Após a invasão do Instituto Royal e a emergência de uma leva de discussões acerca do uso de animais em pesquisas científicas para os mais variados propósitos, o caminho para sua proibição começou a ser trilhado e imposto de maneira corajosa.
Em São Paulo o teste de animais para cosméticos foi proibido, entretanto esta é só uma parcela dos testes, uma parcela claramente fútil e sem sentido prático nenhum. Como lidar com isso? Comemorar talvez não seja prudente.
Não acredito que seja necessário apelar para o lado ético dos testes em animais. Creio que a discussão importante está relacionada ao monopólio da verdade que a ciência tem e sua configuração atual. A ciência como é, se faz como uma busca pela verdade objetiva. É impossível de ser ultrapassada e seu objetivo é a-histórico.
Neste ponto eu acredito que a discussão fica interessante. Por que os testes em cosméticos foram proibidos e os testes farmacêuticos não? A resposta óbvia seria que testes em cosméticos podem ser proibidos, já testes para a aprovação de novos medicamente são necessários. Haveria uma necessidade científica, objetiva e extrema de testes em animais para a aprovação de medicamentos, mas não só pela ciência, mas também pela utilização do produto. Medicamentos não são cosméticos. Cosméticos são substituíveis, podem ser jogados fora, nem mesmo precisam ser utilizados, já os medicamento “salvam vidas”.
Status do produto
Não há como deixar de lado os aspectos sociais dos dois produtos finais. Tomando como objeto para a análise a relação dos cosméticos com os medicamentos, é nítido a hierarquia de necessidade que possibilita a utilização de animais, mesmo sendo considerado (ao menos superficialmente) como algo cruel.
De fato existe essa noção: maltratar animais não é algo bom, não é gostoso e nem faz parte de um cotidiano saudável para qualquer humano – isso não significa que seja uma verdade incontestável, mas é uma noção aprendida culturalmente.
Maltratar animais de maneira desnecessária não é algo aprovável.
Existem exceções previsíveis no próprio enunciado acima. Só é errado maltratar animais de maneira desnecessária, isso significa que matar animais por propósitos fúteis ou banais não é aprovável (como amarrar um cachorro à traseira de um ônibus), mas maus-tratos por grandes propósitos têm sua justificativa (por exemplo, em testes científicos ou na eliminação de pragas).
Retirar a possibilidade de testes em animais para cosméticos é unicamente colocar uma categoria a mais do lado dos motivos banais, mas não retirar a oposição Banal X Necessário. A proposta do texto é que esta oposição é constituinte da ciência atual. Ela não pode ser retirada a menos que se refaça totalmente o paradigma científico atual, o que significa destruir e reconstruir toda uma noção da posição dos animais não humanos dentro da sociedade humana.
A oposição continua mesmo com a mobilidade das permissões de uso de animais que a cultura ou a ethos científica permite ou proíbe. Além disso, a maneira como a ciência é tratada, enquanto detentora do discurso da verdade, permite que tudo seja feito por ela e que tudo que for feito tenha um fim em si. O fim das pesquisas é a própria ciência, é o conhecimento do mundo e o conhecimentos das causas.
É a mesma força do discurso religioso na idade média, enquanto detentor da verdade e o único campo de saber imaculado, calcado em bases firmes da pura sinceridade teológica.
Discurso da verdade?
A verdade não é o que é por ser objetiva. Ela é o que é pelo poder que ela fornece ao discurso que a apropria. Verdade não é aquilo que é objetivo, verdade é aquilo que vale como correto, como fundamental e como incontestável – não somente em palavras, mas na prática. Verdade, então, é a maior autoridade que um discurso pode ter, é uma questão de poder. O discurso que monopoliza a verdade é aquele que exerce maior poder sobre os assuntos gerais.
Foucault tem um conceito interessantíssimo para trabalhar com a possibilidade de algo ser ciência. Este seria um a priori histórico, chamado de epistéme. A espistéme é,
“Algo como uma visão do mundo, uma fatia de história comum a todos os conhecimentos e que importa a cada um as mesmas normas e os mesmo postulados, um estágio geral da razão, uma certa estrutura de pensamento a que não saberiam escapar os homens de uma dada época – grande legislação escrita, definitivamente, por mão anônima”.
Uma estrutura daquilo que possibilita a emergência de conceitos, formas de enunciação propriamente científicas, objetos de um dado discurso científico.
“O conjunto de relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a uma dessas formações discursivas, se situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização.”
Não se trata daquilo que se pode saber, mas daquilo que, ao analisar as relações das práticas discursivas, permite a emergência de uma ciência, de uma figura epistemológica.
