é necessário alertar para a necessidade de cautela – os modelos e os anseios do filósofo do martelo são outros: Nietzsche é um pensador único, e sua filosofia à marteladas precisa ser entendida à luz da singularidade de seus pensamentos.
47. Fé como mecanismo de dominação do cristianismo e a forma de combatê-lo
Nietzsche começa argumentando que o cristianismo, por inverter valores que elevariam a condição humana, não encontra sustento na materialidade do mundo, busca difamar, envenenar e caluniar o único ponto de vista que pode oferecer contraponto à sua visão de mundo: a ciência.
Para o filósofo, a ciência – a “sabedoria do mundo” – é uma forma de desmascarar a fé e a convicção vindas da ignorância; ela contém “a disciplina do espírito, a pureza e o rigor em matérias de consciência do espírito, a nobre frieza e liberdade do espírito”. Entendida como método, ela – pelo simples fato de existir – ameaça o controle do sacerdote, da Igreja e da filosofia niilista que é o cristianismo. Nietzsche irá descrever um mecanismo de poder que visa sabotar, envenenar e excluir um discurso que põe em cheque o dominante.
Uma religião como o cristianismo, que não toca a realidade em ponto algum, que logo desmorona quando a realidade faz valer os seus direitos ainda quem em um só ponto, tem que ser obviamente inimiga mortal da “sabedoria do mundo”, quer dizer, da ciência – ela aprovará todos os meios com que a disciplina do espírito, a integridade e a severidade nas questões da consciência do espírito, a nobre frieza e liberdade do espírito possam ser envenenadas, caluniadas, difamadas. A “fé” como imperativo é o veto contra a ciência – in praxis, a mentira a todo custo…” [1]
Essa dinâmica foi compreendida por Paulo: ele percebeu a utilização que se fazia a fé dentro desse sistema era necessária para manter a dominação e a utilizou para formar um mecanismo de controle dos fiéis; mais tarde, a Igreja compreendeu os mecanismos de Paulo e também os utilizou. Dessa forma, pode-se dizer que o Deus concebido por Paulo é criado para combater a própria ciência:
“Esse “deus” que Paulo inventou, um deus que “confunde a sabedoria do mundo” (em sentido estrito, as duas grandes adversarias de toda a superstição, a filologia e a medicina), é, na verdade, apenas a decisão resoluta do próprio Paulo: chamar de “Deus” a sua própria vontade, torah, eis algo muito judaico. Paulo quer confundir “a sabedoria do mundo”: seus inimigos são os bons filólogos e médicos de formação alexandrina – é contra eles que guerreira. [2]
Duas formas de combater o cristianismo que aparecem para Nietzsche como desmistificadoras das inversões de valores mais latentes do cristianismo – a valoração da fraqueza corporal como boa e a valoração das narrativas bíblicas – são através da filologia, a pesquisa da autenticidade e a interpretação textual de um manuscrito, e da medicina, a pesquisa da boa saúde e da boa psique do corpo; o próprio fato de ser médico ou filólogo é, por excelência, ser anticristão – há uma espécie de desafio – uma “transgressão” – ao mecanismo de dominação em ter como profissão a busca pela sabedoria do mundo.
Na verdade, não se é filólogo e médico sem ser ao mesmo tempo anticristão. Pois na condição de filólogo olha-se atrás dos livros sagrados, na condição de médico, atrás da ruína fisiológica do cristão típico. O medico diz “incurável”; o filólogo, “embuste”… [3]
48. Os mecanismos narrativos dos sacerdotes para combater a ciência
O medo da ciência – método que pode desmascarar a insalubridade física e mental do cristianismo – por parte dos sacerdotes faz com que eles desenvolvam aparatos discursivos para manter sua dominação; o primeiro capítulo da Bíblia – o Gênesis – parece – argumenta Nietzsche – ser inteiramente construído com base nesse medo: nele, o sacerdote, transposto na figura de Deus, corre um grande perigo: o homem desafia a Deus ao buscar a corrupção – o conhecimento. O sacerdote cria uma narrativa e se transpõe metaforicamente para que, ao desobedecer o sacerdote, o fiel também esteja desobedecendo ninguém menos que o próprio Deus: ele espera dominar os cristãos através da construção de um medo internalizado no sujeito por meio de uma narrativa.
