David Harvey (1935 -) é geógrafo e busca pensar a cidade contemporânea pelas lentes do marxismo. Suas ideias ajudaram a formar a noção de direito à cidade.
Na medida em que a acumulação de capital está intrinsecamente ligada aos processos de urbanização da cidade [1], não seria loucura pensar que a cidade – tal como a fábrica – por também ser um local onde ocorre a extração de mais-valia, é um local de luta de classes.
Para Harvey, esse tipo específico de luta de classes é fruto da divisão internacional do trabalho, que deslocou as fábricas dos países centrais para os países asiáticos, fazendo com que a extração de mais-valia nos países de capitalismo avançado se concentrasse no setor de serviços e de construção civil, tornando o meio urbano – e não a fábrica – o principal lugar de extração da mais-valia desses locais.
Se a urbanização é tão crucial para a história da acumulação do capital, […] então uma luta de classes de algum tipo, não importa se explicitamente reconhecida como tal, está inevitavelmente envolvida. [2]
Tal fator, aliado a outras formas de exploração e empobrecimento da classe trabalhadora – proprietários de aluguéis, financistas, agiotas, comerciantes – acaba por ampliar o modo com que entendemos que se dá a luta de classes: se a exploração ocorre na cidade por excelência, com milhares de trabalhadores participando de sua produção e reprodução, por que também não pensar de forma programática a luta de classes nela? Por que, então, não se concentrar na cidade em vez da fábrica como lugar por excelência de produção de mais-valia?[3] Essa mudança programática que Harvey coloca em questão requer que compreendamos a dinâmica da exploração e da luta de classes: na medida em que ocorre a produção e a reprodução do capital através da construção do ambiente urbano, a eficácia da luta urbana será medida pelo quanto ela consegue travar a economia da cidade.
A rua é um espaço público que histórica e frequentemente se converte pela ação social em um com um do movimento revolucionário, assim como em um espaço de repressão sangrenta. [4]
Tomar a cidade de assalto seria, então, interromper o fluxo de capital e exploração que circula nas avenidas, incentiva o consumismo desenfreado nos shoppings, fecha salas de aula, remove pessoas de suas casas (por ação policial ou simplesmente aumentando o preço dos aluguéis) e precariza o serviço de telemarketing; seria entender como o capitalismo se desenvolve nesses lugares e buscar combatê-lo: sindicalizando trabalhadores informais, fazendo alianças com movimentos por moradia, ocupando escolas públicas, travando avenidas importantes:
Milhares de caminhões de transporte atravancam as ruas de Nova York todos os dias. Organizados, esses trabalhadores teriam o poder de estrangular o metabolismo da cidade. […] Quando a população de El Alto cortou as principais linhas de abastecimento para La Paz, obrigando a burguesia a viver de sobras, seu objetivo político não demorou a ser alcançado. [5]
O urbano então se torna um espaço importante de ação e revolta política, onde as particularidades desses setores deve ser levada em conta – sua organização territorial, sua configuração social e suas características singulares – a fim de entender como age o capital:
[…] o poder político frequentemente procura reorganizar as infraestruturas urbanas e a vida urbana com o objetivo de manter as populações insatisfeitas sob controle. O caso mais famoso é o dos bulevares projetados por Haussmann, em Paris, que mesmo na época já eram vistos como um meio de controle militar dos cidadãos rebeldes. [6]
Tal reconfiguração do espaço urbano , tendo ou não o objetivo de influir na luta de classes, traz sempre o reflexo dos interesses do capital, destruindo a cidade como um “comum” social, político e ambiental e se apropriando de suas peculiaridades para interesses privados visando a maximização do lucro (como a “disneyficação” das cidades históricas). Tal processo de difusão da mercadorização da cidade costuma mobilizar movimentos sociais urbanos em decorrência da eterna “privatização” do espaço comum (como os condomínios-fortaleza de alto padrão) produzida por um trabalho coletivo; apropriar-se do caráter comum desses lugares – tornando-os não-mercantilizados e fora do escopo das relações de troca – acaba virando uma forma de resistência por parte da população local e – pontua Harvey – deve se tornar tarefa da luta na cidade:
Por meio de suas atividades e lutas cotidianas, os indivíduos e os grupos sociais criam o mundo social da cidade ao mesmo tempo em que criam algo de comum que sirva de estrutura em que todos possam abrigar-se. [7]
Assim, “[…] organizar-se não apenas em torno do trabalho, mas também das condições do espaço habitável, construindo pontes entre ambos, é algo que vem se tornando cada vez mais crucial” [8]; Harvey também pontua que os sindicatos são importantes para a organização dos trabalhadores, mas que por si só não bastam para sustentar uma luta anticapitalista; na Argentina, as fábricas cooperativas se tornaram centros de educação e cultura popular abertos para os moradores da região; nos EUA, as associações de moradores foram fundamentais para sustentar os ataques contra as greves de mineiros ao oferecerem comida e cobertores para a ocupação.