Convém dizer que o conceito parece ser deslocado. Por que falar disso quando o tema do texto é a utilização de animais em testes? Porque a utilização de animais em testes é parte fundamental de qualquer discurso científico. Não é somente a utilização em testes, mas a própria exploração de animais em qualquer esfera da sociedade, desde rituais religiosos até como veículos de tração. A utilização de animais é a priori, é algo dado, inculcado e que se move pelos saberes da sociedade. É algo que se localiza dentro das possibilidades de uso de materiais para ciência, religião, para afago emocional (afinal, animais de estimação são o afago de seus donos) e etc e etc.
O uso de animais emerge da epistéme de nossa época de maneira diferente da epistemé de outras, apesar da utilização de animais ser vista em qualquer sociedade.
Utilização de animais não é novidade, mas não é imutável
Entretanto, deve-se ter consciência de que alguns animais não podem ser utilizados enquanto outros podem. Este tipo de separação existe também em qualquer sociedade – come-se vacas, mas não cachorros. Além disso, alguns podem ser comidos em dados momentos, enquanto não podem em outros, como nos clãs totêmicos em que o animal totem deve ser comido em dados rituais, mas nunca no cotidiano.
A utilização de animais, então, é uma força social, é fruto de uma formação social e de uma ética historicamente localizada. Não se trata somente de escolher comer ou explorar o trabalho de um animal, mas de estar localizado historicamente em uma época e lugar onde a utilização de um dado animal para um fim determinado (como a obtenção de medicamentos) é aceitável, enquanto a utilização para outros (como para a pura tortura) não é aceitável. Se trata de modificar esta estrutura e fazer com que qualquer uso seja condenável.
Isso é simples, mas me parece fundamental entender que não se trata de uma necessidade da ciência, mas da necessidade discursiva que essa ciência comporta. Não é que é necessário utilizar animais em testes para se chegar até a verdade, mas é necessário para a verdade ser construída, haver o uso de animais.
Ciência é qualquer coisa
Ciência é qualquer coisa, mas é qualquer coisa dentro de um status de verdade. Segundo o povo arapesh da Nova Guiné, ninguém morre naturalmente, se morre sempre por feitiçaria. Essa é uma verdade não identificável, mas é uma verdade fundamental na própria vida cotidiana dos arapesh da montanha. Os clãs da planície comportam os feiticeiros, que são solicitados quando há algum desentendimento entre membros de um clã ou de diversos clãs.
Para qualquer sujeito morador de um centro urbano ultratecnológico de qualquer cidade globalizada, o parágrafo anterior é a descrição de uma imensa bobagem, mas só é bobagem porque não tem localização nenhuma dentro da cultura ocidental globalizada e cientificista.
A ciência constitui um campo de saber específico, mas o que faz dela uma autoridade é seu status de verdade. Só isso que importa. Da mesma forma, a verdade da feitiçaria tem um lugar privilegiado e constituinte da vida de qualquer arapesh.
Isso significa que o uso de animais não é necessário para a ciência. Nada é necessário para a ciência, porque a ciência não existe. Enquanto um campo de saber da verdade, como se fosse uma verdade legitimamente localizada, a ciência não existe. Verdade e ciência são coisas separadas que estão numa mesma posição. A ciência produz a sua verdade ao invés de, como é dito, somente reproduzir a verdade objetiva do mundo. Sua autoridade de verdade é produzida por ela mesma, por seus pressupostos e por sua característica.
Conclusão
Tudo isso, talvez apresentado de uma maneira um pouco confusa, serve como uma pequena introdução para afirmar que a ciência não tem autoridade para dispor de qualquer recurso, inclusive animais, só por ser ciência. O que dá essa autoridade é o status de verdade. Mas o status de verdade não é da ciência, mas está com a ciência.
Se trata, então, de saber que o teste em animais só é necessário para a ciência atual, que não é universal e nem a-histórica (apesar de pretender), de saber que a maneira como a ciência atual percebe o mundo é também a maneira como ela, com sua autoridade, forma os sujeitos que estão sob seu domínio para também perceberem o mundo de forma cientificista, portanto, para categorizarem a ciência como uma verdade universal com autoridade reconhecida.
Uma nova ciência pode ser formada. Nenhuma ciência é eterna ou absoluta e nenhuma ciência é simplesmente a apreensão do mundo externo de maneira objetiva. Ser objetivo é parte da fundamentação da verdade da ciência, mas que, no fundo, não funciona desta forma, a verdade da ciência é o reconhecimento da verdade que ela monopoliza, dado pela cultura, por instituições, por autoridades de meios científicos, por filmes, livros e etc e etc. Não se trata, então, de preservar o status da ciência e tentar modificar somente a utilização de animais, mas sim de destruir as suas bases e talvez modificar o status de verdade que ela monopoliza.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
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