No mito da criação do mundo, Deus – a representação narrativa do sacerdote – em toda sua perfeição, cria o mundo, o homem, os animais e a mulher – por sua natureza de “serpente”, desafiadora, se torna responsável por toda a desgraça do mundo ao comer o fruto da Árvore do Conhecimento, que induz Adão a corromper-se também, nutrindo-se da ciência. Essa ação parte unilateralmente do homem – não é uma ordem do Senhor; ao contrário, é uma desobediência às regras estabelecidas: na mitologia cristã, a busca pelo conhecimento é uma “corrupção”, uma “queda” do ser humano por sua desobediência a Deus – ou, ao sacerdote. O homem, nesse momento, vira um adversário de Deus porque, através da ciência, pode fugir da dominação da fé e combater o Criador – ou o sacerdote – de igual para igual, só restando expulsá-los do Paraíso, proibindo o conhecimento: é o primeiro pecado, o germe de todos os pecados, o pecado original. Assim, se a busca do conhecimento veio pelo ócio, pela felicidade, então o sacerdote
inventa a carência, a morte, o perigo de morte na gravidez, toda espécie de miséria, velhice, labuta, sobretudo a doença – todos os meios na luta contra a ciência! [4]
Nietzsche também aponta – de forma implícita – outros momentos da Bíblia em que fica representada esse desafio do Homem contra Deus:
“A obra do conhecimento se eleva como um torre, assaltando os céus, precipitando o crepúsculo dos deuses – o que fazer? O velho Deus inventa a guerra, separa os povos, faz com que os homens se aniquilem mutuamente (os sacerdotes sempre tiveram necessidade da guerra…)” [5]
Aqui, o mito da Torre de Babel mostra como o conhecimento eleva o humano aos céus e o iguala a Deus nas alturas através da desobediência à sua palavra (concentrar os homens na Torre ao invés de espalharem-se pelo mundo) e através do orgulho de sair dos limites impostos pela religião. Deus separa os homens, dando a cada um deles uma língua diferente, e inventa a guerra para que eles se dividam entre si, não desafiando mais a divindade; para Nietzsche, a guerra é um empecilho para o verdadeiro combate que devemos travar: o combate contra a filosofia da má saúde – contudo, “o conhecimento, a emancipação em relação ao sacerdote, aumenta mesmo apesar da guerra”: há um jogo de gato-e-rato de dominador e dominado, onde o segundo busca a todo tempo escapar das armadilhas do primeiro, que se aperfeiçoam cada vez que ultrapassam seus limites, e que se tornam ultrapassadas toda vez que as transgressões do controle ocorrem.
49. Má-saúde como forma de dominação
O modo de controle – chamado por Nietzsche de “psicologia do sacerdote” – depende justamente da luta contra aquilo que pode ameaçar o seu poder; a ciência, modo de desvendar o mundo, a noção de causa-e-efeito, um perigo para a manutenção da ordem religiosa, surgida em condições favoráveis para o corpo e, por isso, condição que o sacerdote busca deteriorar.
O sacerdote a teme e por causa disso e a repugna; essa repugnância do sacerdote ele tenta transmitir pela religião aos fiéis: um dos modos é tomar a ciência, o questionamento sistemático, a dúvida, como “pecado”:
o conceito de culpa e castigo, a inteira “ordem moral do mundo”, foram inventados contra a ciência – contra a libertação do homem em relação ao sacerdote [6]
O pecado leva à psicologização do homem; faz ele voltar-se para si para não voltar-se para fora (para a natureza): o sofrimento é um modo de fazer o sujeito contornar-se da ciência para buscar o sacerdote; é um sofrimento que não busca a medicina e a boa saúde: ele (o sofrimento) é criado pela Igreja para ser manter o fiel amarrado a ela. Ele leva os conceitos como culpa e castigo, a “graça”, redução e “perdão”; é uma invenção que visa manter essa relação de domínio. Já não se trata de uma dominação se dá pela espada, mas pelo discurso: criam-se narrativas e oposições valorativas a fim de moldar o pensamento do cristão:
O homem não deve olhar para fora, ele deve olhar para dentro de si; ele não deve, como alguém que aprende, olhar oara dentro das coisas astuta e cautelosamente, ele não deve ver de modo algum: ele deve sofrer… E deve sofrer de tal modo que sempre tenha necessidade do sacerdote. – Fora com os médicos! O que precisa é de um salvador. [7]
São invenções da Igreja, uma construção que não só não encontram lastro na realidade, mas como ainda a contradiz – a ardilosidade dessa dominação está no fato de ser contra a natureza do homem, de ser contra a sua saúde: é feita por parasitas.
