Índice
Introdução
A soberania é uma característica central no exercício de poder dos Estados. O Estado é o ente político que pode suspender a aplicação de um conjunto de regras, criando assim o estado de exceção. Giorgio Agamben afirma que é justamente com o exercício do poder que o Estado também cria o espaço de inclusão e de exclusão da vida política.
A partir das elaborações de Zygmunt Bauman, é possível compreender que a descentralização do poder de agir, ou seja, o poder que se localiza no exercício das tomadas de decisão, é a descentralização da própria condição de fabricação do homo sacer das sociedades de consumo.
A soberania de mercado
Nas sociedades de consumo
não é o Estado, nem mesmo seu braço executivo, que está sendo solapado, erodido, enfraquecido, que está definhando – mas sua soberania, sua prerrogativa de estabelecer o limite entre incluídos e excluídos, assim como o direito de reabilitar e readmitir estes últimos.[1]
Zygmunt Bauman aponta para uma mudança na capacidade prática de estabelecer o limite entre o incluído e o excluído. Se considerarmos, em conjunto com Agamben, que o soberano “tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei”[2], a mudança do local próprio do poder de agir significa a mudança, também, do elemento que ao abrir espaço para a aplicação de uma norma, se coloca fora dela. O mercado, então, sendo o novo complexo de relações com força soberana, torna-se a força política com poder de exclusão através de seus critérios baseados na capacidade do consumo.
Bauman salienta que, inicialmente, o poder de agir foi limitado por órgãos internacionais e, como exemplo, eu citaria o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Em parte, essa soberania já foi um tanto limitada, e podemos imaginar que, sob a pressão da emergência de leis globalmente válidas garantidas por organismos jurídicos (até agora parciais e rudimentares), é provável que ela continue, aos trancos e barrancos, encolhendo.[3]
Entretanto, há uma diferença entre a soberania implicada na presença de órgãos supraestatais e no mercado: tais órgãos não alteram a legitimação e o processo de tomada de decisão soberana em que o poder é subordinado à política. Também não altera o fato de que a decisão pode ser contestada, na medida em que os órgãos responsáveis pela decisão tem endereço fixo, presença concreta num espaço físico determinado geograficamente.
Muito mais revolucionária (e potencialmente fatal para o Estado, já que foi moldada durante a era moderna) é outra tendência que mina a soberania do Estado de modo muito mais profundo: a inclinação do Estado enfraquecido a passar muitas de suas funções e prerrogativas para os lados, e não para cima, cedendo-as aos poderes impessoais dos mercados.[4]
Os poderes impessoais do mercado passam, aos poucos, a serem uma nova forma de exercício da soberania, agora descentralizada e não identificável. Se, segundo Agamben, a vida humana “se politiza somente através do abandono a um poder incondicionado da morte”[5] , ou seja, através de um processo de exclusão e posterior inclusão na ordem jurídico-política, então o mercado tende a ser o novo local de produção dos locais de exclusão, dos bandos soberanos, e do terrenos da inclusão, da entrada na sociedade de consumo.
A pressão do mercado provoca uma “rendição cada vez mais abrangente do Estado à chantagem das forças do mercado, contrariando as políticas preferidas e endossadas por seu eleitorado”[6], o que transforma todo o eleitorado de cidadãos em sujeitos de mercado. Sem o status de cidadão validado pelo poder político, o sujeito deixa de ser parte decisória das práticas políticas.
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Esta tendência, qualitativamente diferente da soberania supraestatal, tem como resultado a
gradual separação entre o poder de agir, que agora flutua na direção dos mercados, e a política, que, embora continue a ser domínio do Estado, é cada vez mais despida de sua liberdade de manobra e de seu poder de estabelecer as regras e apitar o jogo. Essa é, com certeza, a principal causa da erosão da soberania do Estado.[7]
A política, em vez de permanecer sua posição hierárquica superior ao poder de agir e, portanto, o subordinando, torna-se um espaço à parte, uma esfera sem ligação com a tomada de decisão, que se desloca aos mercados. Desta forma, seguindo a elaboração de Bauman, o poder de agir é subordinado ao mercado e ambos são hierarquicamente superiores à política institucional.
Considerações finais
Trata-se, assim, de compreender que a soberania não está simplesmente ligada aos dispositivos de exclusão e inclusão, mas aos próprios critérios aplicados sobre um território para fazer real todo e qualquer tipo de processo de exclusão ou inclusão. O Estado, então, mantém sua importância na execução dos processos de inclusão e exclusão, mas se retira da posição de criador dos critérios.
Ainda que órgãos do Estado continuem a articular, divulgar e executar as sentenças de exclusão ou expulsão, eles não têm mais a liberdade de escolher os critérios da “política de exclusão” ou os princípios de sua aplicação. O Estado como um todo, incluindo seus braços jurídico e legislativo, torna-se um executor da soberania do mercado.[8]
Como exemplo prático, Bauman cita decisões sobre política de imigração, que é uma questão histórica que explodiu na última década na Europa com a crise dos refugiados[9]. Para isso, ele cita as políticas de imigração promovidas por Charles Clarke, ministro britânico do Interior que, explicitamente, declara que só entrariam na ilha imigrantes que “o país precisa” enquanto se negaria a entrada daqueles que “o país não tem necessidade”.
Quando um ministro declara, por exemplo, que a nova política de imigração terá por objetivo trazer para a Grã-Bretanha pessoas “de que o país precisa” e manter fora dele aquelas “de que o país não tem necessidade”, ele dá aos mercados, de maneira implícita, o direito de definir as “necessidades do país” e decidir o que (ou quem) o país precisa e o que (ou quem) não. Portanto, o que o ministro tem em mente é oferecer hospitalidade às pessoas que prometem ser, ou que em breve se tornem, consumidores exemplares, ao mesmo tempo em que se recusa a fazer o mesmo por aquelas cujos padrões de consumo – característico de pessoas na base da pirâmide de renda, ou que se concentram em bens de consumo menos lucrativos, ou mesmo não-lucrativos – não vão estimular as rodas da economia de consumo a girarem mais depressa nem promover os lucros das empresas para além dos níveis já alcançados.[10]
A estrutura concreta de instituições para estabelecer uma linha que separa os excluídos e os potenciais incluídos é fabricada pelo Estado, mas o interesse que determina o critério da inclusão é justamente econômico, mais especificamente, é baseado na existência e saúde de um mercado de consumidores.
Referências
[1] A sociedade dos consumidores IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 23.
[3] A sociedade dos consumidores…
[4] A sociedade dos consumidores…
[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 98.
[6] A sociedade dos consumidores…
[7] A sociedade dos consumidores…
[8] A sociedade dos consumidores…
[9] INAÊ, Güinewer. O dilema da nova crise de refugiados na Europa. Site da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, Universidade Federal de Goiás – UFG. Acesso em 20 de março de 2024. Disponível em <<https://csvm.ufg.br/n/152679-o-dilema-da-nova-crise-de-refugiados-na-europa>>.
[10] A sociedade dos consumidores…
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.