[…] a cidade e o processo urbano que a produz são, portanto, importantes esferas de luta política, social e de classe. […] Resta, portanto, examinar o processo urbano – seus aparatos e restrições disciplinares, assim como suas possibilidades emancipatórias e anticapitalistas – do ponto de vista de todos aqueles que tentam ganhar a vida reproduzido seu cotidiano no contexto do processo urbano. [9]
Harvey assinala três pontos estratégicos para a construção da luta na cidade:
a) Conseguir apoio das populações comunitárias em volta do local de trabalho, estabelecendo um ligação comum em um meio urbano difuso;
b) Tomar o conceito de trabalho como uma definição mais ampla, vinculado tanto à produção quanto à reprodução da vida cotidiana, tornando-a vital na luta anticapitalista e permitindo tratar como igualmente válida a luta contra a realização da mais-valia nos diferentes locais de produção da cidade;
c) Buscar a unidade identitária em uma diversidade de espaços e locais socialmente fragmentados e em uma divisão de trabalho inumerável acaba sendo uma tarefa central na luta anticapitalista;
Essa busca por unidade passa pelo diálogo entre setores como as associações de bairros e favelas com grupos marginalizados socialmente (como os negros ou os imigrantes bolivianos em São Paulo) e os movimentos de trabalhadores da construção, com os professores, com os responsáveis pelos sistemas de lixo, de gás, de energia elétrica, de metrô; com os motoristas de caminhões, ônibus e táxis; com os trabalhadores de restaurantes , caixas de banco – todos aqueles que desempenham papel na reprodução da vida na cidade são devem buscar uma forma de decidir coletivamente sobre a cidade que eles produzem de forma coletiva e que é expropriada de forma privada:
É por esse motivo que o direito à cidade deve ser entendido não como um direito ao que já existe, mas como um direito de reconstruir e recriar a cidade como um corpo político socialista com uma imagem totalmente distinta: que erradique a pobreza e a desigualdade social e cure as feridas da desastrosa degradação ambiental. Para que isso aconteça, a produção das formas destrutivas de urbanização que facilitam a eterna acumulação de capital deve ser interrompida. [10]
Tomar a cidade de assalto é interromper os meios de produção e reprodução que ocorrem na cidade, buscando romper tanto com a relação de exploração quanto tornando cada um desses indivíduos um sujeito político que decidirá sobre os rumos de sua cidade.
A luta capitalista, no sentido marxista formal, é fundamental e apropriadamente interpretada como sendo em relação à abolição da relação de classe entre capital e trabalho na produção que permite a produção e a apropriação de mais-valia pelo capital. O objetivo último da luta anticapitalista é a abolição dessa relação de classe e de tudo que a acompanha, pouco importa onde ocorra. [11]
Referências
[1] ↑ Cidade e Capital – David Harvey acessado em 13/04/2016.
[2] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p.210.
[3] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.232.
[4] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.144.
[5] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.235.
[6] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.212.
[7] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.146.
[8] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.238.
[9] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.133.
[10] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.247.
[11] ↑ HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana…. p.218.
Estudante de Letras (Habilitação: Linguística/Português) e marxista.