A “verdade” em Nietzsche: 3 apontamentos para entender o conceito

A partir de três apontamentos, entende-se que a verdade em Nietzsche não ocupa um lugar privilegiado na produção do conhecimento. Não existem verdades absolutas, mas imposições de verdades que são entendidas como absolutas através da dominação.

Da série “Friedrich Nietzsche“.

Introdução

Para Friedrich Nietzsche, a verdade é uma ilusão, é uma enganação que tomamos como valor de verdade e serve para manter nossos corpos adestrados, já que ela é aquilo que trava nossas ações, que pontua nossos julgamentos e que define o que vale à pena ser levado à sério.

Não existe verdade absoluta para Nietzsche.

A verdade é, também, aquilo que emana dos “fortes”, é fruto de sua vontade de potência, ou seja, de seu impulso em exercer poder, em viver, em agir sem se sujeitar às regras morais. Ou seja, a verdade é uma imposição daqueles que exercem poder.

O autor diz, no ensaio Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, que a verdade é aquilo que nasce para evitar a tese Hobbesiana da convivência humana no estado natural (a guerra de todos contra todos). Ela se faz, primeiramente, como uma imposição geral: a linguagem.

A verdade em Nietzsche

Nietzsche e a verdade

1) Verdade como linguagem:

“[…] é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira”.

Mentiroso é aquele que utiliza as palavras para dizer que a realidade é aquilo que ela não é. Por exemplo, ele afirma “‘sou rico’, quando para seu estado seria precisamente ‘pobre’  a designação correta.

Ele faz mau uso das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e de resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de si”.

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A ilusão, diz Nietzsche, não é um grande problema para o ser humano comum, mas sim os efeitos negativos que ela pode oferecer (entenda “ilusão” como aquilo que se passa por verdade, ou seja, neste caso, a linguagem).

O mesmo vale para a verdade: ela é desejada quando suas consequências são agradáveis (ou seja, a linguagem é aceita sem problemas quando significa uma vantagem de definição para o sujeito, quando define o sujeito como algo bom).

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2) Verdade como negação da vivência primitiva: a linguagem é composta por palavras, que são figurações de estímulos nervoso, segundo o pensador alemão.

Estes estímulos são traduzidos em imagens (as palavras) que são classificadas arbitrariamente em gêneros diferentes (masculino, feminino e etc). O nascimento da palavra, da imagem, é a primeira metáfora, a imagem é, depois, “modelada em um som”, e aqui acontece a segunda metáfora na produção da linguagem.

Após este processo de transformação em metáfora, a palavra se agarra em um conceito. O conceito é a negação da individualidade primitiva.

Ele deve ser aplicado a “um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomado rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais”.

Ele ainda afirma que “todo conceito nasce por igualação do não-igual”, ou seja, o conceito pretende ser o universal que dá “molde” para aquilo que ele conceitua. Conclui o autor:

“A desconsideração do individual [ou seja, da vida primitiva] e do efetivo [ou seja, da realidade] nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto que a natureza não conhece formas nem conceitos, portanto também não conhece espécies, mas somente um X, para nós inacessível e indefinível”

Novamente, entende-se que não existem verdades absolutas para Nietzsche.

3) Verdade como ilusão massificante:

“O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas, e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas”, grifo meu.

Será que podemos incluir Deus e a religião nesta observação?

O sujeito esquece que a linguagem é somente uma fabricação e passa a ser verdadeiro em oposição ao mentiroso, rejeitado pela sociedade.

Passa a se considerar racional por basear sua vida nestas abstrações e não consegue mais viver sob o regime das intuições, da individualidade, da não-sujeição ao conceito. Tudo que percebe, ele conceitua.

“Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e sem igual e, por isso, sabe escapar a toda rubricação, o grande edifício dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza, que são da própria matemática”.

O impulso à verdade e a verdade como instrumento de dominação

O valor da verdade nasce, então, das oposições que se formam entre as diferentes classificações e as valorações que se dá para cada classificação. Por exemplo, o sujeito quer ser honesto em oposição ao mentiroso, como já dito acima, não porque a honestidade é boa em si, mas porque ser honesto (ser verdadeiro) carrega consigo uma série de vantagens em relação a ser mentiroso.

Nietzsche descreve que no mundo, antes da necessidade coletiva de comunicação e sociabilização, o intelecto, “como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce: pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas”.

A realidade que o fraco expõe é composta por dissimulações criadas por seu intelecto. Ele dissimula para sobreviver, o intelecto é uma maneira de conservar a própria vida.

Entende-se, então, que em substituição à força, ao poder, o intelecto atua como forma de resistência àqueles que podem, por sua vontade, se impor. Nasce de uma moral dos fracos, que inverte a relação de dominação tornando o fraco executor legítimo de um poder de repressão, enquanto o forte se transforma no polo ilegítimo, marcado pelo julgamento negativo a partir da consciência moral.