Se as consequências naturais de um ato não são mais “naturais”, mas se imagina que são causadas por fantasmas conceituais da superstição, por “Deus”, por “espíritos”, por almas, como consequências meramente “morais” como prêmio, castigo, advertência, meio de educação, então se destruiu o pressuposto do conhecimento – então se cometer o maior crime contra a humanidade. [8]
Nietzsche explicita a lógica da culpa através da sua forma de operação; ela não existe por acaso e tem uma finalidade: impedir o pensamento “científico” e manter a dominação:
“O pecado, repito, essa forma de autoviolação do homem par excellence, foi inventado para tornar impossíveis a ciência, a cultura, toda elevação e nobreza do homem: por meio da invenção do pecado, o sacerdote domina” [9]
50.1 A Psicologia do crentes
Após explorar a psicologia do sacerdote, Nietzsche busca a psicologia do crente – entender como ela atua no cristão e tornar seus processos conscientes para o sujeito pode ser uma forma de lutar contra o domínio cristão.
Ao cristão, é dito que a fé torna o sujeito bem-aventurado: receberá a graça em outra vida se, nesta dedicar-se a Deus. É pré-condição (e causa) a fé para a recompensa – contudo – ela é apenas prometida pelo sacerdote. Não há certeza de sua recompensa, mas isso não importa: é justamente essa noção de causa-e-consequência (“tenho fé – logo – serei bem-aventurado”) que encerra a dominação e é absurda em si. Não há como prová-la, e é aí que reside o perigo da fé – abrir mão da comprovação “científica” e ficar refém da promessa.
Ainda que admitamos que seja provada essa bem-aventurança – entendida como um prazer religioso – advinda da fé, seria a bem-aventurança, de fato – questiona Nietzsche – boa? Se as sensações de prazer se intrometem no que concerne à “Verdade”, não seria melhor também duvidar da sua veracidade? O ponto de Nietzsche é que o sistema de recompensas, que aparece quase como algo natural – os atos que ativam as nossas certezas e os nossos prazeres podem ser, também, mecanismos de dominação do cristianismo.
A prova do “prazer” é uma prova a favor do “prazer” – nada mais;onde, por tudo nesste mundo, está fixado que precisamente juízos verdadeiros foram mais contentamento do que falsos e, de acordo com uma harmonia pré-estabelecida, trazem necessariamente consigo sensações agradáveis? A experiência de todos os espíritos rigorosos, dotados de profundidade, ensina o contrário. [10]
Assim, o filósofo irá dizer que, para entender os mecanismos de dominação, é preciso ir cada vez mais a fundo, ter grandeza de alma para perceber não só ações cotidianas que se mostram inofensivas para nós, mas principalmente as que fazem com que nos sintamos bem com nós mesmos:
…lutar por cada palmo de verdade, sacrificar em troca quase tudo aquilo que de hábito se apega nosso coração, nosso amor, nossa confiança na vida. É preciso grandeza de alma para tanto: o serviço da verdade é o serviço mais duro. – O que significa, pois, ser reto em coisas espirituais? Ser rigoroso com seu coração, desprezar os “belos sentimentos”, fazer de cada sim e de cada não um caso de consciência! [11]
50.2 Fazer de cada sim e de cada não um caso de consciência – a responsabilidade do cristão
Ainda que compreenda o cristianismo como um mecanismo de dominação, Nietzsche parece colocar, no final do seu capítulo, a responsabilidade da reflexão, da luta e da superação no próprio indivíduo.
Sua emancipação não dependerá de um salvador externo – sua liberdade dependerá de si mesmo, desvinculada de suas causas. O homem deve comprometer-se com sua libertação e com a criação dos valores que lhe trazem o prazer e o prazer de viver, assim como também comprometer-se a superar os valores tão logo lhe ser proveitoso. A busca de Nietzsche pela análise delicada “de cada sim e de cada não” é não ser submetido ao controle de outrem e saber ser governante de si mesmo.
Referências
[1] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. Porto Alegre: L&PM, 2012. p.88.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.88.
[3] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.88-89.
[4] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.91.
[5] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.91.
[6] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.92.
[7] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.92.
[8] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.92-93.
[9] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.93.
[10] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.94-95.
[11] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p.95.
Estudante de Letras (Habilitação: Linguística/Português) e marxista.