Sociedade machista: a guerra
Uma das características mais vis de uma sociedade machista é a prática do estupro em situação de guerra. O estupro sistemático é quase como uma arma de guerra. Vale dizer, é parte de toda a estratégia da limpeza étnica, mesmo que não seja fruto de uma ordem direta.
Analisando a guerra na Iugoslávia, Véronique Grappe-Nahou, antropóloga francesa, percebeu alguns pontos interessantes desta prática, começando, claro, pela questão étnica, que lá estava em primeiro plano: dentro da maioria das culturas europeias, a transmissão da filiação é paterna. São patrilineares. Isso não significa qualquer coisa, mas coloca em jogo a importância cultural do sujeito feminino. Mulheres são aquelas que carregam um futuro sujeito da etnia do pai.
Sociedade machista e a lógica patrilinear
Dentro desta lógica patriarcal e patrilinear, o papel da mulher se torna o da reprodução da cultura, mas só se gerar um homem. Nestas mesmas culturas, é comum que a mulher passe a ser da família do homem após o casamento (assim como na nossa, onde o sobrenome relocaliza a família em que a mulher passa a pertencer), o que também revela que ela própria não tem uma ‘essência’ étnica, ela precisa do homem para se tornar um alguém demarcado numa dada cultura.
Se levarmos em consideração que o casamento é algo esperado por todas as culturas, em todas as sociedades machistas, então veremos que ir para a família do marido e terminar o processo de tornar-se filiada a uma família/clã/seja lá o que for, é um imperativo. Mulher que não se casa é a vergonha da família. O futuro das mulheres é, então, um destino certo: nascem sem filiação definitiva, já se sabe que irão para outro grupo familiar um dia e que serão responsáveis pela geração dos filhos deste grupo familiar.
O estupro em guerras de conquista/dominação tem como funcionamento simbólico a anulação da mulher em gerar outro sujeito da cultura local (na ex-Iugoslavia, por exemplo, na violência sobre mulheres croatas ou bósnias), além da violência física e da humilhação – o estupro retira dela a possibilidade de uma filiação, de uma identidade coletiva. A transforma em pária e faz dela uma geradora de um sujeito da cultura conquistadora (ou da etnia, ou da raça ou de qualquer termo que tenha algum significado essencialista).
O Estupro está dentro da lógica da limpeza étnica, da tentativa de purificar o local. Mas todos sabem que é um ato de violência extrema (as sanções que a pessoa estuprada, na maioria das vezes sanções morais, recebe mostra a gravidade de tal ato), então, como isso acontece?
Sociedade machista: pulsão ou propaganda do estupro?
Quando a notícia dos estupros sistemáticos foram jogadas na mídia, a primeira coisa a se ouvir foi “isso é muito impressionante pra ser verdade”. É a negação daquilo que é estereotipado. É, ao mesmo tempo, algo considerado impossível na Europa civilizada e algo considerado “comum nas guerras”. É o estereótipo, portanto, algo já comum, e o impossível, algo que seria fora de um contexto de possibilidade. É aqui que a autora coloca que a performance do estereótipo é o negacionismo.
Os estupros não eram considerados como uma verdade por serem muito próximos do estereótipo. Se negava tal existência e essa negação dava impulso para a reprodução das notícias, ao mesmo tempo em que, ao se ter os estupros como algo comum, se naturalizava tal ato.
A autora ainda coloca uma outra tática de propaganda que pode dar um primeiro passo para as formas de estupro que podem acontecer num ambiente de guerra: a propaganda da demonização do outro que tem como consequência, o ódio.
Isso tem mais a ver com a propaganda fantástica de que o outro (os albaneses, por exemplo) “retira os olhos de nossas crianças, estupra nossas mulheres e assassina nossos idosos”. Não importa se isso é verdade, o que importa é que, numa situação de guerra, ao termos certeza que isso acontece (pela propaganda ou pelo boca-boca alarmista e assustado), a reação é a da vingança preventiva. Se o outro faz isso ou não, não sei, mas sei que ele pode fazer e se tiver a oportunidade, irá fazer.
A incerteza do limite do outro nos deixa, também, sem limites. É aí que atos extremos como os estupros sistemáticos ganham uma interpretação que vai além da pulsão sexual impossível de segurar, mas são vistos como um imperativo instalado nos combatentes (e em toda a população que é bombardeada pela propaganda), construído socialmente (que fornece um programa de ação para a vingança) e com função política (o terror) e simbólica (a destruição da possibilidade de haver a reprodução da cultura dominada/conquistada), além do próprio dano físico.
Sociedade machista no cotidiano
O que foi dito anteriormente coloca o estupro longe dos enunciados de que isso seria feito por dementes, doentes mentais, loucos, pessoas com sérios problemas psicológicos e tantos outros adjetivos da esfera da psicologia. Também afasta a possibilidade de se interpretar o estupro como um impulso genético, como algo que precisa ser tratado com remédio e que pode ser diagnosticado por meio de um exame médico.
