Schopenhauer e o aniquilamento da vontade

Como superar a intensa necessidade de satisfação? Segundo Shopenhauer, somente o ascetismo pode ser uma arma para o aniquilamento da vontade.

Para Arthur Schopenhauer, a “vontade” é a expressão fenomenológica do ser humano; ao mesmo tempo força motriz de sua existência e razão de um sofrimento que vem a ser intrínseco à vida. Sendo assim, a única forma de se alcançar a “paz”, isto é, de esvair-se deste sofrimento, é superando-a [a vontade], através de seu aniquilamento.

Mas o que, exatamente, devemos entender por “vontade” em sua obra? Mais tarde – em Freud, por exemplo – a vontade seria reduzida ao desejo, à libido. Em Schopenhauer, no entanto, este conceito é mais abrangente e diz respeito tanto à vontade que provém de necessidades fisiológicas (comer, dormir, etc.), quanto àquela que nos surge no decorrer dos dias, como objetivo a ser alcançado visando o gozo e a plenitude; plenitude esta que jamais se alcança, pois o gozo é fugaz, sendo extinto pouco tempo depois de ser alcançado e dando lugar a uma nova necessidade.

Veja também: A igreja e os castrados

“A vontade é, não somente livre, mas onipotente.” (SCHOPENHAUER, ARTHUR in Do mundo como vontade e representação, p. 27 – Saraiva, 2012)

Schopenhauer
Schopenhauer

A vida é, assim, uma materialização do que se denomina “querer-viver”, e tendo em vista o fato de que, a cada necessidade superada, outra nova surgirá, este movimento em direção à superação da vontade (como forma de afirmação da vida) é ininterrupto e infinito. Consequentemente, o sofrimento que dele provém também o será. Daí a conclusão de que “viver é sofrer”: a vida oscila entre a dor (proveniente da necessidade) e o tédio (proveniente da satisfação da mesma).

“A vida humana transcorre, portanto, toda inteira entre o querer e o conquistar. O desejo, por sua natureza, é dor: a satisfação bem cedo traz a saciedade. O fim não era mais que miragem: a posse lhe tolhe o prestígio; o desejo ou a necessidade novamente se apresentam sob outra forma, que do contrário bem o nada, o vazio, o tédio(…)” (p.82)

Eis a proposta, no entanto, de superação do sofrimento que Schopenhauer nos apresenta. Aproximando-se das filosofias orientais, em especial do budismo (com o qual o autor de fato teve contato), a solução aparece-nos como a negação (ou superação) da vontade, do “querer-viver”. Em outras palavras, trata-se do ascetismo, que deve se concretizar, por exemplo, através da castidade, pobreza e jejum voluntários e intencionais.

“Ainda que essencialmente fenômeno da vontade, cessa de querer o que quer que seja, foge a qualquer apego da vontade a não importa o que, e procura fortificar continuamente no seu coração a mais perfeita indiferença por tudo.” (p.169)

Por último, é interessante notar que, para o autor, o suicídio não corresponde a essa superação, pois é nada mais que uma manifestação como outra qualquer do “querer-viver”:

“O suicida quer a vida; não está descontente senão das contradições em que a vida se lhe oferece. Destruindo o corpo não renuncia ao querer-viver, mas unicamente ao viver”.

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Anexo

SALVIANO, J. O. S.. O fundamento epistemológico da metafísica da Vontade de Arthur Schopenhauer. Trans/Form/Ação, v. 32, n. 2, p. 101–118, 2009.

A metafísica da Vontade de Schopenhauer representa uma ruptura profunda em relação à história da filosofia: desde a Antiguidade helênica, o mundo Ideal, a essência da qual tudo brota, que engendra o aparente, seja ele o Logos, ou o Nous de Anaxágoras, é essencialmente racional, e seu correlato no homem é a razão, por isto o acesso a este mundo deveria seguir as vias impostas por esta faculdade. Para Platão e Aristóteles, a única parte da tríplice divisão da alma (ψιχε) que é imortal é a parte racional. E é por ela que se tem acesso ao mundo Ideal (Platão) ou formal (Aristóteles). No mundo da doxa, da opinião, do erro, o conhecimento encontra-se extraviado de sua senda natural, pois está emaranhado ao sentimento, aos impulsos inconscientes, meras afecções corporais. Na Idade Média e na filosofia moderna, as paixões, os sentimentos, tudo o que não tem o conhecimento lógico-racional como fundamento, deviam ser relegados ao segundo plano (mesmo a fé, verdade revelada, no pensamento filosófico-cristão medieval, só se apresenta como verdade in concreto, se amparada pela razão, a marca da divindade no homem). Schopenhauer subverte toda a metafísica clássica e mostra que a essência do mundo é um impulso cego (blinder Drang), um ímpeto inconsciente, que no homem mostra-se como tudo o que há de irracional, que escapa às formas do conhecimento lógico e intuitivo. “Não há ordem nem razão do ser”, comenta Didier Raymond, “toda existência repousa sobre um princípio obscuro e irracional”. A razão e o intelecto são apenas uma fachada para a vontade, a verdadeira essência humana. A Vontade é a monarca no reino em que o cérebro é apenas o ministro de Estado. O sistema nervoso simpático (cerebrum abdominale) cuidaria então, para continuar a analogia, do governo interno.

O que é consciente no homem é sempre determinado por esta força inconsciente: o conhecimento é um mero instrumento que a vontade usa para saciar-se. A consciência, dirá ele nos Suplementos ao Livro I, é como um lago profundo no qual os pensamentos conscientes são apenas a superfície: “a consciência é apenas a superfície do nosso espírito; do mesmo modo que em relação à terra nós só conhecemos a crosta, não o interior”. Esta intuição schopenhaueriana tem uma importância singular na história do pensamento, principalmente por ter ocorrido na mente do jovem filósofo de Danzig muitos anos antes de o senhor Jakob conhecer a futura senhora Freud.

4 Comentários

  1. Eu estou cursando Filosofia Licenciatura e preciso estudar Schopenhauer, mas confesso que Eclesiastes e Krishna são mais atraentes que esse filósofo. O artigo é muito bom!!

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