A dissimulação da verdade em Nietzsche

Depois, a própria linguagem se torna uma espécie de dissimulação, pois engana os sentidos e os adestra para perceber aquilo que ela mesma prescreve. Portanto, a linguagem é um elemento da participação do sujeito no rebanho (na massa, ou seja, ela é sua massificação, perda da individualidade).

O impulso à verdade, em Nietzsche, aparece como vontade de potência, como exercício do poder, como dominação, já que a verdade só é procurada por servir para algo (o conhecimento puro nem mesmo é percebido pelo sujeito, é necessário alguma valoração). É só com a busca incessante pela verdade que o honesto pode ser honesto e, portanto, pode dominar o mentiroso.

O honesto, por excelência, é o forte, é aquele que não precisa dissimular para conseguir sobreviver em sociedade, já que a dissimulação se torna mentira e, portanto, “ruim”, condenável.

Aqueles que são classificados desprivilegiadamente são os que menos precisam da verdade, mas a verdade passa a ter um valor inestimável e começa a emergir um impulso à verdade, na medida em que ela se transforma em uma arma dos “fortes”, dos dominadores.

Mais tarde, em trabalhos posteriores, o autor vai investigar a ligação da verdade com o medo, ou seja, com a necessidade de manter uma realidade, um “mundo verdadeiro”, por trás da aparência. Pois

o conhecimento das coisas não possui uma origem em um mundo exterior, superior, metafísico, mas é inventado no vácuo, nas tensões emque ocorrem as correlações de forças. O ato de conhecer é, portanto, uma invenção histórica. Dizer que o conhecimento foi inventado é dizer que ele não tem origem, não possui uma ousía. É afirmar que ele não está incondicionalmente inscrito na natureza. Essa afirmação nos permite compreender, à luz de Nietzsche, que no comportamento humano não há um impulso, um ímpeto cravado naturalmente no seu corpo, que o impulsione a conhecer. Muito menos uma centelha instintiva do conhecimento impregnada, como um germe, nas funções vitais do homem. De acordo com Nietzsche, o conhecimento possui uma relação com os instintos, mas não faz parte deles. O ato de conhecer resulta do jogo, da disputa, do confronto, da luta, da junção entre vários instintos. Depois de travar esse embate, um acordo entre os instintos se processa. Esse processo engendra o conhecimento (ALMEIDA VIEIRA, 2014, p. 66).

A vontade de verdade seria, então, a busca incessante pela calma e segurança de uma estrutura fixa de “realidade” para se opor ao mundo impossível de se perceber corretamente – seria uma maneira de viver quando já não se tem a vontade de potência, a coragem para encarar o mundo de frente, com todas as suas dúvidas e seus desafios.

Curso Nietzsche: filosofia para espíritos livres

Referências

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. São Paulo: Hedra, 2007.

ALMEIDA VIEIRA, Mauro Rogério de. A CRÍTICA DE NIETZSCHE À NOÇÃO DE VERDADE DA METAFÍSICA CLÁSSICA. Cadernos do PET Filosofia, [S. l.], v. 4, n. 8, p. 60–71, 2014. DOI: 10.26694/pet.v4i8.2074. Disponível em: https://periodicos.ufpi.br/index.php/pet/article/view/2074. Acesso em: 21 ago. 2024.

Publicado originalmente em 2014, atualizado em 2024.

31 Comentários

    1. Mas então o que seria a verdade? De que tipo de verdade ele se trata? Por exemplo, formulas de fisica que descrevem o funcionamento da matéria, são verdade pois descrevem a realidade. Elas seriam instrumentos de poder para dominar?? Verdade é um conceito muito amplo. A opinião dele é que qualquer afirmação de verdade é um ato de querer dominar o proximo, ou perdi o contexto?

      1. Se eu entendi bem ( o que é possiivelmente dificil) me parece que as verdades impostas seguem um código de linguagem utilizada como instrumento dominador, por exemplo “ser honesto é bom”. Essa frase ela é carregada de abstrações que levam ao individuo em sociedade pensar que caso ele aja com honestidade perante outros ao seu redor será recompensado moralmente e eticamente, levando à ilusões empregadas pelos dominadores (visto que a honestidade é um elemento há muito cultuado, desde os tempos medievais com o cristianismo, por exemplo). Contudo, sim, fórmulas de fisica u matematicas são também uma linguagem, porém, eu acho que por se tratar de uma linguagem originaria da Natureza ( afinal inventamos as formulas, porém os “conceitos” já exisitiam, a gravidade, a energia já eram existente antes mesmo do homem formular hipoteses sobre a mesma), então acredito que as verdades são construidas por aqueles individuos fortes que perceberam não como individuos desta sociedade mesquinha e assim, superaram sua própria espiritualidade, e acredito que as verdades instrinsecas a Natureza mesmo que não a percebamos, pois nos esquecemos de nosso lado primitivo, deixamos o lado apolineo (racional) suprimir o dionisiaco (o lado inventivo, prazeroso, ligado às percepcções da Natureza). Portanto é isso quando Newton formulou suas fórmulas ele na verdade não criava suas “verdades”, mas sim uma maneira de expressar a Verdade Natural que ele por experimentos a notou. Espero ter ajudado, como eu disse é bem provável que esteja errado, mas se li e entendi foi isso. Qualquer coisa pode me contradizer, vamos tornar esse comentario um espaço de discussao e entendimentos. Paz e felicidades sempre.