O artigo de Grappe-Nahoufaz aquilo que as acusações de estupro no cotidiano (os abusos que são considerados insistência, como forçar qualquer tipo de relação sob o pressuposto de que um ‘não’ não significa uma negação, mas um chamado à insistência) tentam sempre dizer e são insistentemente negadas pelo senso comum: de que qualquer um pode ser estuprador, não por que se tem algo de errado, mas, exatamente, por não se ter nada de errado! Nossa cultura não é chamada de cultura do estupro à toa. As estruturas de nossa sociedade são patriarcais, depositando o poder na mãos dos homens, e sendo justificadas por nossa cultura machista (e pela ideologia que a faz parecer natural junto com o discurso machista que retira qualquer possibilidade de realmente quebrar essa relação significante até mesmo na esfera da discussão).
Os estupradores sérvios não eram “dementes”, assim como os burocratas que trabalhavam com campos de extermínio ou os abusadores em campos de refugiados não são. A questão está, então, no poder do homem, estruturado numa sociedade patriarcal, justificado por uma cultura machista que, até mesmo, retira a linguagem para se expressar a dominação que é sofrida cotidianamente.
O programa de ação precisa ser feito de maneira local e global simultaneamente. Precisa ser feito com ações efetivas e com negações, ou seja, não é só fruto de deixar de fazer algo, mas fruto -também- de se fazer algo. O fato haver homens e mulheres que reproduzem a sociedade machista não se trata somente (e eu creio que principalmente) de conivência, mas de não terem nem mesmo a linguagem necessária para outro tipo de formação discursiva. Não se fala “isso é abuso” porque realmente não se vê como abuso. Assim, ações contra qualquer tipo de ideologia precisa ser feita tanto de forma material, na prática cotidiana, como na parte cultural, na abertura de possibilidade para uma nova simbolização da vida cotidiana (que, por sua vez, se transforma em uma prática).
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Como o machismo afeta a sociedade?
Para responder essa pergunta, citarei Minayo:
“Em situações em que as mulheres são totalmente dependentes dos maridos, as que não se submetem, vivem relacionamentos fracassados e violentos que podem levá-las à morte (MADALOZZO, How low-income families in São Paulo reconcile work and family?). Não são apenas os meninos que aprendem a ser machistas. As meninas também são socializadas para serem submissas, para cumprirem as tarefas que lhes seriam próprias, segundo a mentalidade patriarcal.
Por fim, faz parte do autoritarismo masculino a imposição de condutas e regras que a família deve seguir e obedecer. A crença patriarcal é de que o homem sempre sabe o que é melhor para todos em casa. Corroborando o que aqui se descreve, estudo realizado em Porto Alegre mostra que 108 autores de violência conjugal afirmaram serem eles responsáveis por ditar as regras de sua casa, cuja desobediência era punida com violência (MARASCA, et al, 2017). Infelizmente, em muitos ambientes sociais brasileiros, a perpetuação do machismo continua vigente, o que se constata inclusive em pesquisas com novas gerações.”
Maria Cecília de Souza Minayo, O machismo se reproduz como um dote hereditário. Acesse aqui.
O que é machismo na sociedade?
Novamente, utilizarei artigo de Minayo para responder esta pergunta:
“A concepção do masculino como sujeito da sexualidade e o feminino como seu objeto é um valor de longa duração da cultura ocidental. Na visão arraigada no patriarcalismo, o masculino é ritualizado como o lugar da ação, da decisão, da chefia da rede de relações familiares e da paternidade como sinônimo de provimento material: é o “impensado” e o “naturalizado” dos valores tradicionais de gênero. Da mesma forma e em conseqüência, o masculino é investido significativamente com a posição social (naturalizada) de agente do poder da violência, havendo, historicamente, uma relação direta entre as concepções vigentes de masculinidade e o exercício do domínio de pessoas, das guerras e das conquistas. O vocabulário militarista erudito e popular está recheado de expressões machistas, não havendo como separar um de outro. Levando em conta o caso brasileiro, típico da cultura ocidental e ao mesmo tempo específico em sua historicidade, comentarei três situações: a do estupro, a da violência contra a mulher na condição de cônjuge e a do homicídio cometido por homens contra homens.
No ato do estupro realiza-se superlativamente a dissociação entre o sujeito e o objeto da sexualidade, entre o apoderamento sexual do outro e a anulação da vontade da vítima. Machado (2001) comenta que todos os estupradores que entrevistou em sua pesquisa, apesar de confessarem que forçaram a relação sexual (o que teria sido feito como “uma fraqueza” ou “num momento de fraqueza”), no fundo acreditavam que a mulher queria ser violentada. Essa crença, de um lado insinua pelo menos duas coisas: 1) “macho mesmo”, do ponto de vista sexual, deixa-se levar pela fraqueza, pois seus impulsos são tão fortes que ele não consegue controlá-los, por isso, “naturalmente” precisa ser compreendido e perdoado; 2) o “não” da mulher nunca deve ser considerado verdadeiro e sim parte do ritual de sedução. Portanto, a plenitude da macheza não admite que a mulher (em sendo objeto) possa dizer “não”.”
Maria Cecília de Souza Minayo, Laços perigosos entre machismo e violência. Acesse aqui.
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