      2. Fala Eduardo Blz?
        Olha cara a verdade em Nietzsche é algo que não pode se materializar, pois a matéria esta em trânsito constante, então as palavras tem a função de dizer o que as coisas são, só que às coisas deixam de ser a todo instante(em escala molecular), por exemplo, você pode afirmar que a cadeira está sobre o carro, e em seguida dizer que isso é uma verdade, só que no próximo segundo a cadeira já não é mais a mesma(em escala molecular), então você já não poderia chamar ela com o mesmo nome, e assim sucessivamente a cada instante de cadeira. Então aonde está a verdade em Nietzsche né? Ora a verdade está na natureza, mas não nessa natureza material, está nas pulsões, nas energias, nas forças que nos constituem! É uma verdade que você apenas à assiste, à percebe, mas jamais à controla, a natureza é algo que você precisa se associar à ela, um exemplo dessa associação foi o da NASA com a gravidade, pra chegar a Lua a NASA precisou de que? Entender a gravidade(natureza), a NASA entendeu(associou-se) e foi a Lua, do contrário jamais teríamos ido à Lua, pois à natureza NÂO TRANSGRIDE!

      3. Na verdade, sua pergunta é muito interessante, e leva à conclusão que sim, as fórmulas da física não são verdades absolutas. Elas descrevem sim a realidade, e como a realidade funciona, porém, assim como a sociedade, está em constante evolução, e a cada nova teoria que explica melhor algo, a última se perde, passando a ser mentira. O átomo de Dalton, por exemplo, na época se tratava de uma verdade natural, e hoje não passa de um erro.
        Essa reflexão nos leva a concluir que até mesmo as leis da física são tentativas errôneas de se explicar uma realidade, que é muito mais ampla em sua essência, e nunca poderá ser explicada através de metáforas.

  1. Gostaria de uma explicação da frase: uma transposição aproximada, uma tradução que segue o original de forma balbuciante para uma língua totalmente desconhecida… – em relação ao texto: Acerca da verdade e da Mentira – Nietzsche

  2. eu como aluno de 3º ano do ensino médio o assunto é ótimo alem de agregar conhecimento é muito bom pra quem quer entender a verdadeira filosofia

  3. Friedrich Nietzsche tem uma frase que explica bem essa sua indagação: – Não há fatos eternos como não há verdades absolutas.. Ou seja, a realidade está intimamente ligada com o ser que vive nela, uma mosca enxerga 400 vezes mais rápido que um ser humano, logo sua realidade é diferente da nossa, pegando um ser que vive em 4 dimensões (coisa a qual nunca saberemos se existe ou não) vê a realidade de forma diferente, logo a sua verdade da realidade não é única muito menos absoluta, o problema é que nós não entendemos isso e de forma tirânica, colocamos nossa verdade como única e verdadeira, usada como instrumento de manipulação, as fórmulas físicas são reais sim, pois se aplicam ao nosso universo, porém pode ser diferente quando aplicadas dentro de um buraco de minhoca, onde o espaço-tempo é distorcido. Portanto, sem querer resumir algo tão vasto, verdade seria uma afirmação única que criamos para explicar o mundo da vida que é inconstante, criamos verdades pois não conseguimos viver essa aleatoriedade do mundo, como covardes… E após criarmos tal afirmação, o mundo mudou, logo, ela se torna inválida, mas acreditamos do mesmo jeito… Um instrumento usado pelo ser humano que tem com objetivo parar o mundo da vida utilizando a linguagem como recurso.

  4. De acordo com minha interpretação, Eduardo, Nietzsche não cunharia como “verdade” ou “mentira” fatos objetivos, como o fato de sua blusa ser azul ou vermelha — e acredito que tais definições também se estenderiam a resultados científicos.

    A discussão do filósofo se atém, em essência, à aparência. Nietzsche discute sobre como a construção de uma verdade “ilusória” (que tem como ferramenta a linguagem) é fator de dominação sobre aqueles que recorrem ao descontrole da abstração e, portanto, são excluídos (os mentirosos).

    Em suma, de acordo com minhas reflexões acerca desta ideia de Nietzsche, verdade é aquilo estabelecido pelos poderosos, por meio da linguagem, para serem aceitos em sociedade e viverem com maior conforto — já que a vida é cheia de percalços e desafios que apenas os “mentirosos”, na abstração, afirmam existir.

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